NARRATIONES ITINERIS

Amós Coêlho da Silva
 (UERJ, UGF e ABRAFIL)

 

Seria o autor de Satiricon o elegante arbiter, a que se refere Tácito nos Anais XVI, inclusive descrevendo sua singular morte? Não é improvável que o nome Arbiter que os manuscritos adjudicam ao autor de Satiricon proceda da frase com que o autor dos Anais caracteriza o cortesão de Nero (Spalding, 1968: 165). Ser contemporâneo de Nero, conquistar-lhe certa consideração, integrar, como Sêneca, o ciclo íntimo do Imperador, ser-lhe, até mesmo, o conselheiro de bom gosto e nada lhe escapando na hora da indicação do que é bom e sofisticado, tudo isso veio a instigar ciúmes, em quem se sentiu postergado. A inveja proveio de Tigelino, o prefeito dos pretorianos, que o acusou de rebelião, logo após a sua gestão de procônsul na Bitínia, quando o Poeta satírico seguia o Imperador em Cumas. O favorito do Imperador recebeu ordem ameaçadora de permanência em Cumas. Destruiu o seu anel, recompensou alguns de seus escravos e suicidou-se, abrindo as próprias veias, mas remetera ao Princeps, antes de qualquer providência, um memorial com os procedimentos mesquinhos deste.

Certa tradição associa o título de sua obra aos sátiros, daí a grafia Satyricon, o que parece ser admissível, se Satyricon (com o longo) for hibridismo quanto à formação de palavras, ou literariamente uma carnavalização - o que estaria intrinsecamente no próprio sentido original da Satura lanx: uma mistura; -on longo seria, portanto, proveniente do genitivo plural grego Saturikw'n (Satyricon libri), ou talvez Saturikovn, neutro singular, com o nominativo plural Satyrika, semelhante ao caso de Vergílio, Vergilii Georgicon (-o longo) libri, que pode ser chamado no plural de Geórgica. Inspirado no romance grego erótico e de aventuras, que sempre relatava a história de um par de namorados, o Satiricon, que constaria de dezesseis volumes, chegou-nos bem incompleto: dos livros XIV, XV e XVI restam fragmentos. É um romance de viagens, como classificaria Mikail Bakhtin, com o protagonista Encólpio narrando em primeira pessoa. Trata-se de uma mixórdia de prosa e verso, repleta de aventuras, matizada de etnias, cidades e grupos sociais. Às personagens Ascilto e Gitão se junta Eumolpo, um velho poeta.

Podemos comparar esses aventureiros da sátira menipéia Petrônio, de quem Henrique Sienkiewicz (1846-1916), detentor do prêmio Nobel em 1905, nos dá um retrato idealizado em seu livro Quo vadis?, com os clerici vagantes da Idade Média: estes eram os goliardos, nome que provém do francês guele, significando duplamente garganta e gula, bem como as noções de fanfarrão e debochado, como a Profa. Dra. Dalma Nascimento (UFRJ) explicou numa memorável comunicação na Universidade Gama Filho. O goliardo era o sacerdote, que saíra da Igreja justamente por sua posição crítica contra aquele posicionamento penitencioso de mea maxima culpa, pregado pelo teocentrismo medieval em contradição com uma pletora de procedimentos eclesiásticos. Mais recentemente é que a Antropologia conceituou o arquétipo do trickster, cujo significado é aquele que é sem limite e sem lei e segue seus próprios desejos, mas representando uma antítese em relação aos valores culturais estabelecidos e integrados à consciência coletiva.

Estrutura formal prosimétrica, herdada das Sátiras Menipéias de Varrão (116-27 a.C.) e da surpreendente Apokolokýntesis, cheia de tom irônico e parodístico, de Sêneca (4-65 d.C.), repleto de latim vulgar, se opõe à tradição clássica, transmitida por Vergílio, Horácio e Ovídio (século I a.C.) e incrementada de acentuado asianismo retórico na era pós-clássica, da qual certa parte da obra de Sêneca é representativa.

Logo no início, há referências ao estilo despojado de cuidados de que se constituirá a obra petroniana. Lê-se aí uma defesa da oratória ática, que alcançou o máximo com Demóstenes, e a caricatura do asianismo, de eloqüência caracterizada pela afetação, pois o narrador Encólpio pergunta:

Num alio genere furiarum declamatores inquietantur, qui clamant: “haec vulnera pro libertate publica excepi; hunc oculum pro vobis impendi: date mihi ducem, qui me ducat ad liberos meos, nam succisi poplites membra non sustinent? [Não se inquietam os retóricos em outro gênero de arrebatamento, quando gritam: “estas feridas eu sofri pela causa pública; eu sacrifiquei este olho por vós: dai-me um guia, que me leve a meus filhos, pois meus joelhos magoados não sustentam o peso do corpo?”][1]

Há, neste capítulo 1, uma crítica contra a escola, quando procura acomodar os jovens ao sistema vigente, não lhes dando a percepção analítica da convivência social: Et ideo ego adolescentulos existimo in scholis stultissimos fieri, quia nihil ex iis, quae in usu habemus, aut audiunt, aut vident; [E, por isso mesmo, eu considero que os jovens tornam-se estultíssimos nas escolas, porque nada dos fatos que vivenciamos ou vêem ou ouvem.] Essa escola retira dos jovens até mesmo a paciência pela aprendizagem gradual, lenta mas segura; daí a formação de um caráter deformado na velhice, girando em círculo vicioso.

No Satiricon, a paródia pode dar-se a partir de um provérbio como aquele do Trimalquião (capítulo 74): Qui in pergula natus est, aedes non somniatur, [Quem nasceu numa cabana nem sonha com palácios,] Trimalquião refere-se à condição de Fortunata de continuar sendo uma plebéia, mesmo tendo tido a oportunidade social de desposar um homem “superior” como ele o era. Provérbio que seria Un villano semper villano, com equivalentes em vários dialetos e em todas as línguas européias (Tosi, 1996: 48).

Ainda no Banquete de Trimalquião (c.77): Qui fuit rana nunc est rex, [Quem foi rã é agora rei] é uma frase indicativa do novo rico, aquele que se tornou do nada poderoso, como ocorreu com Trimalquião. Aqui se parodiou aquela mesma rã de Esopo e na seqüência a de Fedro, La Fontaine e outros seguidores do fabulista grego. Em síntese, a rã impotente e cansada da anarquia pede a Zeus um rei; mas, quando o recebe, o repudia, porque o enviado é insuficiente. Zeus envia uma terrível serpente que faz uma chacina. Enfim, um povo fraco deve ser governado por um soberano hesitante. Em italiano, derivando da fábula da rã, temos a locução Re travicello, significando ironicamente rei de paus. Há uma célebre poesia satírica de Giuseppe Giusti (justamente intitulada Il re travicello (Tosi, 1996: 461). Outra formulação paródica é a da intervenção da ancilla semelhante à de Ana aconselhando sua irmã Dido a não venerar a imagem do falecido esposo Siqueu e a aceder às inclinações do coração que pulsava no momento pelo herói Enéias: Id cinerem aut manes credis curare sepultos? [Tu crês que a cinza ou os manes sepultos se importam com isso?] (En. IV, 34). Em lugar de curare, Petrônio escreveu sentire, retirando o sublime hexâmetro de sua dignitas, decalcando-lhe em contexto existencial da efemeridade e falibilidade da natureza humana.

Petrônio é uma fonte para o estudo do latim vulgar, pois assinala estilisticamente nas personagens o falar plebeu autêntico das sua próprias classes sociais como os libertos, escravos e personalidades humildes, realçando a atmosfera popular naturalmente:

No capítulo 37: nummorum nummos, [juros dos juros], compara a extensão dos terrenos de Trimalquião com a autonomia de vôo dos falcões, que mesmo alcançando distâncias incríveis, não conseguiriam cobrir tal extensão. Trimalquião acumula juros dos juros. No capítulo 43: olim oliorum, alguns anos atrás. Observe-se a duplicação e a flexão de advérbio, semelhante ao moderno escritor Dias Gomes na obra O Bem Amado, cuja personagem realiza combinações lingüísticas exóticas, exprimindo na metáfora da quebra de regra gramatical, no caso transgredindo a gramática com a flexão de uma palavra invariável como o advérbio, o que indicaria a conotação das distorções políticas executadas quotidianamente.

Como os mencionados clerici vagantes da Idade Média, desprotegidos do amparo da Igreja, mas cheios de astúcias para sobreviver sem remuneração pecuniária de trabalho prestado a alguém, o protagonista Encólpio e seus parceiros de aventura mergulham em situações anormais e perigosas, tirando delas vinganças tácitas, reflexões engraçadas e gestos debochados, caricaturas até de si mesmos e deixando subjacente certa tristeza, ou como nos diz Luca: “uma tristeza vaga” (Peterlini, 1994: 22). Na aparente desorganização, deixa aflorar o lado menos nobre do homem, o emblemático homo homini lupus, o homem é lobo para outro homem, que exprime a ferocidade do strugle for life, a luta pela vida, implícito em múltiplos elementos controladores do social, tais como a política, a religião e a educação, quando tendem para certos excessos. A vida “oficial” é, no discurso poético da sátira menipéia, submetida à caricatura, ao ridículo... Foi o que fez também Charles Chaplin em relação a Adolfo Hitler, imitando-lhe enquanto brincava com uma bola em forma de globo terrestre. Combinação extravagante e proibida de contrários: morte e vida, violência e paz, luxo e miséria, sensualidade e pureza, austeridade e canalhice... Enfim, apontando o lado civilizado frente a deformações. O Poeta da sátira menipéia nos dá tudo isso em estilo carnavalesco. Ao ler o Satiricon, rimos melancolicamente, como o faríamos, lendo a patética coragem quixotesca em Miguel de Cervantes ou, outrossim, encontraremos bastante material do grotesco como em François Rabelais.

Se para o Homero o rancoroso Posídon persegue Ulisses como leitmotiv, o fio condutor de Satiricon é a perseguição de Priapo. Assim como escapou da ira divina, Encólpio e seus companheiros fogem do castigo de Priapo, que lhes queria punir a indiscrição, quando assistiram a uma cerimônia secreta em honra deste deus.

Também, etimologicamente, encontramos em Homero Odysseús relacionado ao verbo odýssomai (aparentado com o latim odisse, odiar), eu me irrito, conforme canto X,60-2 e XIX, 407-9, como se Odisseu derivasse do fato de Autólico, seu avô, ter-se irritado com os homens e as mulheres de Ítaca, daí o epíteto do neto: Odysseús. Em Petrônio, os nomes das personagens são também emblemáticos do das suas ações. Encólpio, literalmente “abraça” ou “o homem circulador”, expressa a sua avidez de sensações eróticas, aqui e ali; Ascilto, “livre de imposto” ou “sem dono”, ou ainda “o infatigável”, é o escravo impune; Gitão, “vizinho”; Eumolpo, com seu cacoete de fazer versos, assume caricaturalmente o nome de um vate mítico da Trácia, cuja composição é mevlpein, mélpein – cantar, e dançar, mais prefixação eu'j-, e – bom, bem. Eumolpo, o cantor de doces poemas, que foge de Crotona e disfarça de escravos os seus companheiros mencionados acima e ele mesmo se passa por proprietário de terras na África.

Durante narrationes itineris, as narrativas de viagem, de Encólpio, ele retoma da tradição do mestre das Sátiras, Horácio (II,5), o tema dos caçadores de testamento, heredipetae, mas, ao invés de exortar, submete Eumolpo ao grotesco e à degenerescência. Também vem de Horácio (II, 8) o banquete com um anfitrião grosseiro e rico. Durante o banquete desfilam motivos tais como a avidez descomedida, o luxo desenfreado, a fugacidade do tempo e comportamentos extravagantes, mas agora assumindo feições grotescas. Trimalquião, liberto e novo rico, promove em torno de si todo tipo de sordidez e aberrações humanas. Há um motivo semelhante ao do Banquete de Platão: assim como houve a entrada atrasada de Alcibíades neste, haverá também a de Habinas (45) no Satiricon. Trimalquião simboliza as tendências viciosas do homem. Os cacoetes e a sua linguagem gestual em geral exprimem o grotesco com um tom risível e o patético com expressividade amarga. Sua presença evoca o prazer supérfluo, mas vicinal de uma nota de amargura: seja uma mágoa, seja a própria morte.

Encólpio e os companheiros conheceram Trimalquião quando este jogava bola e logo se destacou dos demais pela estampa bizarra: velho - mas usufruindo a sua idade como um elemento bem ridículo: careca, vestido numa túnica avermelhada, inter pueros capillatos ludentem pila, jogando entre jovens escravos de longas cabeleiras. No relato, o narrador confessa Nec tam pueri nos, quamquam erat operae pretium, ad spectaculum duxerant, quam ipse pater familiae, qui soleatus pila prasina exercebatur, os rapazes não nos atraíram tanto a atenção, embora valesse a pena, quanto o próprio chefe de família, que, de sandálias, jogava com bolas verdes. Curioso é que, se uma bola caísse no chão, era jogada fora e uma pessoa era encarregada de fornecer outra, tirada de uma sacola pesada de bolas novas. Na extremidade do círculo de jogadores, um eunuco tinha, de plantão, um urinol de prata, matellam argenteam, na mão. Trimalquião estalou o dedo, paralisaram o jogo e o eunuco lhe trouxe o urinol, onde o dono da casa esvaziou a bexiga, em seguida pediu água, mas lavou apenas as pontas dos dedos e os enxugou nos cabelos de um escravo.

Na passagem dos homeristas (59), Ipse Trimalchio in pulvino consedit, et cum Homeristae Graecis versibus coloquerentur, ut insolenter solent, ille canora voce Latine legebat librum. O próprio Trimalquião sentou-se numa almofada, e, enquanto os rapsodos de Homero declamavam em versos gregos, como costuma acontecer, ele lia em voz alta um texto em latim. O contraste da situação se agravou quando ele solicitou a atenção de todos e interrogou se conheciam a fábula representada ali. Relatou então que Diomedes e Ganimedes eram dois irmãos e Helena era irmã deles. Agamêmnon a raptou e deixou em seu lugar uma gazela, para ser imolada à Diana. A perversão do mito grego era gritante. Dentre outras coisas, Ganimedes não é heleno, e sim troiano; foi levado para o Olimpo para ser escanção e favorito de Zeus. Diomedes era grego e comandante de tropas no cerco de Tróia. Helena, cujos irmãos eram Castor e Pólux, era esposa de Menelau, irmão de Agamêmnon. O rapto de Helena foi obra de Páris, príncipe troiano. Grosseiramente, Trimalquião confundiu os episódios míticos. O dos gêmeos Dioscuros aconteceu numa expedição contra a Ática, quando Teseu, rei de Atenas, e Pirítoo desceram ao Hades, a fim de conquistar a mão de Perséfone. Teseu quis retribuir o auxílio de Pirítoo, que, outrora, o apoiou no rapto de Helena, mas, em seguida, libertada pelos irmãos Castor e Pólux.

Com essa ótica de espectador distanciado, aparentemente sem envolvimento com a situação, Petrônio nos descreve quadros plasticamente realistas. Indica numa sua personagem o efeito psicológico de sua posição social. É assim com Fortunata, arquétipo das mulheres dos homens de negócios, cujo nome provém de fors, fortis: sorte; fortuna; acaso; relacionado ao advérbio fortunato, de um modo feliz. Interessante é que o sufixo -ata é indicador de passividade. Mas o comportamento sensual de Trimalquião, um novo rico e ex-escravo, como a esposa também o foi, há de despertar em Fortunata reação. Num passo do banquete (74), apareceu no salão um escravo, descrito como de grande beleza. Trimalquião deu-lhe um longo beijo, o que feriu os direitos de mulher de Fortunata, que insultou-o com a expressão Cão!. Trimalquião revidou com bofetadas no rosto dela. Cintila, esposa de Habinas, acolheu-a afetuosamente, consolando-a e um escravo solícito trouxe um vaso de água para que ela lavasse o rosto. Essa cena ocorreu um pouco após farta distribuição de heranças e libertações de escravos, inclusive com a confirmação de Fortunata como herdeira universal e muito bem recomendada aos amigos dele. O anfitrião testador e testamenteiro traçou nessa ocasião algumas exigências sobre seu túmulo, que seria num terreno de cem pés, dando para a via pública e duzentos para o campo, com árvores frutíferas em volta da sepultura, sobretudo vinhas, já que a morada do além-túmulo é mais demorada do que este lapso de tempo, o qual é apenas post brevem moram, de breve demora. Antes, porém, havia recomendado, entre outras coisas, uma estátua dele e a seus pés a imagem da sua cadelinha. Termina por epitáfio que elogia a sua existência:pius, fortis, fidelis, ex parvo crevit, sestertium reliquit trecenties, piedoso, valente, fiel, nasceu pobre, mas conseguiu deixar trinta milhões de sestércios (71). Ressalte-se o peso semântico de pius, que traz do herói épico Enéias a aura do epíteto sublimado. Chorou ao acabar a leitura dos seus últimos desejos. Todos os escravos também choraram junto com Habinas e Fortunata, como se ocorressem, de fato, as exéquias do amo. Recobrado repentinamente daquelas lamentações, Trimalquião convidou a todos para um banho bem quente.

A novela da matrona de Éfeso exprime o sutil pessimismo petroniano tão bem definido a respeito das fraquezas da carne e tornou-se um clássico da literatura latina. A senhora de Éfeso é um baluarte de castidade, tam notae erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui evocaret, tão reconhecida pela sua virtude que atraía até as mulheres dos países vizinhos para vê-la. (111) Ela acompanhou e velou o esposo morto, como ainda é costume nos nossos dias. Mas o seu velório ultrapassou as expectativas, pois a fidelíssima viúva lamentava-se e preparava-se para morrer de fome, sem que parentes próximos pudessem demover da sua decisão e consolá-la daquela aflição. Dada a determinação inflexível daquele modelo exemplar de fidelidade, todos já a davam como morta e, na cidade, não se falava de outra coisa. Uma criada fiel pôs-se ao lado daquele exemplo único de amor conjugal. No entanto, como um soldado percebesse luz e gemidos em meio aos túmulos, enquanto montava sua guarda da crucificação de três ladrões por ordem do governador, aproximou-se. Petrônio ressalta os contrastes tétricos do cemitério, os quais deveriam ter despertado sentimento de medo do sobrenatural no soldado; mas, ao contrário, para o homem o que houve foi o estímulo de uma visão admirável de uma mulher tão bela naquele lugar e compaixão pelo desgrenhado da desesperada com o rosto ferido pelas unhas. Ofereceu-lhe sua pobre refeição e admoestou-lhe de tudo que todos recomendariam na mesma situação: assim será o fim de cada um de nós, não devemos nos mortificar inutilmente, etc. Dada a persistência paciente dele em oferecer bebida e comida, a criada atentou para o generoso cheiro do vinho, aceitou a gentileza e, pela primeira vez, exortou a sua ama que compartilhasse da ceia. Imediatamente, a senhora, esgotada pelo jejum de muitos dias, abandonou a sua obstinação, a qual tinha repelido até as importantes e graves orientações dos magistrados. Enfim, comeu e bebeu com a mesma avidez da criada.

No capítulo 112, relata-se que o soldado entusiasmado com seu sucesso, passou a assediar a virtude da senhora com a mesma argumentação que a demovera daquele jejum. A criada incumbiu-se de abrir-lhe o coração, alegando-lhe o desperdício da juventude dela em tão triste local. Ne hanc quidem partem [corporis] mulier abstinuit, victorque miles utrumque persuasit. Certamente a mulher não recusou os apelos do corpo, e o soldado vencedor persuadiu duplamente.

A morte é tema freqüente. Picarescamente, Petrônio a ostenta numa túnica branca (45), símbolo do respeito exprimindo a presença de um Pretor. Essa túnica branca assustou Encólpio, quando a observou no momento da chegada daquele convidado atrasado já mencionado. Mas era apenas o Habinas, cuja ligação com a morte residia no seu ofício de marmorista. É nele que Trimalquião, sempre preocupado com a brevidade da vida, confia a sua lápide. O seu banquete havia sido aberto com esta elegia que se segue:

Eheu nos miseros, quam totus homuncio nil est.
           Sic erimus, postquam nos auferet Orcus.
Ergo vivamus, dum licet esse bene.
Nós infelizes, que todo homem é nada.
Assim seremos todos, depois que Plutão nos levar.
Então vivamos, enquanto é permitido estar bem. (35)

Num trocadilho de mau gosto (115), Encólpio observa corpo de um homem no mar: En homo quemadmodum natat! Eis como o homem nada! Mas esse sentimento torna-se patético, quando considera com os olhos tristes o corpo flutuando anonimamente ao sabor do refluxo das ondas. Lembra-se, refletindo consigo mesmo, do repentino inexorável do arrebatamento da morte:

Hunc forsitan, proclamo, in aliqua parte terrarum secura expectat uxor, forsitan ignarus tempestatis filius, aut patrem utique reliquit aliquem, cui proficiens osculum dedit..., Ah! exclamei, talvez uma esposa espere por este tranqüila em alguma parte da terra; talvez um filho que não sabe da tempestade, ou deixou o pai a quem, geralmente, deu um beijo enquanto partia.

A meditação do narrador, exclamando essas considerações, não é senão a intenção de envolver o leitor nas suas próprias perplexidades.

Lamenta os frágeis projetos e sonhos dos mortais. Mas ao descobrir que se trata de Licas, terribilem et implacabilem, terrível e implacável, porém agora pedibus meis subiectum, jogado a meus pés. Arranca, então, do seu íntimo esta pergunta: Vbi nunc est, inquam, iracundia tua, ubi impotentia tua? Onde está agora a tua ira, onde a tua insolência? Ali estava um homem que se orgulhou de toda sua riqueza e poder.

Passa outra vez do particular para o geral: Ite nunc mortales, et magnis cogitationibus pectora implete, Ide, agora, mortais enchei vossos corações de projetos ambiciosos! Enumera as maneiras de insegurança do homem, pois Sed non sola mortalibus maria hanc fidem praestant, não são só os mares, contudo, que “oferecem” esta segurança. Começa uma série de antíteses: os soldados se iludem também com o poder de suas armas; há os que confiam nos votos dados aos deuses, morrem sepultados sob os escombros de sua própria casa; uma simples queda de um carro tira a vida; cibus avidum stragulavit, a comida asfixia o glutão; abstinentem frugalitas, o jejum mata o abstinente.

É nessa complexio oppositorum, reunião dos contrários, que Petrônio nos patenteia a nossa condição humana frente ao sistema social castrador de nossas ilusões. Etimologicamente, homo, homem, provém de humus, barro, argila, terra, mas o homem se esquece de sua condição humilde, termo aparentado a humus, i.e., humilis. É essa amargura experimentada na morte de Licas, que não ria, era punidor e mal humorado. Seu nome talvez pudesse ser relacionado pelo Poeta da sátira menipéia com lobo em grego: Luvko", Lýkos: animal que simboliza ferocidade cruel.

É a respeito dessa tristeza dominante nas entrelinhas do Satiricon que A. Peterlini insiste no seu artigo A Tristeza Carnavalesca do Satyricon. Por isso, um espírito de sensibilidade, como o do moderno cineasta Fellini, veio a eleger a obra do Arbiter nas suas filmagens, pois encontrou no discurso de Petrônio viva expressão poética de humor sobre o perene do ser humano através dos séculos, embora ela tivesse chegado aos nossos dias fragmentada e envolvida em algumas incertezas.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1987.

HUMBERT, Jules & BERGUIN, Henri. Histoire illustrée de la littérature grecque. Paris: Didier, 1947.

PARATORE, E. História da literatura latina. Trad. M. Losa. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.

PETERLINI, Ariovaldo Augusto. A tristeza carnavalesca do Satyricon. Textos de Cultura Clássica (SBEC). Rio de Janeiro, dezembro de 1994, Ano VI, N° 17.

PETRONIUS, SENECA. Apocolocyntosis. With an English translation by Michael Heseltine & W. H. D. Rouse. Cambrigde: Harvard University, 1975.

SPALDING, Tassilo Orpheu. Pequeno dicionário de Literatura Latina. São Paulo: Cultrix, 1968.

TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças gregas e latinas. Trad. de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1996.


 


 

[1] Os textos latinos utilizados no presente artigo foram traduzidos por mim.