O léxico referente à religião
no De haruspicum responsis, de Cícero

Luís Carlos Lima Carpinetti (USP e UFJF)

 

Introdução: texto e contexto
do De haruspicum responsis
[1]

O discurso Sobre as respostas dos arúspices fornece indicações preciosas e coloca problemas delicados sobre o plano político, religioso e literário.

Julgado apócrifo por alguns filólogos, como os três outros discursos pronunciados na volta do exílio, ele traz, de fato, igual ou maior a marca da autenticidade: atribuído a Cícero por Q. Ascônio Pediano, Quintiliano e todos os copistas, ele reflete seus sentimentos, seus pensamentos e expressões.

O título se torna mais contestável. O título com o substantivo responsum no singular foi dado por Ascônio e utilizado seis vezes por Cícero, o qual só emprega o plural em três passagens para designar ora os diferentes pontos ora o conjunto da resposta; também certos editores e os últimos comentadores adotaram-no. Mas o plural responsis figura em uma citação de Quintiliano como em todos os manuscritos e ele se encontra, a propósito de uma única consulta, na terceira catilinária como no De diuinatione. O plural parece, portanto, preferível.

Se o discurso se prende pelo fundo ao De domo sua, pronunciado no dia 30 de setembro de 57, ele é posterior de vários meses: todos os exegetas estão de acordo em situá-lo em 56, mas hesitam entre a segunda quinzena de abril, a primeira de maio, o começo de junho e o decorrer de setembro.

Um término a partir do qual se poderia estabelecer a data de publicação do De haruspicum responsis está fixado pela narrativa dos jogos megalésios (4 a 9 de abril), qui precederam em algum tempo o anúncio e a interpretação dos prodígios (22 a 29). Dois outros referenciais, mais recentes e conexos, são sugeridos pela brusca reconciliação de Clódio com Pompeu (51-52), que receava ainda seus ataques em fevereiro e, por alusão a dissensões e tratados, que visa aparentemente as negociações de Luca, conduzidas por César, Pompeu e Crasso por volta dos meados de abril. Mantido na ignorância desta entrevista, Cícero tomou conhecimento dos resultados no começo de maio; ele tinha deixado Roma no dia 9 de abril, com a intenção de só retornar lá no dia 6 de maio e nada prova, como se quis pensar, que ele tenha apressado seu retorno.

Inversamente, a história de Dião Cássio fornece, ao que parece, um ponto de referência antes do qual se tenha publicado o discurso De haruspicum responsis: o retorno de Catão, que esta história faz intervir em uma fase ulterior da rivalidade entre Cícero e Clódio e que, enviado a Chipre em 58, tinha deixado o governo da ilha a seu sucessor, P. Cornélio Lêntulo Spinther, antes dos meados de julho. A este critério podem se acrescentar dois argumentos que passam sob silêncio. Se, de um lado, o orador evoca o primeiro investida de P. Clódio contra a sua casa aos 3 de novembro de 57, ele não menciona o segundo que, segundo Dião Cássio, Milão repeliu, sem dúvida em sua ausência, provavelmente no mês de junho. Por outro lado, ele ataca vivamente a administração pró-consular de A. Gabínio e de L. Calpúrnio Pisão, sem assinalar que o Senado recusou ao primeiro, no dia 15 de maio, a honra das súplicas, quando então, alhures, ele se rejubilou delas; tal omissão parece implicar que o discurso é anterior a esta sessão.

O discurso se colocaria então entre 6 e 14 de maio. De fato, este mês ímpar conviria melhor que o de junho à provável presidência do cônsul Cneu Cornélio Lêntulo Marcelino, que devia alternar com seu colega mais jovem, L. Márcio Filipo. Nada exclui a possibilidade de uma sessão senatorial durante este período, em que uma atividade judiciária é atestada.

A evolução da situação política e da atitude ciceroniana, que a comparação do De haruspicum responsis com as cartas e outros discursos reflete, escalonados de março a setembro, tende a confirmar esta data.

A situação política conheceu profundas reviravoltas no primeiro semestre de 56. No fim de 57, para escapar a uma acusação violenta intentada por Milão, Clódio disputava a edilidade, mas Milão opunha-se, por anúncio formal, à reunião dos comícios e os dois cônsules designados tinham a intenção de abrir o processo antes das eleições.

Sobreveio o caso de Ptolemeu XIII, conhecido como Aulete, o tocador de flauta: decaído e expulso do Egito em 58, este rei não cessava de fazer intrigas junto aos romanos, e sobretudo junto a Pompeu, para se fazer restabelecer no trono. Sua irmã e rival Berenice enviou em 57 uma embaixada, cujo chefe, Dião, foi envenenado na casa de seu hospedeiro, o pompeiano L. Luceio. Invocando golpes de raios, o tribuno C. Catão pediu a consulta dos livros sibilinos. O oráculo entregue pelos quindecínviros, grupo de que Clódio fazia parte, proibiu de restabelecer Ptolemeu por uma expedição armada; deste modo, ele afastava Pompeu, para a satisfação dos senadores, inquietos e ciosos de seu poder e de sua ambição.

Tendo feito, desse modo, o jogo da aristocracia, Clódio obteve a edilidade no dia 20 de janeiro de 56. Ele se apressou em acusar violentamente a Milão diante do povo nos dias 2, 7 e 17 de fevereiro, atacando e ridicularizando seu defensor Pompeu, que foi do mesmo modo importunado no Senado e que, diante da hostilidade geral, temendo até por sua vida, cercou-se de uma guarnição.

Por sua vez, César arrastado para a guerra das Gálias, via seu pró-consulado ameaçado pela ação da aristocracia senatorial, que começou por recolocar em causa sua lei agrária de 59 sobre a partilha do campo da Campânia, em benefício dos veteranos: sublevada em dezembro de 57, a questão foi retomada em 5 de abril de 56 e um decreto do senado fixou para o dia 15 de maio a discussão de um relatório consular.

Como alvo desta dupla manobra, Pompeu e César reagiram logo estreitando os laços que os uniam a Crasso desde julho de 60: os acordos de Luca, concluídos por volta de meados de abril, dividiram o poder e o mundo entre os triúnviros. Este golpe teatral provocou a divisão e o enfraquecimento dos optimates: numerosos magistrados e senadores dirigiram-se a Luca para cortejar César; outros se aliaram a Pompeu; outros apostaram em Clódio, estando ele mesmo reconciliado com Pompeu e tendo-se tornado o porta-voz dos triúnviros; os opositores foram reduzidos ao silêncio e à impotência.

Nesta crise de regime, Cícero ficou dividido entre diversos sentimentos, os quais o discurso reflete: a preocupação com seus interesses materiais e seu prestígio político, o ódio a Clódio e os que compactuavam com ele, sua amizade por Pompeu e seu temor de César, suas origens eqüestres e suas tendências aristocráticas, seu desejo de concórdia e seu patriotismo. Desejando antes de tudo recobrar o gozo pleno de seus bens, confiscados durante seu exílio e cobiçados por seus adversários, ele estigmatiza as violências de Clódio e apóia as acusações de Milão. No caso egípcio, ele pressiona Pompeu a não sacrificar sua dignidade às ambições de seu entorno. Depois da eleição de Clódio, cuja aliança com a aristocracia senatorial ele denuncia, Cícero parabeniza Pompeu de defender Milão, mas se abstém de apoiá-lo “para não desagradar aos homens de bem”. Depois ele logra conseguir sobre Clódio as três vitórias do Pro Bestia no dia 11 de fevereiro, do Pro Sestio no dia 14 de março e do Pro Caelio no dia 4 de abril. No dia 5 de abril, é ele que propõe e faz adotar o decreto senatorial relativo ao campo da Campânia. Ele parece ter reencontrado seu prestígio de outrora; ele crê poder partir tranqüilo dia 9 de abril, depois de ter visitado Pompeu.

Os acontecimentos se precipitam em sua ausência. Pompeu, que ele havia apupado, anunciando-lhe uma viagem à Sardenha, dirige-se para Luca, de onde ele lhe envia a ordem de permanecer quieto no dia 15 de maio. Ao anúncio dos prodígios, por volta dos meados de abril, consultam-se os arúspices que incriminam certo número de profanações, imputáveis em particular a Pompeu e a Cícero. Em um discurso ao povo, Clódio, impelido sem dúvida por César, desvia os agravos de Pompeu por um elogio inesperado e os concentra em Cícero, cuja casa tinha abrigado, durante seu exílio, uma capela da Liberdade. O senado encarrega os cônsules de um relatório sobre a questão; a malevolência de certos optimates em relação a Cícero é confirmada por três cartas de setembro a outubro de 57 e de junho de 56, em que ele os acusa de terem ciúme e serem invejosos de suas propriedades. Assim pode-se explicar em grande parte sua adesão aos triúnviros, que tiveram que lhe garantir em troca “a posse tranqüila de seus bens”.

Mas o discurso apenas marca, até esse momento, o começo de sua derrocada: ele denuncia as calúnias e as intrigas; ele estigmatiza o conluio cego de certos senadores com Clódio, havia pouco tempo contra Pompeu, agora contra ele mesmo, e lança contra seu adversário um violento requisitório; ele prega a união entre todos os melhores cidadãos, aristocratas e triúnviros; ele parabeniza Lêntulo e elogia Pompeu, mas permanece frio em relação a César; ele relança sobre Clódio a responsabilidade das dissensões para separá-lo de uns e de outros. Entre o dia 21 e o dia 24, o tom muda: Cícero apóia e referenda o decreto do Senado que atribui a César dez embaixadores e o soldo de seu exército. Em seguida, depois de uma série de dias chamados comiciais, onde, em princípio, o Senado não tinha assento, de 25 a 31 de maio, ele pronuncia em junho, antes ou depois de uma estada em Âncio, o De prouinciis consularibus; se encontramos nesse discurso muitas idéias ou expressões do De haruspicum responsis, esta arenga constitui, pelo elogio ditirâmbico de César e o apelo premente à manutenção de seu comando, a manifestação incontestável da palinódia de que o próprio Cícero se envergonha em uma carta contemporânea. Enfim, no discurso Pro Balbo, posterior em alguns meses, ele justifica sua atitude e critica a dos intransigentes em nome da concórdia nacional e da oportunidade política.

 

O fundamento religioso
do discurso De haruspicum responsis

Entretanto, nosso discurso tem um fundamento religioso. Partindo de um intuito de defesa de sua própria casa, que se encontrava em suposta situação de falta para com os deveres religiosos de um romano, Cícero aborda todos os optimates de seu tempo, suas causas e mazelas, em especial Clódio, autor da acusação feita contra a sua casa. A religião e a política têm intrincadas relações no mundo clássico e, neste discurso de pequena extensão, Cícero mostra sua maestria retórica, ao articular a tradição religiosa romana dentro do cenário político do conturbado final da República, atento às contradições do seu tempo e a defesa das instituições republicanas, em cuja defesa inclui a sua pessoa e a sua casa.

Esta é a diferença entre nós e os etruscos: nós pensamos que os raios são produzidos como resultado do choque das nuvens; já os arúspices sustentam encontrarem-se as nuvens para que se possam produzir raios e, de fato, visto que atribuem tudo à divindade, estão convencidos de que as coisas têm um significado não porque acontecem, mas que acontecem enquanto são portadoras de significados.

O escritor latino Sêneca tenta assim explicar o profundo sentido religioso dos etruscos. Na Antiguidade, esses tiveram a fama de um povo respeitoso e particularmente inclinado à interpretação das indicações divinas. Os sacerdotes-magos dos etruscos eram os arúspices; socialmente considerados, eram encaminhados às artes divinatórias desde a mais tenra juventude, e provinham na maior parte das vezes das grandes famílias aristocráticas.

A observação dos raios, o vôo dos pássaros e o exame das vísceras dos animais sacrificados eram as práticas mais utilizadas para interpretar a vontade dos deuses. Os romanos acabaram dependendo dos arúspices mais ou menos como os etruscos. Existiu um arúspice chamado Espurina que alertou a César com a famosa frase: “Fique atento aos idos de março” e sempre um arúspice, depois de ter perfurado o ventre de um animal, tê-lo privado de coração, o intimou para que ficasse em casa em que Bruto tê-lo-ia golpeado.

O poeta e político latino Sílio Itálico dá conta muito bem do espírito destes ritos que eram observados em uma caverna manchada de sangue entre os assobios e o lamento dos espíritos, em uma cena em que o comandante Aníbal consulta um arúspice antes de declarar guerra a Roma. Chegou até nós o instrumento de trabalho do arúspice, o pequeno exemplar de bronze de um fígado ovino, dividido em cortes, cada um dos quais com o nome da divindade que o governava.

Neste discurso, os prodígios anunciados comportavam um estrondo com um retinir de armas na zona rural do Lácio, nas cercanias de Roma e um tremor de terra na cidade de Potência, no Piceno. Ainda que esses fenômenos fossem bastante freqüentes, o Senado explorou o primeiro com fins políticos, consultando os arúspices, como ele havia feito em muitas ocasiões contra os chefes demagogos, C. Graco em 121, o tribuno Sexto Tício em 99, Mário em 87, Carbão em 84, Catilina em 65 e 63.

A resposta de 56 é a única que chegou até nós, graças a Cícero, sob a forma original e quase integral. Depois de terem confirmado o prodígio, os arúspices declararam que se devia uma expiação às divindades ofendidas, Júpiter, Saturno, Netuno, Télus e os deuses celestes. Eles enumeraram cinco sacrilégios: negligência e desonra na execução dos jogos, profanação de lugares sagrados e cultuais, assassinato de embaixadores, havendo desprezo das leis humanas e divinas, violação da fé e dos juramentos, negligência e desonra em cerimônias antigas e secretas; eles lançaram quatro advertências:

Evitar que a discórdia e a dissensão dos melhores cidadãos atraíssem sobre os senadores e dirigentes assassinatos e perigos e evitar que fossem privados do socorro da parte dos deuses, o que faria o Estado passar para o poder de um único indivíduo, traria a derrota do exército e a diminuição das forças; Que projetos secretos não prejudicassem a República; Que novas honras não fossem concedidas a homens perversos e excluídos; Que o fundamento da República não fosse subvertido.

Sem serem tão completos, alguns textos relativos a outras respostas apresentam analogias manifestas: assim, os arúspices estimavam em 172 que um feliz prodígio anunciava “a extensão das fronteiras e o aniquilamento dos inimigos”; inversamente, eles prediziam em 152 “a morte dos magistrados e sacerdotes”, em 126, “uma sedição”, em 97, “discórdias”, em 65 “massacres e incêndios, o aniquilação das leis, a guerra civil e doméstica, a ruína total da cidade e do império”; por outro lado, o erudito bizantino Lido transcreveu em grego um calendário brontoscópico de origem etrusca, traduzido para o latim por Nigídio Fígulo, onde foi denunciado, repetidas vezes, “a dissensão dos grandes”, “risco de tirania”, documento tanto mais interessante que, segundo a hipótese de M.A. Piganiol, Nigídio Fígulo, “pitagórico e mago”, autor de um tratado sobre os deuses e defensor fervoroso da República, pôde inspirar o texto de 56. Assim as respostas dos arúspices continham fórmulas estereotipadas, favoráveis aos interesses da aristocracia senatorial.

A resposta de 56 podia visar, mais ou menos abertamente, todos os adversários: os triúnviros, Pompeu em particular, revestido do comando maior e amigo de L. Luceio, em quem o chefe da embaixada alexandrina tinha encontrado a morte; P. Clódio, agente de César, reconciliado com Pompeu, instigador das desordens nos jogos megalésios; P. Vatínio que, após um primeiro fracasso, partilhava com ele a edilidade e aspirava à pretoria; Cícero, enfim, cuja casa suscitava a blasfêmia e a inveja.

 

O léxico referente às práticas religiosas,
cultos e ao sagrado em geral

O texto do De haruspicum responsis traz uma quantidade expressiva de termos e expressões que remetem, direta ou indiretamente, à prática ou às concepções religiosas do tempo e da sociedade em que viveu Cícero, nos quais podemos situar tal texto.

As cerimônias são aludidas no referido texto com os seguintes vocábulos: altare, cruentare, hostia, sacerdos, expiatio, epulae, flamen, magmentarium, sacellum, sacrificium, sacrum, sacrilegium, maleficium, maledictum, fanum, crocota, antistes.

O termo altare é de emprego raro, equivaleria em nossa língua atual a altar, tanto quanto ara. A diferença é que altare indica um dispositivo alto, mais alto que costuma ser uma ara. O texto utiliza altare para ênfase e expressividade, ao se referir à indecência de Clódio “ab altaribus religiosissimis fugatus”: expulso dos altares sacratíssimos. (Cícero, DHR, 9).

As cerimônias sagradas aparecem no texto descritas com o substantivo neutro sacrum, que poderia também ser a forma equivalente do adjetivo neutro correspondente a sagrado. Ao ato de conferir sacralidade a alguém ou alguma coisa é atualizado com um sacrificium, formado da raiz do adj. sacrum + raiz do verbo facere, que resultaria no sentido de tornar sagrado alguma coisa, mediante a oferenda de uma vítima (hostia), com ou sem libação (libatio)que seria o ato de derramar vinho entre os cornos da vítima. A violação do sagrado, seja a profanação dos lugares, seja o desrespeito aos deuses ou a violação dos velhos costumes dos antepassados (mos maiorum), cabe na noção de sacrilégio (sacrilegium), para o qual cabe o sacrifício de expiação.

O sacrifício de animais acarretava o derramamento de sangue e a efusão de sangue era considerada como muito agradável à divindade. Carregam esta conotação os seguintes termos: cruentare, crudelis, cruentus, crudelissime. Uma busca no texto de Cícero revela que a prática religiosa de sacrifícios de animais servia de base para a construção de metáforas acerca da prática política. “...suo ductu et imperio cruento illo atque funesto...”: com aquela sua direção e comando sanguinário e nefando. (Cícero, DHR, 3). Em outra passagem, ao narrar fatos com personagens humanos, Cícero alude ao mesmo termo utilizado nas cerimônias sacrificiais: “...Secures suas cruentari scelere noluit...”: Seus machados não quis que fossem ensangüentados com um crime. (Cícero, DHR, 35).

O termo sacerdos (sacerdote), bem como sua função correspondente sacerdotium (sacerdócio) aparece no texto. O sacerdote flamínio é aquele que se dedica ao culto de um deus específico, como, no exemplo do texto, o flamínio de Marte, L. Lêntulo, “flamen Martialis” (Cícero, DHR, 12). Lêntulo, que aparece qualificado com a função do sacerdócio, o é como costuma acontecer a todo magistrado ou pontífice, já que o sacerdócio é geralmente atribuição típica do cargo de magistrado. A esta função corresponde o apelativo antistes, que corresponderia à dignidade de bispo ou às variações de título dessa dignidade da Igreja Católica. A citação seguinte descreve as tarefas e funções abarcadas pela função sacerdotal: “...Te appello, Lentule, — tui sacerdoti sunt tensae, curricula, praecentio, ludi, libationes epulaeque ludorum...”: Faço apelo a ti, Lêntulo, os teus carros sagrados, os carros comuns, o prelúdio musical, os jogos, as libações e os banquetes dos jogos pertencem a teu sacerdócio. (Cícero, DHR, 21). Há no texto o vocábulo crocota, vestido açafrão, usado pelas mulheres e sacerdotes de Cibele. Mesclando uma série de elementos incompatíveis, dos mais sagrados aos mais profanos, Cícero constrói a caricatura de Clódio, a quem dirige sua invectiva:

...P. Clodius a crocota, a mitra, a muliebribus soleis purpureisque fasceolis, a strophio, a psalterio, a flagitio, a stupro est factus repente popularis...: P. Cráudio, partindo de um vestido açafrão, um turbante, sandálias de mulheres e fitinhas cor de púrpura, um porta-seios, uma harpa, uma infâmia, um estupro, tornou-se, de repente, membro do partido popular. (Cícero, DHR, 44).

Os lugares sagrados são alvo de alusão no texto De haruspicum responsis. Fanum designa o termo genérico para designar local sagrado; sacellum designa o que hoje conhecemos como capela e magmentarium indica o santuário para sacrifícios adicionais. “...Putant enim ad me nonnulli pertinere magmentarium Telluris aperire...”: Alguns consideram, pois, que abrir o magmentarium de Télus a mim pertence (Cícero, DHR, 31). A governos monstruosos como o de Pisão, Cícero atribui ações restritivas quanto à cultura religiosa do povo romano:

...L. Pisonem quis nescit his temporibus ipsis maximum et sanctissimum Dianae sacellum in Caeliculo sustulisse ?...: Quem desconhece que L. Pisão destruiu, nesses últimos tempos, uma capela muito grande e muito sagrada de Diana no Celículo? (Cícero, DHR, 32)

Há um tipo específico de sacrifício que é o de expiação, para aplacar a ira dos deuses e fazer cessar os males que afetam a vida dos homens em sociedade. “...Audio quibus dis uiolatis expiatio debeatur...”: ouço a quais deuses violados seria devida uma expiação (Cícero, DHR, 21). “...Maiores nostros... portentorum expiationes Etruscorum disciplina contineri putauerunt...”: Nossos antepassados acreditaram que as expiações dos etruscos estavam contidas na disciplina dos etruscos (Cícero, DHR, 18). A suspeita de que houve profanação dos jogos constituiria um malefício, coisa que requereria reparação ou expiação: “...Multi enim sunt, credo, in quos huius malefici suspicio cadat!...”: Existem muitos, na verdade, creio eu, sobre os quais cairia a suspeita deste malefício! (Cícero, DHR, 37). Também a maledicência dá ensejo à necessidade de expiação:

...Quamquam, si me, tantis laboribus pro communi salute perfunctum, ecferret aliquando ad gloriam in refutandis maledictis hominum improborum animi quidam dolor, quis non ignosceret ?...: Aliás, quem não mo perdoaria se, consumido por tantas fadigas em prol da salvação comum, certa dor do espírito me levasse por vezes à glória, para refutar as maledicências dos homens maus? (Cícero, DHR, 17).

As concepções religiosas se acham representadas no texto pelos seguintes vocábulos: supplicium, potestas, numen, fatum, fatalis, fas/ius, anniuersarius, Apollo, sanctus, uotum.

Os deuses têm um ser, impinge sobre a vida do homem seus códigos e determinam penalidades sobre quem infringe seus desígnios. O ser dos deuses é o numen, que é aquilo que faz os deuses serem o que são: a força física de Hércules, a sabedoria de Minerva, a majestade de Júpiter. Assim é que Cícero diz que o numen dos deuses tudo rege e governa: “...quod deorum numine omnia regi gubernarique perspeximus...” : porque vimos claramente que, pelo poder dos deuses, todas as coisas são reguladas e governadas (Cícero, DHR, 19). O substantivo potestas aparece no texto, mas não se aplica aos deuses, mas aos homens:

...Quamquam ad facinoris disquisitionem interest adesse quam plurimos, — ita est enim interpretatio illa pontificum ut eidem potestatem habeant iudicum — religionis explanatio uel ab uno pontifice perito recte fieri potest, — quod idem in iudicio capitis durum atque iniquum est — tamen sic reperietis frequentiores pontifices de mea domo quam umquam de caerimoniis uirginum iudicasse...: Ainda que seja interessante que haja muitíssimas pessoas presentes à investigação do delito – assim é, pois, a famosa interpretação dos pontífices, que tenham para o mesmo caso o poder de juízes – ou poderia a explicação religiosa ser feita, acertadamente, por um só pontífice perito – porque, a mesma situação é dura e injusta em um julgamento capital – assim verificareis que pontífices emitiram julgamento sobre a minha casa, em número muito maior do que, algum dia, sobre as cerimônias das virgens (Cícero, DHR, 13).

O substantivo supplicium refere-se a uma súplica dirigida aos deuses seja para obter alguma coisa, seja em ação de graças, ou como marca de submissão, mas tendeu a especializar-se no sentido sacrifício oferecido para aplacar os deuses como seqüência a uma faltas cometida, ou tem , na língua comum, sem dúvida, por eufemismo, o sentido de “castigo” infligido , depois o suplício. Aparece no texto a ocorrência desse substantivo na seguinte passagem:

...Secures suas cruentari scelere noluit; nomen quidem populi Romani tanto scelere contaminauit ut id nulla re possit nisi ipsius supplicio expiari... : Seus machados não quis que fossem ensangüentados com um crime; certamente manchou o nome do povo romano com tão grande crime que não poderia ser expiado com nenhuma outra coisa senão com suplício de si próprio (Cícero, DHR, 35).

O nome anniuersarius significa, etimologicamente, o que volta a cada ano. Este termo marca a sua aparição no texto na seguinte passagem:

... L. Pisonem quis nescit his temporibus ipsis maximum et sanctissimum Dianae sacellum in Caeliculo sustulisse ? adsunt uicini eius loci; multi sunt etiam in hoc ordine qui sacriflcia gentilicia illo ipso in sacello stato loco anniuersaria factitarint...: Quem desconhece que L. Pisão destruiu, nesses últimos tempos, uma capela muito grande e muito sagrada de Diana no Celículo[2]? Estão presentes aqui vizinhos daquele lugar; há muitos também neste senado que passaram a celebrar, continuamente, os sacrifícios anuais de família, naquela mesma capela, em lugar estabelecido (Cícero, DHR, 32).

Sanctus é o particípio passado de sancio (consagrado, sacramentar, estabelecer) e aparece no texto como “consagrado”: “...quae denique nostri maiores tam sancta duxerunt ...”: essas coisas que nossos antepassados julgaram tão consagradas (Cícero, DHR, 28). Fas é aquilo que agrada aos deuses e os homens só estarão no beneplácito dos deuses se o que fizerem não estiver em desacordo com essa espécie de direito divino, a que se chama fas. Cícero lembra a oposição de fas / ius, oposição entre a vontade dos deuses e as leis humanas: “...Oratores contra ius fasque interfectos...”: “Oradores foram assassinados contra o direito dos homens e o dos deuses.” (Cícero, DHR, 34). Os homens mantêm comércio com os deuses na base de promessas (uotum):

...nostri imperatores maximis et periculosissimis bellis huic deae uota facerent eaque in ipso Pessinunte ad illam ipsam principem aram et in illo loco fanoque persoluerent... : no decorrer de guerras bastante importantes e perigosas, nossos generais faziam, porém, promessas a esta deusa e as pagavam, na própria cidade de Pessinunte, em frente ao próprio famoso altar principal e no famoso lugar consagrado (Cícero, DHR, 28).

Há menção a diversos deuses, entre eles Apolo e os deuses do destino (fata) e o adjertivo correspondente (fatalis). O destino é uma divindade cega, inexorável, nascida da Noite e do Caos. Todas as outras divindades lhe estavam submetidas. Os céus, a terra, o mar e os infernos estavam sob seu império: nada podia mudar o que ele tivesse resolvido; em resumo, o Destino era, ele mesmo, essa fatalidade, segundo a qual tudo acontecia no mundo. Júpiter, o mais poderoso dos deuses, não pode aplacar o Destino, nem a favor dos outros deuses, nem a favor dos homens. As leis do destino eram escritas desde toda a eternidade, em um lugar onde os deuses podiam consultá-las. Seus ministros eram as três Parcas, eram elas encarregadas de executar suas ordens. Representam-no tendo sob os pés o globo terrestre, e agarrando nas mãos a urna que encerra a sorte dos mortais. Dão-lhe também uma coroa recamada de estrelas, e um cetro, símbolo de seu poder soberano. Para fazer entender que ele não variava, os antigos o representavam por uma roda que prende uma cadeia. No alto da roda está uma grande pedra, e em baixo duas cornucópias com pontas de flechas. São as leis cegas do Destino que tornaram culpados tantos mortais, apesar de seu desejo de permanecer virtuosos: em Ésquilo, por exemplo, Agamenão, Clitemnestra, Jocasta, Édipo, Etéocles, Polinice e outros não podem subtrair-se à sua sorte. Só os oráculos podiam entrever e revelar aqui em baixo o que estava escrito no livro do Destino. A figura de P. Cipião aparece como predestinada para a destruição de Cartago, depois de vários golpes aplicados por inúmeros imperadores:

Etenim, ut P. ille Scipio natus mihi uidetur ad interitum exitiumque Carthaginis, qui illam, a multis imperatoribus obsessam, oppugnatam, labefactam, paene captam, aliquando quasi fatali aduentu solus euertit, sic T. Annius ad illam pestem comprimendam, exstinguendam, funditus delendam natus esse uidetur et quasi diuino munere donatus rei publicae... : Com efeito, como o famoso P. Cipião me parece nascido para a derrota e destruição de Cartago, que, sozinho, com uma espécie de chegada fatal, outrora revolveu aquela, por muitos imperadores invadida, sitiada, arruinada, quase capturada, assim T. Ânio parece ter nascido para frear, extinguir, destruir completamente aquela ruína e, por uma espécie de presente divino, ter sido concedido à República (Cícero, DHR, 6).

Os jogos se tornam importantes neste texto, porque sobre eles recai a suspeita de que foram profanados ou celebrados sem o devido cuidado. A eles se referem os seguintes vocábulos: megalesia, curriculum, tensae, praecentio. Curriculum é carro comum, tensa é carro sagrado, praecentio é prelúdio musical.

Há inúmeras menções ao nome dos jogos megalésios, em latim Megalesia. Vejamos a seguinte ocorrência:

...Nam quid ego de illis ludis loquar, quos in Palatio nostri maiores ante templum in ipso Matris Magnae conspectu Megalesibus fieri celebrarique uoluerunt, qui sunt more institutisque maxime casti, sollemnes, religiosi, quibus ludis primum ante populi consessum senatui locum P. Africanus, iterum consul, ille maior dedit, ut eos ludos haec lues impura polluerit ?... : Por que, pois, eu vos falarei daqueles jogos que nossos antepassados quiseram que fossem feitos e celebrados no Palatino, em frente ao templo e sob o próprio olhar da Grande Mãe, nos jogos megalésias, que são pelo costume e instituições imensamente castos, solenes e religiosos, a cujos jogos aquele nosso antepassado P. Africano, cônsul em segundo mandato, pela primeira vez reservou lugar no senado, diante do assento do povo, para que este flagelo impuro tenha profanado aqueles jogos? (Cícero, DHR, 24).

Na seqüência seguinte, aparecem os seguintes vocábulos que entram na composição de uma celebração dos jogos: “...Te appello, Lentule — tui sacerdoti sunt tensae, curricula, praecentio, ludi, libationes epulaeque ludorum ...” : Faço apelo a ti, Lêntulo, os teus carros sagrados, os carros comuns, o prelúdio musical, os jogos, as libações e os banquetes dos jogos pertencem a teu sacerdócio (Cícero, DHR, 21).

 

O léxico referente às práticas divinatórias

O texto traz anunciado no título que tratará das respostas dos arúspices e é sobre essas respostas que Cícero articula sua oratória. Vemos no texto a ocorrência dos seguintes vocábulos que se referem à prática divinatória: augur, augustus, augurium, auspicium, haruspex, monstrum, ostentum, omen, portentum, prodigium, signum, praedicatio.

Haruspex é um substantivo composto de harum (entranhas, vísceras) + spicio (olhar), daí olhar, examinar as entranhas; da mesma forma olhar, examinar as aves, seu vôo: auspicium, de auis (ave) + spicio (olhar). Cícero retorna sempre às falas dos arúspices como motivação de sua arenga e sustentação de sua extensa e densa argumentação. Assim vejamos, como ocorre em praticamente todas as situações, os arúspices aparecem via de regra como sujeito dos verbos dicere e loqui : “...Sed, quoniam mea causa expedita est, uideamus nunc quid haruspices dicant...” : Mas, já que minha causa foi resolvida, vejamos agora o que diriam os arúspices (Cícero, DHR, 18).

Augur designa o áugure, sacerdote que fornece os presságios que asseguram o crescimento de um empreendimento. O adjetivo derivado é augustus, consagrado pelos áugures ou empreendido sob augúrios favoráveis. O adjetivo só se aplica a coisas, durante todo o período republicano; apenas no ano 727 de Roma é que se vê esse adjetivo aplicado a Otávio, com o sentido do grego Sebastos  (a quem se deve reverência). Augurium designa o presságio favorável no sentido mais amplo da palavra. É um termo muito mais compreensivo que auspicium, que designa simplesmente a observação dos pássaros e a época arcaica distingue nitidamente os dois termos. Mas a identidade fonética da sílaba inicial e também o fato de que o presságio mais fácil a tomar e o mais difundido era fornecido pela observação do vôo dos pássaros trouxeram as confusões de sentido – de resto parciais – entre augur, augurium e auspex, auspicium. Deve-se notar que nunca auspex foi empregado para designar a qualidade de augur. Augur é título oficial, sacerdote magistrado, fazendo parte de um colégio, cuja ação é submetida a regras. De augur derivam as formas verbais ativas e depoentes auguro e auguror, de que derivam augurar, inaugurar, sendo que o depoente não aparece aparece antes de Cícero. A forma que dá origem a nossos vocábulos agouro é aquela que sofreu dissimilação e que aparecem na época imperial agurium e agustus, de onde derivam o nome mês de agosto, do calendário em vigência até hoje (cf. Ernout, 2001, p. 57). O termo augur aparece no texto, em uma situação em que, referindo-se a Clódio, Cícero remete à consulta que seu adversário fazia aos áugures: “...Augures interrogabat, quae ita lata essent, rectene lata essent; illi uitio lata esse dicebant...”: Perguntava aos áugures quais coisas, nessas condições, haviam sido manifestadas e se haviam sido manifestadas corretamente; diziam-lhe que haviam sido manifestadas com deficiência (Cícero, DHR, 48).

A palavra monstrum ou monestrum que traduzimos por prodígio é um termo do vocabulário religioso, da mesma raiz de moneo e significa prodígio que dá advertência acerca da vontade dos deuses; como conseqüência, objeto ou ser de caráter sobrenatural, monstro.

Monstra dicuntur naturae modum egredientia, ut serpens cum pedibus, auis cum quattuor alis, homo duobus capitibus, iecur cum distabuit in coquendo : São chamados prodígios aqueles seres que ultrapassam o modo da natureza como a serpente com pés, a ave com quatro asas, o homem com duas cabeças, o fígado que se dissolveu ao cozinhar (Sexto Pompeu Festo, gramático latino do séc. II d.C.).

O termo monstrum aparece na seguinte passagem, quando Cícero menciona o fato de que uma invasão de abelhas seria prognóstico de uma invasão de escravos na cena dos jogos e uma invasão de escravos já não implicaria a necessidade de prognóstico nem de previsão alguma, sendo essa situação, por si só, sinal de perigo:

...quod igitur ex aliquo diiuncto diuersoque monstro significatum caueremus, id, cum ipsum sibi monstrum est et cum in eo ipso periculum est ex quo periculum portenditur, non pertimescemus ?...: Não recearemos muito, pois, aquela desgraça de que nos acautelaríamos que fosse sinalizada a partir de algum prodígio separado e diverso, quando ela própria é para si prodígio e quando é nela própria que existe o perigo a partir do qual o perigo é prognosticado (Cícero, DHR, 26).

Ostentum tanto quanto portentum traduzimos por prodígio, presságio, portento, maravilha. Ostentum tem também a mesma raiz do verbo ostendo que quer dizer mostrar. Portentum é derivado de um composto de por + tendo e designa um presságio revelado por algum fenômeno estranho ou contrário às leis naturais; daí “coisa maravilhosa, monstruosidade, monstro”. Festo tenta uma distinção entre ostentum, portentum e monstrum:

...portenta existimarunt quidam grauia esse, ostenta bona: alii portenta quaedam bona, ostenta quaedam tristia appellari. Portenta, quae quid porro tendatur, indicent; ostenta, quae tantum modo ostendant; monstra quae praecipiant quoque remedia...: alguns consideraram que os portenta são graves, que os ostenta são bons, outros, que certos portenta são bons, que certos ostenta são chamados de tristes. Portenta que apontem o que se dirige para a frente; ostenta que apenas mostrem; monstra que também dêem remédios como preceitos. (Festo 284, 4).

Para o termo ostentum, selecionamos a seguinte passagem:

...Ego enim fateor me et magnitudine ostenti et grauitate responsi et una atque constanti haruspicum uoce uehementer esse commotum...: Confesso, na verdade, que eu fui fortemente comovido tanto pela grandeza do prodígio, quanto pela solenidade da resposta e pela voz una e inalterada dos arúspices (Cícero, DHR, 18).

Para o termo portentum, selecionamos o seguinte trecho:

...sin scripulus tenuissimus residere alicui uidebitur, non modo patienti sed etiam libenti animo portentis deorum immortalium religionique parebo...: mas se para alguém um escrúpulo bastante tênue parecer subsistir, eu obedecerei, não apenas com espírito resignado, mas também contente, aos sinais calamitosos dos deuses imortais e à religião (Cícero, DHR, 11).

Prodigium teria etimologia contestada. Pensa-se na formação prod + agiom, que faria pensar na raiz de ago, mas também há hipóteses que fazem pensar também na formação desse substantivo a partir da raiz de aio: palavra profética. Vejamos as seguintes passagens onde se observa a ocorrência deste termo:

...Cum his furiis et facibus, cum his, inquam, exitiosis prodigiis ac paene huius imperi pestibus bellum mihi inexpiabile dico esse susceptum, neque id tamen ipsum tantum quantum meus ac meorum, sed tantum quantum uester atque omnium bonorum dolor postulauit...: Com aquelas fúrias e estas tochas, com estes, digamos, monstros funestos e quase a destruição deste império, digo que uma guerra implacável foi empreendida por mim, o ressentimento exigiu isso mesmo, não tanto, porém, o meu e o dos meus, mas tanto quanto o vosso e o de todas as pessoas de bem (Cícero, DHR, 4).

E mais esta outra passagem:

...Hanc ob amentiam in discordiis nostris, de quibus ipsis his prodigiis recentibus a dis immortalibus admonemur, adreptus est unus ex patriciis cui tribuno plebis fieri non liceret...: Por causa desta demência em nossas discórdias, sobre as quais mesmas somos advertidos pelos deuses imortais com estes prodígios recentes, dentre os patrícios, foi arrebatado só ele a quem não era lícito tornar-se tribuno da plebe (Cícero, DHR, 44).

E ainda essa passagem:

...Reperietis enim ex hoc toto prodigio atque responso nos de istius scelere ac furore ac de impendentibus periculis maximis prope iam uoce louis Optimi Maximi praemoneri...: Vós descobrireis, pois, a partir deste prodígio inteiro e desta resposta, que nós recebemos o presságio acerca do crime e do furor desse sujeito e dos grandíssimos riscos que sobrepairam já perto, pela voz do grandioso e esplêndido Júpiter (Cícero, DHR, 10).

Omen significa presságio deu a entender que omen tem muitas vezes o sentido de palavra de bom ou de mau augúrio, presságio dado pela voz e nomen está sempre em estreita ligação com omen: bona nomina, bona omina (bons nomes, bons presságios). De omen, temos a derivação ominosus, que se dizem de toda espécie de presságios. Outros itens lexicais derivados de omen: ominor, ominaris etc; abominor, -aris etc. Vejamos a seguinte passagem:

.... Hic uero, de quo ego ipse tam multa nunc dico, pro di immortales ! quid est ? quid ualet ? quid adfert, ut tanta ciuitas si cadet — quod di omen obruant!...: Mas este indivíduo, do qual eu próprio agora falo tão numerosas coisas, pelos deuses imortais, o que é? O que vale? O que traz para que, se uma tão importante cidade cair – que os deuses ocultem este presságio! – pareça, porém, aniquilada por um homem? (Cícero, DHR, 42).

No trecho seguinte, encontramos a indicação de que as previsões dos deuses do destino se acham contidas nos livros dos advinhos de Apolo. É o trecho seguinte:

...Ego uero primum habeo auctores ac magistros religionum colendarum maiores nostros, quorum mihi tanta fuisse sapientia uidetur ut satis superque prudentes sint qui illorum prudentiam non dicam adsequi, sed quanta fuerit perspicere possint, qui statas sollemnisque caerimonias pontificatu, rerum bene gerendarum auctoritates augurio, fatorum ueteres praedictiones Apollinis uatum libris, portentorum expiationes Etruscorum disciplina contineri putauerunt...: Eu primeiramente tenho nossos ancestrais como inspiradores e mestres das práticas religiosas a serem cultivadas, dos quais me parece ter sido tão grande a sabedoria, que são suficientemente e superiormente prudentes aqueles que poderiam, eu não diria, alcançar a prudência dos antepassados, mas examinar claramente o quão extensa ela foi, eles que julgaram que as cerimônias estabelecidas e solenes estão contidas no pontificado, as garantias estão contidas no augúrio dos empreendimentos a serem bem conduzidos, as antigas profecias dos destinos estão contidas nos livros dos adivinhos de Apolo e as expiações das calamidades estão contidas na doutrina dos Etruscos (Cícero, DHR, 18).

Referindo-se à Grande Mãe, de cujos jogos Cícero denuncia a profanação, Cícero lembra os sinais (signa) por meios dos quais se pode entrever o perigo: “...Haec igitur uobis, haec populo Romano et scelerum indicia ostendit et periculorum signa patefecit...”: Foi esta, pois, que a vós, esta que ao povo romano mostrou os indícios dos crimes e revelou os sinais dos perigos (Cícero, DHR, 24).

O termo praedicatio, que traduzimos por proclamação, elogio, profecia aparece, entre outras ocorrências, no seguinte trecho:

...sed, cum sint mihi data a uobis, cum ea attemptentur eius lingua cuius ante manu euersa uos mihi et liberis meis manibus uestris reddidistis, non ego de meis, sed de uestris factis loquor, nec uereor ne haec mea uestrorum beneficiorum praedicatio non grata potius quam adrogans uideatur... : Mas, como me foram dadas por vós, como são atacadas pela língua daquele indivíduo, por cuja mão, as coisas antes destruídas, vós devolvestes, com as vossas mãos, a mim e a meus filhos, não é de minhas ações que falo, mas das vossas ações, e não receio que esta minha proclamação de vosso benefício pareça orientado menos pelo reconhecimento do que pela arrogância (Cícero, DHR, 16).

 

Termos de uso profano
com origens religiosas

Neste item, apresentaremos vocábulos utilizados no texto estudado que portam consigo conotação ou referência a concepções religiosas. Se a referência ou a conotação, ou mesmo a alusão, não parece clara, é nosso objetivo apontá-las. Selecionamos verbos, advérbios, substantivos e adjetivos.

No grupo de vocábulos a seguir, formados todos a partir do prefixo-preposição con-, observamos a pertinência da idéia nele contida da associação, parceria, pacto, conjunto, ação conjugada etc. e tais elementos sendo considerados como recomendáveis e valiosos, e também ilustrativos do espírito religioso romano que se nutre e se confirma nos laços sociais: consedeo (sentar-se juntamente), comitium (comício, reunião para fins eleitorais), collega (colega), collegium (colégio, confraria), colligare (coligar), consessus (assembléia), consurrectio (levantar simultâneo).

Os dois verbos a seguir têm por base de significado etimológico o sentido de falar, dizer: fateor e praedico. Em fateor, que significa confessar, reconhecer, existe a mesma raiz de fas, fari: falar. Em praedico, que significa publicar, predizer, pressagiar, encontramos o radical de dico, dizer; praedico seria dizer antecipadamente.

Os dois verbos a seguir têm o mesmo prefixo-preposição que significa intermediação: interrogo e intellego. Interrogo significa interrogar, perguntar e intellego significa entender, compreender. Introspicio significaria olhar para dentro, formado de intro + spicio.

Os nomes (substantivos e adjetivos) que se seguem referem-se a atributos e condições importantes quanto ao ser religioso, quanto à prática religiosa e social. Seguem os nomes e suas respectivas correspondências em português: dedecus (desonra) dignitas (dignidade), disciplina (disciplina), grauitas (gravidade, seriedade), honor (honra), improbitas (improbidade), religio (religião), caelestis (celeste), clemens (clemente), constans (constante) , deuotus (devotado, dedicado), dignus (digno), diuinus (divino), diuinitus (de origem divina), grauiter (gravemente, seriamente), honeste (honestamente), improbe (sem probidade) obscure (obscuramente), religiose (religiosamente), iustus (justo).

Os termos a seguir remetem a situações da prática religiosa e dos rituais, cerimônias e cultos. Assim seguem os termos ou expressões que buscamos explicar. Foedus ferire seria imolar uma vítima para sancionar um tratado. Sancio e seu particípio sanctus seria estabelecer, consagrar, consagrado. Funus corresponde a funeral e funestus remete à cerimônia fúnebre: mortal, sombrio. Inexpiabilis significa irremediável, aquilo que não é passível de expiação. Festus significa festivo. Foedatus é particípio de foedo e significa manchado, maculado. Epulae corresponde ao banquete dos sacrifícios. Excusatio são as desculpas, excusas, justificativa. Exhaustus é particípio de exaurio e significa exaurido, consumido. Instauratio significa restauração. Arceo significa encerrar. Circumsaepio significa cercar em torno.

Os termos a seguir carregam em sua formação e utilização processos ligados à metáfora. Em exstinctor, como apaziguador, encontramos a idéia de apaziguar comparável à de fazer cessar, apagar, como se faz quando se apaga incêndios. Para insignis, convém lembrar a formação in + signum, que quer ilustre, marcado por um sinal particular. Para o verbo significo que significa sinalizar, também temos em sua formação o radical do substantivo signum: seria “carregar o sinal”, mostrar por sinais. A expressão ferre in oculis que quer dizer trazer sob bons olhos, nos remete ao fato de que quem ama tem alguém dentro, não o enxerga fora de si, ou seja, a afetividade é um processo de internalização. Para o substantivo ostium que significa porta, temos a imagem subjacente de boca como local que permite a entrada: do mesmo modo que o alimento entra na boca, o ser humano entra em sua casa, passando pela porta.

As fúrias ou eríneas aparecem no texto e remetem às três fúrias e o furor que lhes é característico. Assim temos: furiae (fúrias) furor (furor).

 

Conclusão

Este pequeno estudo atesta a importância do tema da religião na vida dos romanos, da extensão que tem na constituição do texto De haruspicum responsis e o peso que lhe atribui Cícero. Pelas ocorrências levantadas no texto, é possível verificar a extensão do campo semântico da religião nesta arenga judiciária de Cícero. Procuramos relacionar as ocorrências de itens do léxico com dados e fontes de pesquisa para constituir um estudo abalizado e pudemos verificar que esse campo da antropologia tende a nos conduzir para além das fronteiras do texto, se estivermos atentos ao fato de que a experiência religiosa tende a abarcar todas as dimensões da experiência humana. Ainda hoje, em nosso léxico, percebemos traços dessa antiga religião romana, seria preciso portanto reler os dados apresentados e estar atento à nossa língua portuguesa.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CÍCERO, M.T. Discours. Tomo XIII, 2: Sur la réponse des haruspices. Paris: Les Belles-Lettres, 1966.

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COULANGES, F. A cidade antiga. Estudos sobre o culto, o direito, as instituições da Grécia e de Roma. São Paulo: Hemus, 1975.

ERNOUT, A. e MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001.

GIARDINA, A. O homem romano. Trad. de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1992.

LEWIS, C. e SHORT, C. A latin dictionary. Oxford: Oxford University Press, 2002.


 

[1] Neste trabalho, as notas que sejam citações do texto da obra De haruspicum responsis virão indicadas entre parênteses, com o nome do autor (Cícero), seguidas da sigla DHR e o número do parágrafo onde se encontre a porção de texto citado. Resolvemos adotar este procedimento, porque a indicação de parágrafos, sendo de uso comum em várias edições de textos clássicos, pode facilitar o exame do texto latino, sem que a citação por página acabe direcionando e restringindo a consulta a determinada edição.

[2] Uma parte do monte Celículo, que é uma das sete colinas de Roma, a saber: Viminal, Quirinal, Aventino, Palatino, Esquilino, Capitolino, Celículo.