Till Eulenspiegel
e o Sacro Império Romano-Germânico
religião, sociedade e honra
na Idade Média Tardia

Elzi Helene Monjardim Amigo (UFRJ)
Isabel Rangel Lopes (UFRJ)

 

Introdução

Objetivo

A corrente pesquisa está sendo realizada juntamente à primeira tradução da obra Till Eulenspiegel para o português, e tem como intuito depreender as críticas sociais contidas na mesma a partir de sua língua literária, o que é possível devido ao fato de esta tratar-se de um Volksbuch. Os Volksbücher (novelas populares) são livros que apresentam narrativas populares voltadas para o cotidiano de sua época, e cujo público alvo era [...] aquele ser humano não privilegiado no estratificado mundo feudal alemão, salvas algumas poucas exceções (Bragança Jr., 1996).

O uso da língua literária alemã do século XVI constitui-se em fundamental instrumento lingüístico para uma melhor depreensão de um universo histórico, visto que ela pode servir de corpus tanto para o estudo etimológico da língua como também para uma análise da realidade social da época sob o ponto de vista de indivíduos oriundos das camadas populares européias dos séculos XIV a XVI. Essa pesquisa, uma vez que lida diretamente com o texto original de Till Eulenspiegel, não pode se desviar dos processos etimológicos da língua, posto que estes são de fundamental importância para a melhor compreensão textual. Todavia, cabe ressaltar que as explanações aqui feitas focalizam especificamente a estrutura social do Sacro Império Romano-Germânico e as críticas que a ela são referentes, lançando mão, sempre que necessário, de questões histórico-literárias, a fim de possibilitar uma melhor análise da obra.

 

Dados da obra em questão

Uma vez que Till Eulenspiegel já pertencia à prosaica tradição oral do Sacro Império Romano-Germânico, a obra constitui-se de uma compilação de 95 de seus contos, os quais registram as picardias do personagem-título durante toda a sua vida. A primeira transcrição da obra encontra-se em Frühneuhochdeutsch (primeira fase do alemão moderno), tendo sido impressa em Estrasburgo no ano de 1515. No prefácio desta, um certo senhor X. conta que em 1500, atendendo ao pedido de alguns cavalheiros, recolheu e transcreveu as histórias (Cf. Geremeck, 1995: 249). Ainda através de tal prefácio, pode-se ter acesso às fontes as quais ele recorreu, para que melhor a pudesse compilar. Alguns estudiosos defendem que esse compilador não identificado seja Hermann Bote, escrivão de Braunschweig, pelo fato de este ter anotado em sua crônica do mundo, já em 1480, o ano de 1350 como sendo o da morte de Eulenspiegel (Cf. Geremeck, 1995: 249).

Devido à grande importância e contribuição que deixa à História e à Literatura, a obra foi posteriormente traduzida para diversas línguas como inglês, francês e espanhol. Contudo, não é muito grande o número de pesquisas e fontes sobre o tema, assim como até a presente data não existe uma tradução para a língua portuguesa que tenha sido publicada.

 

Eulenspiegel e o Romance Picaresco

O fenômeno picaresco surge apenas na Espanha do Século de Ouro, definida por Pierre Villar (1982: 15) como:

uma sociedade consumida pela história, um país no auge das contradições internas, no momento em que uma crise aguda mostra em cheio toda a sua indigência, país onde o vadio improdutivo, o indivíduo que vivia de rendas e agora está se arruinando, o bandido fascinante e o mendigo desempregado andam pelas ruas e pelas estradas.

A tentativa de caracterizar o conceito de romance picaresco parte de princípios como o da perspectiva moral, social e psicológica. Porém, sempre encontrando exceções, nem mesmo a crítica especializada consegue definir o conceito de romance picaresco. Genericamente, pode-se compreender o conjunto das obras picarescas entre a publicação de Lazarilho de Tormes (1554) e a edição de Vida y hechos de Estebanillo González (1646), ambas de autoria anônima[1].

Narrada geralmente em primeira pessoa por um anti-herói de baixo nível social, insensível ante a desgraça e que despreza cinicamente todo e qualquer tipo de lei e/ou hierarquia social, a literatura picaresca espanhola traça um quadro da vida social daquele tempo a partir de uma perspectiva popular. Essa literatura ganha traços cômicos devido à linguagem característica das camadas populares e ao uso de conseqüentes jargões. O pícaro, que por vezes se revela como tendo espírito puro, traz à tona, a partir de sua desqualificação, as relações entre governados e governantes, entre os papéis sociais de cada grupo, as normas morais e os comportamentos coletivos vigentes, os destinos individuais (Geremeck, 1995).

Não seria o caso de tentar inserir a obra Till Eulenspiegel entre os vários consagrados romances picarescos, não apenas por uma questão anacrônica, visto que tal conceito surge algum tempo depois de sua publicação, mas também devido ao fato de que, além de não se tratar propriamente de um romance – por ter sido estruturado em forma de contos –, Till Eulenspiegel não possui algumas das ditas principais características presentes em um romance picaresco, como, por exemplo, o cunho autobiográfico da narrativa. Porém, há em Eulenspiegel algumas das peculiaridades do que viria a compor o pícaro espanhol, sendo elas: histórias narradas com uma sucessão de peripécias de seu protagonista; servidão do protagonista a vários amos, sendo eles das mais diversas camadas sociais; utilização de vocabulário popular, por vezes chulo; exposição do ódio dos oprimidos com relação às classes socialmente privilegiadas. Assim, Eulenspiegel poderia sim ser tomado, não necessariamente como um pícaro, devido aos obstáculos supracitados, mas como um precursor do que viria a ser o pícaro propriamente dito.

Outra característica comum aos romances picarescos espanhóis e à obra aqui analisada é o fato de ambos terem sido escritos num período, no qual suas respectivas sociedades se encontravam em total fragmentação. Como já dito, a Espanha passava por um momento em que,

Habituada em seu período áureo a viver de rendas, de repente compreende que o milagre das riquezas da “Índia” e da vida fácil é uma ilusão e que não se pode viver “fora da ordem natural das coisas”, que o mito de Cocagne, da Schlaraffenland, do país onde escorrem o leite e o mel, é um mito que não se realiza na Terra (Elliot, 1961).

Também o Sacro Império Romano-Germânico dos séc. XIV a XVI passava por uma fase na qual a ordem do dia instava mudanças. Este último, que deixou de ser feudal com grande atraso histórico com relação aos demais impérios europeus, possuía seu poder político descentralizado, enquanto toda a sociedade européia rumava a passos largos para o capitalismo. As mudanças de valores políticos, morais e religiosos eram iminentes e indomáveis; a sociedade, contudo, permanecia mascarada por estamentos intransponíveis. Paralelamente, esta mesma sociedade que tinha sua posição social “pré-determinada por Deus” via crescer a nova classe de trabalhadores livres, que obtinha cada vez mais espaço na sociedade e que tinha, com isso, cada vez mais importância econômica para a mesma. Percebe-se, então, que tanto na sociedade de Eulenspiegel quanto na sociedade de Lazarillo há uma grande necessidade popular de retratar sua crítica à sociedade na qual se inserem; por isso há tanta identificação por parte da população mais pobre com essas manifestações literárias.

Assim como o pícaro espanhol tem suas aventuras pautadas no fato de o clima social de sua época favorecer o parasitismo, Eulenspiegel aproveita-se da estrutura social do Sacro Império Romano-Germânico, que dava aos artífices a possibilidade de viajar pelo império com o intuito de adquirir maior aprendizado e de trocar experiência com outros de seu ramo (Cf. Geremeck, 1995: 247). Tem-se, então, em ambos os casos, espertalhões que, ora contando com a generosidade e com a possibilidade de usufruir as migalhas da fartura de bens de consumo, ora contando com a “fácil sobrevivência” em cidades nunca dantes visitadas, abrem seus caminhos rumo ao desconhecido, entrando em contato com as mais diversas variações culturais, suas peculiaridades comportamentais, tradições morais e religiosas e suas inquietações quanto à sociedade em vigor. Cabe salientar, ainda, que, ao contrário do ocorrido com as histórias sobre Eulenspiegel, que foram publicadas pertencendo anteriormente à tradição oral de seu povo, Lazarillo de Tormes obteve sucesso a partir da repercussão de suas inéditas aventuras no imaginário popular espanhol.

 

Till Eulenspiegel

Till Eulenspiegel é, até os dias de hoje, uma grande incógnita. Alguns estudiosos defendem que ele realmente existiu, tendo nascido da cidade de Braunschweig em 1300 e morrido em Mölln em 1350, como conta a história. Contudo, não há nenhuma prova concreta de que sua existência tenha sido verídica, embora haja em diversas cidades alemãs monumentos e mesmo um museu em sua homenagem (Till Eulenspiegel-Museum, em Schöppenstedt), onde se encontra a sua suposta lápide. Nas estátuas, assim como nos diversos desenhos encontrados, Eulenspiegel é representado como um bobo da corte, de vestes coloridas e espalhafatosas. De fato, há o sobrenome “Eulenspiegel”; entretanto, a semântica que esse nome abrange é extremamente coerente com as características do personagem e sua história. Em alemão, Eule significa coruja e Spiegel, espelho. A primeira é o símbolo da astúcia e o último, um objeto que reflete. Nos contos, o protagonista, ao levar expressões idiomáticas “ao pé da letra”, age com astúcia e prega peças nas pessoas que as proferiram. Pode-se chegar à conclusão que ele é uma espécie de espelho, colocando aquele com quem fala face a face com as próprias palavras, portanto, consigo mesmo. E mais: ao agir de forma tão sagaz, deixa em todos a idéia de que as palavras são traiçoeiras, podendo ser visto como um dos primeiros “filósofos da linguagem” (Cf. Geremeck, 1995: 249).

Outra característica marcante nesse anti-herói (Cf. Geremeck, 1995: 201) medieval é o carisma obtido do povo, o que é uma possível conseqüência da identificação de um injustiçado estamento com um nome que pertencia a esse mesmo meio. Sua fama foi reconhecida em grande parte da Europa, posto que sofria constantes perseguições ao provocar a ira de certos poderosos como reis, clérigos e príncipes. Isso teve como conseqüência o fato de diversas regiões européias terem uma versão distinta de seus contos e mesmo de como era sua aparência, de acordo com a cultura local.

Por outro lado, Eulenspiegel também tinha seu lado perverso, inclusive muito mais latente que o lado bondoso. O curioso é que essa maldade não é proveniente de uma possível auto-defesa de um mundo difícil, mas manifesta-se como uma característica inerente ao personagem. O carisma conquistado pelo leitor e mesmo o aspecto cômico da obra funcionam como um pretexto para a crueldade desse anti-herói parecer apenas engraçada e não despertar no leitor a censura ou mesmo o espanto. Fosse em outra história, ele certamente seria alvo de grande reprovação.

Pela falta de materiais que comprovem a existência de um Eulenspiegel histórico, a pesquisa restringiu-se apenas àquele folclórico, que, ao contrário do primeiro, é responsável por um grande legado para a Literatura, ou mesmo para a História, posto que expõe pensamentos e comportamento populares da época, bem como aspectos de toda a sociedade de então.

 

Exemplos

À guisa de exemplificação, é válido apresentar trechos de Till Eulenspiegel, nos quais a personagem principal se aproveita de todas as oportunidades, para pregar peças em integrantes dos três estamentos vigentes – clero, nobreza e plebe – e também em trabalhadores livres, que compunham a crescente classe marginal que hoje é normalmente conhecida como “burguesia”. Já no caso de distorção de sentido de ditados populares, por exemplo, a crítica que Eulenspiegel faz deixa de ser direcionada a um setor específico da sociedade, voltando-se, assim, às crenças e tradições da sociedade como um todo.

No décimo segundo de seus contos[2], Eulenspiegel é aceito por um padre para trabalhar como sacristão em sua igreja. Ao ajudar o padre a amarrar sua batina, para dar início à missa, o padre acaba por peidar[3] de modo a ressoar por toda a igreja. Surpreso, Eulenspiegel pergunta ao padre se ele oferece “isso” ao Nosso Senhor em vez de incenso. Revoltado com a ousadia do sacristão, o padre diz:

“Was sagst du darnach? Ist doch die Kirch mein, ich hab die Macht wohl, daß ich möcht mitten in die Kirchen scheißen”. Eulenspiegel sprach: “Das gelt Euch und mir ein Tonn Biers, ob Ihr das thut”.

“O que você está perguntando? Esta é minha igreja. Eu tenho autoridade para fazer cocô no meio da igreja”. Eulenspiegel disse: “Que valha um barril de cerveja para o senhor ou para mim, caso o senhor consiga fazer isso”.

Assim, aproveitando-se da denotação das palavras proferidas pelo padre, Eulenspiegel acaba por ganhar essa aposta, visto que o padre não fez cocô “milimetricamente no meio da igreja”. Então, vendo a vergonha pública pela qual o padre foi levado a passar, até mesmo sua governanta lhe diz que esse malandro seria capaz de levá-lo à total desonra.

No décimo oitavo conto, nosso “filósofo da linguagem” questiona os dizeres de um ditado popular bastante corriqueiro em sua sociedade: “Dá-se pão a quem tem pão”. Isso ocorreu quando, num rigoroso inverno, Eulenspiegel comprou, com o pouco dinheiro que tinha, pães, os quais pretendia vender. Então, pôs-se a fazer malabares, a fim de atrair fregueses, e, enquanto corria atrás de um cão que lhe tinha tomado um dos pães que ele deixara em uma mesinha, vieram uma porca e dez jovens leitões e levaram em seus focinhos todos os pães que haviam restado. Assim, Eulenspiegel começou a rir e disse:

Nun sehe ich offenbar, daß die Wort falsch seind, als man spricht: wer Brot hab, dem giebt man Brot; ich hatt Brot, und das ward mir genommen.

Agora eu vejo claramente que as palavras são falhas quando se diz ‘dá-se pão a quem tem pão’. Eu tinha pão, e isso foi tirado de mim.

O vigésimo sexto conto narra a vez em que Eulenspiegel foi a uma aldeia para qual havia sido proibido de retornar. Com o simples intuito de provocar o duque de lá, o que lhe ameaçara de morte no caso de vê-lo novamente em suas terras, comprou terra de um fazendeiro qualquer e colocou-a em uma carreta. Então, Eulenspiegel esgueirou-se em sua carroça e dirigiu-se com seu cavalo ao castelo da região. Com terras até o ombro, lá ele ficou sentado em sua carroça à espera do tal duque, que, quando chegou, disse:

Eulenspiegel, ich hatt dir mein Land verboten, wann ich dich darin fund, so wollt ich dich henken lan.“ Eulenspiegel sprach: „Gnädiger Herr, ich bin nit in Euerm Land, ich sitz in meinem Land, das ich gekauft hab für einen Schilling, und kauft das von einem Bauern, der sagt mir, es wär sein Erbteil.

Eulenspiegel, eu lhe proibi em minhas terras e, se eu lhe encontrasse por aqui, mandaria enforcá-lo”. Eulenspiegel disse: “Misericordioso senhor, eu não estou em suas terras, estou sentado em minhas terras, as quais comprei por um xelim. Eu as comprei de um fazendeiro que me disse que elas eram parte de sua herança.

Desse modo, o duque não encontrou outra escapatória senão ordenar que Eulenspiegel saísse com suas terras de suas terras[4] e que para lá não mais retornasse. Eulenspiegel abandonou sua carroça em frente ao castelo, deixando, assim, que suas terras permanecessem lá até os dias de hoje[5].

O trigésimo terceiro de seus contos narra como Eulenspiegel hospedou-se em Bamberg e lá comeu por dinheiro. Mais uma vez, Eulenspiegel usou a seu favor as palavras que lhe foram ditas. Segue abaixo seu diálogo com a estalajadeira:

Eulenspiegel der sprach: „[…] Worum oder wieviel soll ich hie essen und trinken?“ Die Frau sprach: „An der Herren Tisch um 24 Pfennig, und an der nächsten Tafeln da bei um 18 Pfennig, und mit meinem Gesind für 12 Pfennig.“ Darauf antwortet Eulenspiegel: „Frau, das meiste Geld das dient mir allerbest.

Eulenspiegel disse: “[…] Pelo que ou por quanto eu posso comer e beber aqui?” A mulher disse: “À mesa dos senhores, por 24 centavos de Marco; à mesa ao lado, por 18 centavos; e com minha criadagem, por 12 centavos.” A isso respondeu Eulenspiegel: “Senhora, quanto mais dinheiro, melhor me serve.

Assim, quando já estava satisfeito e havia comido e bebido todo o possível, Eulenspiegel quis partir e a senhora pediu-lhe o dinheiro pela comida. Ele disse que ela sim deveria lhe pagar, pois este fora o combinado. Vê-se, então, que o malandro se aproveita da ambigüidade gerada pela fala dessa senhora ao dizer que lá ele poderia “comer por alguns Marcos”. Obviamente, a mulher recusa-se a pagar a ele, mas fica tão irritada que aceita que ele vá embora sem pagar por seu prejuízo, desde que ele jamais volte à sua casa.

Na quadragésima sétima história, Eulenspiegel torna-se aprendiz de alfaiate. Esse conto é muito rico em jogos com a linguagem, visto que Eulenspiegel baseia-se nisso para pregar três diferentes peças em seu mestre. A primeira acontece da seguinte forma:

Als er nun auf die Werkstatt saß, da sagt der Meister: „Knecht, willst du nähen, so näh wohl, und näh daß man es nit sieht.“ Eulenspiegel sagte ja, und nimmt die Nadel und Gewand darmit und kreucht unter ein Bütten und steppt ein Naht über ein Knie, und begund so darüber zu nähen. Der Schneider stund und sah das an und sprach zu ihm: „Was willst du thun, das ist seltsam Nähwerk.“ Eulenspiegel sprach: „Meister, Ihr saget, ich sollt nähen, daß man nit säh, so sieh es niemand.“

Quando estava na oficina, o mestre disse a ele: “Ajudante, quando você costurar, costure bem, bem o suficiente, de modo que não se veja”. Eulenspiegel disse sim, levantou-se, pegou agulha e tecido e rastejou com eles para baixo de um tonel. Ele fez o pesponto sobre o joelho e começou a costurar sobre ele. O alfaiate levantou-se, observou-o e disse a ele: “O que você quer fazer? Que modo estranho de costurar.” Eulenspiegel disse: “Mestre, o senhor disse que eu deveria costurar de modo que não se visse; assim ninguém vê.”

Com isso o mestre não se irritou; pediu apenas que Eulenspiegel passasse a costurar de modo que se pudesse ver. Porém, aproximadamente três dias depois, o mestre estava cansado, e sucedeu que:

[…] da lag ein grauer Baurenrock halb ungenähet, den warfe er zu dem Eulenspiegel und sagt: „Seh hin, mach den Wolf recht aus, und gang darnach auch zu Bett.“ Eulenspiegel sagt: „Ja, geht nur hin, ich will ihm recht thun.“ Der Meister ging zu Bett und dacht nit daran. Eulenspiegel nimmt den grauen Rock, und schnitt den auf, und macht daraus einem Kopf als ein Wolf, darzu Leib und Bein, und sperrt das mit Stecken von einander, daß es sahe einem Wolf gleich […].

Um manto cinza de camponês estava lá ainda com a costura pela metade. Ele arremessou-o para Eulenspiegel e disse: “Olha aqui, termine o lobo e vá também para a cama em seguida.” Eulenspiegel disse: “Sim, pode ir, eu logo farei tudo certinho.” O mestre foi para cama e não pensou em nada ruim. Eulenspiegel pegou o manto cinza, abriu-o com um corte e fez com ele uma cabeça como a de um lobo e ainda corpo e pernas, e fez tudo o mais afastado possível um do outro, para que se parece com um lobo de verdade.

Quando o mestre acordou, assustou-se com o lobo que seu aprendiz fizera, mas logo viu que se tratava de tecido. Revoltado, perguntou a Eulenspiegel que diabos ele havia feito e obteve como resposta que o mesmo apenas teria seguido suas ordens. O mestre explicou que apenas tinha chamado de lobo o manto cinza de camponês e, visto que isso acontecera apenas uma vez, conformou-se.

Passaram-se quatro dias e o mestre estava novamente cansado, mas pensou que ainda era muito cedo para que seu ajudante também fosse dormir. Lá havia um manto que estava pronto. Então:

[…] so nimmt der Schneider den Rock, und die ledigen Ärmel an den Rock, und warf die zu Eulenspiegel und sagt: „Wirf die Ärmel an den Rock, und gang darnach zu Bett.“

O alfaiate pegou-o junto às mangas soltas, arremessou-os para Eulenspiegel e disse: “Jogue as mangas no manto e depois vá dormir”.

Como não se pode esperar nada diferente em se tratando de Till Eulenspiegel, ele pendurou o manto em um cabide e passou toda a noite “jogando as mangas no manto”, quando, na verdade, ele precisaria apenas costurá-las no mesmo. Quando seu mestre acordou, foi ao quarto de Eulenspiegel, que continuou com seu árduo trabalho. O alfaiate irritou-se de verdade e chamou de palhaçada o que seu ajudante estava a fazer. Eulenspiegel disse que mais uma vez estava tão somente obedecendo as ordens que lhe haviam sido dadas e, quando o alfaiate alegou que não fora isso que ele quis, ele disse:

Das hab der Teufel den Lohn. Pfleget Ihr ein Ding anders zu sagen, dann Ihr es meinet, wie könnet Ihr das so eben reimen? […]

Vá para o inferno! Se o senhor costuma dizer coisas diferentes do que pensa, como eu poderia compreender? […]

E, assim, mais uma história acaba com aborrecimentos causados por nosso esperto malandro, que é obrigado malandro a migrar para uma nova região.

 

Considerações finais

Tem-se, no último exemplo aqui exposto, uma perfeita representação do artifício empregado por Eulenspiegel, para fazer com que todos à sua volta se aborreçam e exponham o que há de mais primitivo em seu ser. É comum a todas as culturas o constante uso de expressões idiomáticas ou de simples metáforas em seu dia a dia, e é exatamente tomando como álibi o sentido denotativo de tudo que lhe é dito que Eulenspiegel apronta suas travessuras.

Em se tratando de uma novela popular, Eulenspiegel tem a oportunidade de lidar com as pessoas em situações que para elas são rotineiras: o padre em sua igreja, a estalajadeira na lida com seus hóspedes, o alfaiate em sua rotina da oficina etc. Um padre deve ser um homem calmo e generoso; uma estalajedeira, tratar amistosamente seus hóspedes; um mestre, ser paciente e transmitir com clareza seus ensinamentos a seus aprendizes. Eulenspiegel, em suas trapaças, mostra-nos que nem tudo é como parece ou como deveria ser. Como se pode constatar a partir dos exemplos dados, ele faz com que “pessoas teoricamente de bem” tenham sua moral (des)construída e, com isso, exponham toda a ira que pode existir no peito de um ser humano, esteja ele no nível social que estiver, mostrando a todos que os homens são genuinamente iguais.

A partir da obra Till Eulenspiegel, podem-se fazer profundos recortes relativos a peculiaridades presentes na literatura da época, à estrutura social do Sacro Império Romano-Germânico e a particularidades culturais de cidades e regiões percorridas pelo protagonista. Porém, o maior intuito da presente pesquisa é possibilitar não só ao público acadêmico, mas também a eventuais curiosos, o estudo de um legado da cultura germânica entre os séculos XIV e XVI, a partir da tradução integral de Till Eulenspiegel, uma obra de inquestionável representatividade para a época. Acredita-se que, com isso, este estudo se insira nos postulados da ciência-mãe da linguagem, a Filologia.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Boockmann, Hartmut et allii. Miten in Europa: deutsche Geschichte. Berlin: Siedler, 1984.

Bragança Júnior., Álvaro Alfredo. Narr e o pícaro na literatura alemã: (des)caminhos na sociedade dos séculos XV e XVI. In: Anais do Congresso Brasileiro de Professores de Alemão, 3. Campinas: ABRAPA, 1996. p.458-466.

Braunschweig. Disponível em:                                       www.braunschweig-touren.de/Seiten/Till_Eulenspiegel.htm. Acesso em: 13 set 2006.

Eulenspiegels Spuren. Disponível em:                        www.moelln.de/moelln/geschi/till.htm. Acesso em 13 ago 2006.

Francis, Alan. Picaresca, decadencia, historia: aproximación a uma realidad historico-literaria. Madrid: Gredos, 1978.

Geremek, Broniskaw. Os filhos de Caim: vagabundos e miseráveis na literatura européia 1400-1700. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

Melo, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1957.

Schöppenstedt. Disponível em: www.schoeppenstedt.de. Acesso em 13 ago 2006.

Till Eulenspiegel-Museum. Disponível em:               www.eulenspiegel-museum.de. Acesso em 13 ago 2006.

Villar, Pierre. O tempo do Quixote. In: Desenvolvimento econômico e análise histórica. Lisboa: Presença, 1982.


 


 

[1] Há estudos que versam sobre as possíveis autorias das referidas obras, contudo, não parece necessário ao presente momento maior aprofundamento da questão.

[2] Numeração de acordo com a ordem dos contos contida na edição de 1969, a qual está sendo traduzida para o português.

[3] De acordo com o original, fürzen. Como já apresentado, é comum a ocorrência de termos vulgares em Volksbücher.

[4] Trocadilho presente no texto original.

[5] O conto diz que as terras de Eulenspiegel ainda se encontrariam em frente à ponte da aldeia.