A Música e o Ensino da Língua Portuguesa

Darcilia Simões (UERJ, PUC-SP e SUESC)
Natália Correia (UERJ)
Thaís Araújo(UERJ)
Marilza Maia (UERJ)
Manuela Trindade Oiticica (UERJ)

 

Um preâmbulo necessário

São históricas as discussões acerca do insuficiente desempenho escolar no âmbito da leitura e produção de textos em língua materna. Este problema se reflete no rendimento escolar em geral, uma vez que todas as disciplinas dependem de domínio do vernáculo. Discentes e docentes apresentam dificuldades na expressão lingüística, o que é comprovado pelas dificuldades de comunicação (sobretudo escrita) nos exercícios e tarefas. Docentes se assustam ante as respostas obtidas. Discentes reclamam do não-entendimento dos enunciados. Em suma, a comunicação lingüística em português não anda bem.

Em função dessas dificuldades, vimos desenvolvendo estudos e pesquisas que possam minimizar os problemas de comunicação em sala de aula e, por conseguinte, auxiliar a formação de usuários de língua mais competentes no que tange à fluência de leitura e produção textual.

A despeito de todas as intervenções dos recursos audiovisuais, da informática, etc, as aulas de português (com poucas exceções) continuam sendo tempo-espaço de muito esforço e pouco resultado para professores e alunos. Por conseguinte, o estudante hodierno, em meio aos ene estímulos que o envolvem (e às vezes sufocam), precisa encontrar significado nas coisas a que se dedica. Logo, o paradigma didático-pedagógico mais ajustado à ansiedade do aluno contemporâneo é a chamada aprendizagem significativa (cf. Moreira, 1999: 20), que consiste num processo cuja essência é que idéias simbolicamente expressas sejam relacionadas – de forma não-arbitrária e não-literal – à estrutura cognitiva do aprendiz, ou melhor, ao que ele já sabe. Um dos caminhos para que se atinja tal modelo pedagógico é o trabalho interdisciplinar.

A interdisciplinaridade articula o conhecimento sem dissolver a especificidade dos campos do saber nem negar as disciplinas escolares. Todavia acaba com a prática escolar fragmentada. A contextualização, por sua vez, reinsere o conhecimento específico no âmbito da vida, gerando significado, transformando definições em conceitos. Disto decorrem as autonomias de pensamento e de atuação onde cada qual se vê como um e como parte de um grupo maior. A formação para a autonomia, a diversidade e a constituição e o reconhecimento de identidades pressupõem formação na autonomia, na diversidade, constituindo e reconhecendo identidades. O desenvolvimento pessoal e a preparação para a cidadania e o trabalho pressupõem a construção da efetiva autonomia intelectual do educando, para que ele possa transitar com desenvoltura pelos diversos contextos da vida em sociedade.

Levando em conta outras pesquisas realizadas ou orientadas, chegamos à conclusão de que é urgente renovar as aulas de português, para que o aluno se torne usuário eficiente da língua nacional e, por conseguinte, atinja a condição de aluno produtivo em todas as disciplinas, uma vez que, obtida a fluência lingüística indispensável, este aluno se tornaria capaz de ouvir/ler/compreender os textos que se lhes apresentassem, da mesma forma que estaria apto a produzir textos (orais e escritos) compreensíveis para outrem.

Silva (2004) afirma que trabalhar com textos de tipologia diversa e produzidos por diferentes setores da cultura nacional significa, em última análise, dar ao aluno meios e instrumentos para uma leitura plural do mundo. O trabalho da pesquisadora levou a termo uma de nossas discussões acerca da implementação de aulas de português a partir de letras de música brasileira.

Aproprio-me então de palavras de Silva sobre a importância da expansão lingüística e do conhecimento de mundo advindo do trabalho com textos de modalidades diversas, o que daria ao estudante condições de aprimoramento da capacidade de expressão verbal em sua ampla variação idiomática, com ênfase no estilo padrão (a língua dos documentos).


 

Fundamentação teórica inicial

Na perspectiva dialectológica

A elitização das formas de dizer acaba por gerar uma idéia distorcida a respeito do domínio da língua nacional. É comum ouvir-se algo como “a gente fala tudo errado mesmo!” se a gente quiser falar de acordo com a gramática fica muito difícil” etc. E essa distorção é intensificada pela atitude escolar que determina a variante padrão (ou norma culta) como a única forma correta de usar a língua portuguesa. Isto promove um distanciamento absurdo entre o que se ensina da língua e o que se usa da língua. Chega-se a pensar que aprender o português dito correto é tão difícil quanto aprender uma língua estrangeira.

A política do ensino do idioma nacional não corresponde aos anseios lingüísticos da população, uma vez que sonega a variedade decorrente das dimensões continentais de nosso país, olvidando a caracterização de um povo plural na cor, no credo, nos usos e costumes, enfim, na forma de viver. Para tanto, o aluno deve ser posto em contato com a variedade sem perder de vista que seu aprendizado escolar será pautado no uso padrão (ou culto, para alguns).  

É preciso situar claramente a variante padrão no âmbito sócio-político, para que o estudante tome consciência da necessidade dessa modalidade de língua em benefício da comunicação ampla entre os usuários do português do Brasil. Sem alimentar a idéia de que um uso lingüístico possa ser melhor ou pior que outro, a variante padrão pode passar a ser buscada pelo estudante, ao invés de imposta pela escola. Para tanto é preciso demonstrar, através dos textos e de seu compromisso comunicacional, a necessária adequação de registro e a variedade estrutural decorrente da pluralidade de estilos à disposição do falante.  

Entendo que a política do ensino da língua para o terceiro milênio tende a ser eminentemente semiótico-estilística, sem abandonar os domínios gramaticais, mas privilegiando a forma e seus efeitos expressivo-comunicativos. Destarte, a atitude elitizante daria lugar a uma postura interacional, e a estilística não mais seria vista como antagonista da gramática, mas como sua coadjuvante, uma vez que viria ao texto todas as vezes que houvesse necessidade de um contorno expressivo especial e indispensável ao seu apuro expressivo-comunicativo. 

Minha preocupação maior, enquanto estudiosa do vernáculo, tem sido o ensino e, durante minhas pesquisas, descobri que o estudo do texto abarca a dualidade que o define como objeto de significação e objeto de comunicação. Por isso, o estudo do texto com vistas à construção de seu (seus) sentido(s) só pode ser entrevisto como o exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais ou sócio-históricos de produção do sentido. Convém observar que a tomada dos mecanismos internos é justamente a preocupação de natureza gramatical, enquanto os fatores contextuais ou sócio-históricos ficam por conta das abordagens semióticas e estilísticas.

Para ilustrar minhas palavras quanto a essa ótica metodológica sobre a abordagem dos conteúdos vernáculos, esclarecemos que as relações estabelecidas entre os signos lingüísticos perpassam por vários níveis de construção de sentido. Os que têm interessado à observação no projeto que venho desenvolvendo são o nível semiótico: por que isto significa o que significa? E o nível estilístico: o que isto pode provocar no leitor, enquanto impressão ou sugestão? Para tanto, há que se atinar para o potencial do signo lingüístico, como material disponível para o falante nativo (estamos tratando de língua materna – L1), por meio do qual ele interagirá com os seus pares.   

Nessa ótica, o ensino do idioma ganha contornos bastante diversos do que nos legou a escola tradicional. Proponho hoje um ensino não apenas normativo, mas interacionista, progressista, produtivo. Observando-se os valores funcionais dos signos e as conseqüências estilísticas e semióticas de seu emprego nos enunciados, a gramática não será trazida de fora para dentro, mas emergirá dos textos e das necessidades comunicativas. Portanto, vincular-se-á aos atos de fala (cf. Searle, John R. 1981. Os actos de fala) e terá valores ajustados e ajustáveis às necessidades enunciativas.   

Trata-se de um trabalho em que a gramática vai ao plural e será estudada em conformidade com a modalidade de texto em que estiver inserida. É um estudo gramatical contextualizado. É um estudo que não tem a nomenclatura como fim, mas como conseqüência. É um estudo que não visa às classificações absolutas, mas a uma relativização funcional dos elementos da língua, de suas relações e de seus mecanismos. Trata-se, portanto, de uma proposta metodológica em que nada é proibido desde que seja adequado e oportuno.

Ilustrando: Estudar tipos de sujeito, de predicado, classes gramaticais etc. deve ser o atendimento de uma necessidade de entendimento de relações, como: A gente somos inútil! (In “Inútil” – de Ultraje a rigor)

Por que tal enunciado soa mal em nossos ouvidos? Porque estamos habituados a ouvi-lo como A gente é inútil ou Nós somos inúteis. Logo, a dissonância causada pelo desrespeito à concordância – seja verbal seja nominal – é o dado problemático. Portanto, cumpre aproveitar para examinar os valores: flexão nominal – singular/plural; flexão verbal – número-pessoal; concordância verbal e nominal: verbo/substantivo & substantivo/adjetivo, respectivamente etc.

Será que os erros de concordância sempre ocorrem por desconhecimento das regras ou será que é possível errar intencionalmente? Às vezes o erro é intencional e está articulado com o contexto, com a intenção de quem escreve. Um exemplo inequívoco disso é a letra "Inútil", do grupo "Ultraje a Rigor", usada como exemplo. Contudo isso só vale para textos artísticos ou informais. Os textos formais exigem domínio da forma padrão da língua que é regulada pela gramática normativa.  

Observe-se que à escola cabe informar das melhores maneiras de expressão levando em conta a indispensável adequação contextual. Assim sendo, todo radicalismo sobre esta ou aquela variante seria uma atitude leviana ou intempestiva e a impermeabilidade lingüística não é uma atitude pedagógica adequada, sobretudo em tempos de globalização, onde tudo é de todos e para todos. Por que não a língua?  

Verifica-se, então, que o enfrentamento das questões relativas à descrição e ao ensino da língua são preocupações históricas que vêm sendo trabalhadas pelos filólogos, gramáticos, literatos, professores, compositores, políticos etc. Logo, não se trata de questão simples de ser abordada, tampouco resolvida por um modelo qualquer de trabalho didático, sobretudo. No entanto, é preciso considerar-se que, dos modelos pedagógicos praticados podem emergir rotulações danosas para os estudantes (usuários do vernáculo), pelo simples fato de não dominarem a dita norma culta (ou padrão), apesar de comunicarem-se satisfatoriamente em suas variantes lingüísticas originais.

A responsabilidade da escola em propiciar meios e modos em que o educando se assenhorie progressivamente do dialeto prestigiosos sem que seja violentado com a desorganização ou a destruição do seu vernáculo (Cunha, 1985: 47) é patente. Entretanto, os excessos precisam ser combatidos, e os olhos da escola precisam ser abertos para a necessidade de uma comunicação lingüística plural, extensiva a todos os falantes de uma língua, independentemente de localização geográfica ou social.

O ensino eficiente da língua, portanto, deve calcar-se no uso desta; é o texto quem orienta um ensino produtivo, já que aquele é meio de veiculação das idéias; e é por meio do texto (oral ou escrito) que a comunicação é efetivada. O texto também traz consigo os compromissos do contexto: o que falo? para que falo? com quem falo. Dessa tríade de indagações surge uma de importância capital: como devo falar?

Aí ressurge a estilística como a grande organizadora dos ditos, dos enunciados. É por meio da estilística que se tem acesso a um conjunto de “instruções” sobre o funcionamento eficaz das formas de dizer. É de interesse estilístico também a escolha do registro que, por sua vez vai determinar a seleção vocabular e as combinações sintagmáticas que mais se adaptem à formulação textual pretendida.

Ao lado da estilística vem a semiótica, tomando os signos verbais ora como ícones, como índices ou como símbolos (classificação genérica) e viabilizando a seleção da seleção e a recombinação mais oportuna e eficaz, associando a necessidade expressiva à interpretabilidade do texto.

Pregando o domínio mais amplo possível das variedades da língua portuguesa do Brasil, como condição de eficiência comunicacional e de competência cidadã, alerto os docentes sobre a importância de uma metodologia interacionista, funcional, dinâmica, onde a estilística seja de fato trabalhada como ciência do estilo, e a semiótica seja convidada a participar da festa do idioma (classes de português), atuando como “bússola” para a composição dos melhores textos e, por conseguinte, para a leitura destes.

Por isso, a escola deverá apetrechar o aluno, se não com o uso imediato de qualquer variante, mas pelo menos com a disponibilidade de interagir com qualquer delas sem atitude preconceituosa ou discriminatória. A partir do convívio sistemático com a multiplicidade de usos lingüísticos e a observação cuidadosa dos valores expressivo-comunicativos dos componentes textuais, o usuário tornar-se-á versátil diante das potencialidades da língua e, conseqüentemente, estará preparado para desempenhar valioso papel social no BRASIL adulto do terceiro milênio.

 

Na perspectiva semiótico-estilística

O novo status da linguagem, entendida como forma plural de significações produtora de sentidos, e não mais como representação codificada do mundo, é este: possibilitar sentidos, significações, articulações, costurando todo o projeto educacional proposto pela LDB e preparando os alunos para a costura social de sentidos que ele irá enfrentar, enfim, preparando-os para a cidadania e para o trabalho.

Portanto, não mais devem ser excluídas da escola formas culturais de expressão, mídia, computadores, leituras de mundo etc. Ao contrário, não sobreviverão à pós-modernidade as escolas que não se transformarem em centros culturais por excelência, sobrepondo uma linguagem única, determinada e imposta às diversas linguagens do mundo pós-moderno. Pluralidade, interação, confluência e tolerância não são benesses do sistema, são necessidades que devem se aliar à analise, à comprovação e à leitura crítica – postulados do trabalho lingüístico. Para tanto a escola deve procurar ligar, articular saberes já adquiridos pelos indivíduos a outros cientificamente determinados que ampliem seu universo de significações e sentidos.

A legitimação deste processo de construção de conhecimentos e de participação social da/na escola fica a cargo da LDB e seus instrumentos regulamentares; a viabilização operacional e material a cargo dos órgãos públicos competentes (Estado Município e União); mas a efetiva construção do sentido de educar em tempos de globalização, liberalismo, violência e falta de perspectivas cabe aos educadores, educandos e à própria sociedade, em sua participação atuante e crítica.

Particularizando a nossa questão para o domínio da linguagem através de sua expressão mais atuante – o idioma nacional – vejamos quais as possíveis atitudes e perspectivas que se abrem para um trabalho mais efetivo e construtivo para com os alunos.

 

A música e o ensino da língua portuguesa:
o projeto

Para introduzir a proposta, leia-se:

Gosto de sentir a minha língua roçar / A língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar / E quero me dedicar / A criar uma confusão de prosódia / E uma profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões / Gosto do Pessoa na pessoa / Da rosa no Rosa / E sei que a poesia está para a prosa / Assim como o amor está para a amizade /

E quem há de negar que esta lhe é superior [bis]

E deixa os portugais morrerem à míngua / Minha pátria é minha língua / Fala, Mangueira! Fala! (Caetano Veloso, Língua: 1984)

Cremos que o excerto já anuncia o que se quer com o presente projeto: degustar a língua portuguesa em sua mais ampla variedade, com vistas a adquirir domínio sobre o idioma nacional. Para tanto, o projeto de Iniciação Científica A Música e o Ensino da Língua Portuguesa (UERJ/FAPERJ) objetiva a construção de estratégias didáticas de base semiótico-estilística destinadas à implementação de um ensino do idioma a partir da exploração de letras de música brasileira. O projeto contempla um indivíduo dotado de sensibilidade que precisa ser trabalhada em prol de seu aprimoramento estético, ético, moral e social. Sobre a estética da sensibilidade, os PCN asseveram que, como expressão do tempo contemporâneo, a estética da sensibilidade vem substituir a da repetição e padronização, hegemônica na era das revoluções industriais, com vistas a estimular a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado, a afetividade, para facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto, o imprevisível e o diferente.

A análise de letras de música vem servindo como base para a demonstração da competência lingüística de seus autores, tomada como referência para o aperfeiçoamento vernacular dos estudantes. Para tanto, não apenas a seleção dos objetos textuais se impõe, mas também a moldura teórica se mostra fator relevante para nossas considerações, uma vez que estas vão alicerçar a orientação de processos de leitura e produção textual que permitiriam ao indivíduo a sua realização como homem integral. À medida que chegamos a dispor de uma riqueza maior nos meios de expressão, um elemento comum entre as tendências diversas emerge mais claramente (cf. Fischer, 1973) e assim nos tornamos mais livres e felizes. Liberdade e felicidade são componentes da formação do homem integral, uma vez que sinalizam com a possibilidade de auto-realização.

Um ensino voltado para a eficiência comunicativa tem de pautar-se na relatividade dos signos e significados, ao mesmo tempo que precisa propiciar a percepção/interpretação da conexão entre aqueles na dinâmica da produção de sentidos. Nesse plano atua a teoria semiótica, uma vez que gerencia as oposições e correlações construídas na superfície dos textos e viabiliza a produção de interpretações plausíveis, ainda que não únicas. Ao lado disto ganha relevo a Estilística que vem dialogar com a Gramática Normativa e possibilitar a validação (ou não) de enunciados que se mostrem transgressores em determinados aspectos. A perspectiva de um ensino multidialetal fundamenta suas hipóteses em premissas estilísticas, uma vez que cada dialeto, falar ou uso lingüístico não é senão a manifestação de uma visão de mundo diferenciada e representada em linguagem.

Por isso, optamos pela exploração da letra-de-música em nossas aulas, já que neste gênero textual reconhecemos as seguintes vantagens: a) possibilidade de se lidar com um universo textual conhecido, propiciando assim a condução didático-pedagógica na linha da aprendizagem significativa; b) garantia de abordagem interdisciplinar imediatamente deflagrada entre literatura e música e c) oportunidade para a discussão das diferenças culturais a partir dos usos lingüísticos documentados nas letras-de-música.

Ao lado de uma perspectiva lingüístico-literária, persegue-se toda a gama de informações socioculturais emergentes dos textos, demonstrando assim a importância da leitura e da exploração desse material. Os estudos já realizados têm propiciado o levantamento de estratégias discursivo-textuais inscritas nas letras selecionadas ao mesmo tempo que permite a identificação da música como documento cultural.

Finalizando este aparte metodológico (e ideológico!), salientamos que as letras de música têm-se mostrado como material de alta produtividade nas classes de língua portuguesa. Como as considerações sobre a fala e a escrita incluem a dificuldade de operar com os fenômenos fônicos da língua (por conta de uma tradição de ensino que os tornou totalmente antipáticos), temos podido explorar a produção musical nacional (sobretudo a MPB) com vistas a descrever e documentar a riqueza de nossa língua seja numa perspectiva histórica (diacrônica) ou sincrônica.

Em virtude da explosão de produções ditas musicais no cenário nacional, verifica-se uma oportunidade de trazer à sala-de-aula a apreciação crítica das letras veiculadas pelo rádio, televisão, gravadoras etc. O preparo lingüístico do cidadão hodierno demanda capacidade de avaliação de textos, sobretudo no que concerne à informatividade. Em se tratando de criação musical, que, em princípio, seria produção artística, acresce-se a exigência de usos criativos da língua. Portanto, o material disponível no mercado fonográfico nacional coetâneo é abundante; e, do ponto de vista da documentação de usos lingüísticos variados, pode-se considerá-lo recurso didático farto e produtivo.

É muito mais fácil estimular a apreciação de letras-de-música que se ouvem nos rádios e tevês, pelo simples fato de ser material próximo do estudante, é objeto conhecido; difere dos textos “de proveta”, criados exclusivamente para exemplificação de fatos da língua e que, quase sempre soam artificiais ou mesmo absurdos.

Como nosso objeto imediato é a descrição da fala e da escrita e as intervenções de uma sobre a outra, as letras de música podem ser consideradas excelente corpus a ser explorado nas aulas que têm o registro escrito da língua como meta, contemplando os reflexos do que se diz no que se escreve.

Na seção seguinte, trazemos uma sugestão de trabalho com letra de música amplamente veiculada pela mídia.

 

Ilustrações sobre o aproveitamento das letras-de-música
 em classes de português

Música: Lavadeira do Rio (Lenine/ Bráulio Tavares)

A lavadeira do rio (v.1)

Muito lençol pra lavar (v.2)

Fica faltando uma saia (v.3)

Quando o sabão se acabar (v.4)

Mas corra pra beira da praia (v.5)

Veja a espuma brilhar (v.6)

Ouça o barulho bravio (v.7)

Das ondas que batem (v.8)

Na beira do mar. (v.9)

 

Refrão

Ê ô! O vento soprou! (v.10)

Ê ô! A folha caiu! (v.11)

Ê ô! Cadê meu amor? (v.12)

Que a noite chegou fazendo frio. (2x) (v.13)

Ô Rita, tu sai da janela (v.14)

Deixa esse moço passar (v.15)

Quem não é rica e é bela (v.16)

Não pode se descuidar (v.17)

Mas, Rita, tu sai da janela (v.18)

Que as moça desse lugar (v.19)

Nem se demora donzela (v.20)

Nem se destina a casar. (v.21)

O compromisso com a seleção e a combinação de palavras não pode faltar a um redator no ato da produção de textos, pois é a partir das escolhas acertadas que os textos tornar-se-ão coerentes e coesos. Uma letra de estrutura simples como “Lavadeiras do Rio” pode exemplificar escolhas acertadas por parte do autor. A partir de tais escolas, a compreensão do texto e a subseqüente depreensão da idéia básica se fazem muito mais facilmente.

Observe-se:

Da associação entre os signos de mesma natureza significativa, podemos formar um grupo lexical (associação possível pelo dicionário). Veja alguns exemplos extraídos do texto:

·      Rio – praia – mar – espuma – sabão – lavadeira – lavar

·      Moça – donzela –

A partir da integração de palavras ou expressões que mantêm uma relação de sentido e que, por isso, retomam uma idéia ou uma imagem de outra palavra ou expressão a que chamamos núcleo, podemos organizar um grupo semântico (associação que nasce dentro do texto). Exemplificando:

Palavra-núcleo

Palavras associadas no texto

Mar

praia, ondas, barulho, bravio, beira, espuma

Moça

lavadeira, rica, bela, janela, casar, moço

É ainda no âmbito da seleção vocabular que se podem estudar as rimas.

janela (v.18) / donzela (v.20);

passar (v.15)/ descuidar (v. 17);

lavar (v.2)/ acabar(v.4).

RIMAS POBRES

Rimas entre palavras com a mesma terminação, ou entre palavras antônimas, ou, ainda, entre vocábulos da mesma classe gramatical.

rio (v.1)/ bravio(v.7);

brilhar (v.6)/ mar (v.9)

janela (v.14)/ bela (v.16);

lugar (v. 19) / casar (v. 21).

RIMAS RICAS

Rimas entre palavras de que só existem poucas, ou raríssimas, com a mesma terminação, ou, entre palavras de classes gramaticais distintas.

Até aqui se pode concluir que letras-de-música servem para exemplificar a capacidade do falante quanto à escolha das palavras mais ajustadas à representação dos temas sobre os quais querem falar.

Outras pesquisas interessantes nesta letra:

Verso em destaque

Expressão a comentar

Fato gramatical a ser explorado

Forma(s) padrão

Mas corra pra beira da praia (v.5)

pra

 

Língua popular & língua culta: alterações fonológicas e ortográficas

para

Ê ô! Cadê meu amor? (v.12)

Cadê

Que é de

Mas, Rita, tu sai da janela (v.18) –

tu sai

emprego do pronome reto – uso popular & uso culto

Sai tu // saia você

Que as moça desse lugar (v.19)

Nem se demora donzela (v.20)

as moça

concordância nominal – uso popular & uso culto

As moças

(as moça) nem se demora

(as moças) nem se demoram

Nem se demora donzela (v.20)

Nem se destina a casar. (v.21)

Os dois versos

figuras de linguagem – eufemismo

 

Por meio do confronto entres usos em variantes distintas, podem-se perceber diferenças de representação de mundo e, ao mesmo tempo, reconhecer a importância do domínio de um uso médio (o padrão), cuja função é neutralizar as diferenças e garantir a mais ampla comunicação, abrangendo o maior número de falantes.

A Interpretação semiótica favorece a identificação dos sujeitos sociais representados a partir de formas icônicas, indiciais e simbólicas presentes no texto. As formas verbais usadas atuam como ícones quando presentificam a imagem dos sujeitos falantes (ex. falas típicas do povo interiorano em comparação com falas de sujeitos metropolitanos); serão índices quando induzirem o leitor a descobrirem a origem dos falantes representados (ex. a gente somos inútil tanto pode representar um falante não-escolarizado quanto um recurso estilístico com função expressiva, dependendo do texto em que se manifeste); serão símbolos quando forem típicos de uma dada fala, evocando-a em qualquer circunstância (ex. cadê como forma do uso popular).

Tenho constatado em minhas práticas que a exploração de letras-de-música em sala de aula torna as aulas mais dinâmicas e lúdicas, promovendo assim um processo de ensino-aprendizagem mais proficiente.

 

Mais uma mostra

A Cura (Composição: Lulu Santos / Nelson Motta)

Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança

E se virá
Será quando menos se esperar
Da onde ninguém imagina
Demolirá
Toda certeza vã
Não sobrará
Pedra sobre pedra

Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui

Existirá
E toda raça então

Experimentará
Para todo mal
A cura

Do ponto de vista da sintaxe, essa letra propicia um estudo muito rico, abrindo espaços para o estudo da pontuação e da colocação dos termos na oração, levando em conta as conseqüências semiótico-expressivas das opções do autor.

Alguns temas provocados por esta letra:

Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança

1.              Emprego dos tempos verbais – futuro hipotético & futuro provável

2.              Sentidos denotativo e conotativo

3.              Figuras de linguagem

4.              Metáfora

Enquanto isso
Não nos custa insistir
Na questão do desejo
Não deixar se extinguir
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê
Que o inferno é aqui

5.              Nexos adverbiais – expressão de circunstâncias

6.              Formas nominais do verbo

7.              Orações reduzidas

8.              Pronome relativo

9.              Conjunção subordinativa integrante

Mesmo uma letra-de-música popular, de estrutura simples, pode oferecer boas oportunidades de análise da estruturação lingüística. Seja do ponto de vista da seleção de vocabulário, da organização dos termos na oração, seja dos efeitos fônicos ou semânticos pretendidos, as letras-de-música oferecem rico exemplário para estudo, tornando as aulas de português bem mais interessantes.

A partir dessa pequena mostra, suponho ter sido possível exemplificar como uma análise gramatical pode se tornar mais interessante, já que discute formas presentes em falas reais e não tem textos de laboratório que não representam o uso cotidiano da língua.

Ademais, quando se propõe um trabalho com letras-de-música, os alunos se vêem tentados a sugerir textos, e o professor deve estar preparado para orientar as escolhas no sentido de formar um senso estético nos alunado, sem que transmita atitudes discriminatórias ou preconceituosas, que é o extremo oposto do que se pretende com esse projeto de trabalho.

Convém ainda acrescentar que não se propõe aqui transformarem-se as aulas de português numa sucessão de análises de textos musicais, exclusivamente. A proposta é mesclar-se aulas do tipo convencional (com textos literários e jornalísticos em geral) com aulas que explorem o gênero letras-de-música e assim diversificar o trabalho, torná-lo mais atraente e, por conseguinte, mais produtivo.


 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Celso. A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

MOREIRA, Marco Antonio. Aprendizagem significativa. Brasília UnB, 1999.

MAIA, Eny Marisa (coord.). Parâmetros curriculares nacionais – Ensino Médio, 1998.

SEARLE, John R. Os actos de fala, Coimbra: Almedina, 1984.

SILVA, Maria Lúcia Monteiro da. Elomar e Zezé Di Camargo e suas traduções musicais dos sertões do Brasil. Rio de Janeiro: UERJ, 2004. Dissertação de Mestrado em Letras – subárea: Língua Portuguesa – orientada pela Profa. Dra. Darcilia Simões.

SIMÕES, Darcilia. “A música e o ensino da língua portuguesa”. Projeto de Iniciação Científica – UERJ/FAPERJ. Disponível em www.darcilia.simoes.com em 2006.