AFINAL, PARA QUE SERVE A GRAMÁTICA?

Rosane Santos Mauro Monnerat (UFF)

 

Considerações iniciais

Este trabalho pretende mostrar como trabalhar conteúdos gramaticais – sobretudo aqueles considerados “gramatiquice” – sob uma perspectiva reflexiva e criativa, mesmo partindo-se da Gramática Tradicional. Nessa ressignificação da aula de Língua Portuguesa, propõe-se um estudo das noções gramaticais articulado aos mecanismos de construção de sentido no texto, como prova de que “não se vai longe sem gramática e não se usa a gramática a não ser para produzir textos.” (Marcuschi, 2001: 48). Tomando-se o pressuposto de que cada sujeito tem uma competência múltipla – competência situacional, competência discursiva, competência semântica e competência semiolingüística (Charaudeau, 2001) – é necessário trabalhar essas várias competências para a ativação do processo de ensino/aprendizagem de fatos gramaticais – sobretudo no recorte da morfossintaxe – levando os alunos a ampliarem sua competência comunicativa por meio de atividades com textos utilizados nas mais diferentes situações e considerando não só os tipos de texto adequados aos diferentes tipos de interação, como também as variedades lingüísticas utilizadas em cada caso.

 

Sobre o ensino/aprendizagem
de língua portuguesa

A despeito da preocupação e do interesse que o ensino/ aprendizagem de língua materna tem despertado nos últimos tempos, há, ainda, um longo caminho a ser trilhado para que se consiga atingir a meta de um ensino proficiente, que estimule a competência comunicativa dos alunos, preparando-os para a inserção na sociedade, como indivíduos interativos nas práticas comunicativas.

Ao término do período escolar, os alunos não estão aptos para uma verdadeira interação, na qual demonstrem compreender o mundo que os cerca, sabendo agir sobre ele.

As pesquisas são consensuais a respeito das causas dessa “incompetência escolar”. Fiorin (1996) , por exemplo, ao analisar o ensino de língua materna no Brasil, aponta três “perversões” . A primeira refere-se a um problema visto como geral por outros pesquisadores: o predomínio do ensino de metalinguagem desde as primeiras séries, em detrimento do ensino efetivo da língua. A segunda perversão diz respeito à maneira como as categorias da língua são ensinadas, sem a menor preocupação com o papel que exercem no funcionamento da linguagem. Em outras palavras, há uma preocupação muito grande em fazer com que o aluno saiba resolver exercícios gramaticais, embora isso não o transforme em conhecedor dos mecanismos da língua. A terceira perversão consiste na falta de fundamentação teórica para o ensino da leitura e da redação, o que torna as atividades com o texto um mero estudo de suas partes e não contribui para que o aluno apreenda sua estrutura ou compreenda seu sentido global: “A escola vê o texto como uma grande frase ou uma soma de frases, pois ensina a estruturar o período, a maior unidade sobre a qual se debruça, e exige que os alunos produzam textos.” (Fiorin, 199: 8-9). A partir dessa reflexão, o autor sugere “uma pedagogia da compreensão dos mecanismos constitutivos do sentido”.

Geraldi (1997: 117) concorda com esse posicionamento, afirmando:

Na escola atual, o ensino começa pela síntese, pelas definições, pelas generalizações, pelas regras abstratas. O fruto desse processo irracional é digno do método, que sistematiza assim a mecanização da palavra, descendo-a da sua natural dignidade, para a converter numa idolatria automática do fraseado.

Conforme o conceito de competência lingüística postulado por Coseriu (1980: 93), há três níveis de conhecimento utilizados pelo falante, ao produzir seus textos: um nível universal, referente ao saber elocucional, que rege os princípios universais do pensamento e o conhecimento do mundo; um nível histórico, relativo ao saber idiomático, que diz respeito ao saber de uma determinada língua e de suas regras de estruturação e um nível individual, ligado ao saber expressivo, que leva o usuário da língua a saber estruturar um texto de acordo com uma situação comunicativa específica. Uchoa (2001) afirma que “o ensino de português, entretanto, não leva em conta, a não ser ocasionalmente e, assim mesmo, sem maior consciência do problema, a existência dos três níveis do saber lingüístico”. Acrescenta, então, o autor:

(...) exige-se, assim, que os professores de Português sejam professores de linguagem, não somente de língua, já que, além da meta de capacitarem os alunos ao domínio reflexivo do saber idiomático, devem também se preocupar com a prática dos saberes elocucional e expressivo dos seus educandos, estimulando-os a saber ordenar as idéias, a conhecer o mundo e a conviver com situações discursivas diversas (Uchoa, 2001: 69)

Ensinar Português, portanto, não pode significar simplesmente identificar a estrutura do período ou decorar as regras gramaticais, como é comum na prática pedagógica tradicional.

Nosso objetivo, como professores de Português para falantes nativos, não é fazer com que adquiram a língua, como no caso do ensino de língua estrangeira, mas ampliar sua capacidade de uso dessa língua, desenvolvendo sua competência comunicativa por meio de atividades com textos utilizados nas mais diferentes situações de interação comunicativa, levando em conta não só os tipos de texto adequados aos diferentes tipos de interação, mas também as variedades lingüísticas utilizadas em cada caso.

Partindo do pressuposto de que cada sujeito tem uma competência múltipla, é necessário trabalhar essas várias competências para a ativação do processo ensino/aprendizagem.

Segundo Charaudeau (2001), são quatro as competências dos sujeitos envolvidos na interação: a competência situacional, que se preocupa com a identidades dos parceiros (quem fala com quem) e com a finalidade do ato de fala (com que intenção?); a competência discursiva, que leve em conta os Modos de Organização do Discurso (organização enunciativa, descritiva, narrativa e argumentativa); a competência semântica, que diz respeito à organização do sentido no mundo – à tematização (saberes de conhecimento e saberes de crença) e, finalmente, a competência semiolingüística, que trabalha com a relação forma/sentido, no nível textual, no nível da construção frástica e no nível da palavra.

No trabalho de sala de aula, da maneira como o concebemos, propomos a valorização da competência semiolingüística, ou seja, o estudo formal (da gramática) aliado à construção do sentido.

Mas como proceder a esse estudo formal? Articulando-se o estudo da gramática sob vários aspectos: a gramática teórica, a gramática normativa, a gramática de uso e a gramática reflexiva (Travaglia, 2003).

A gramática teórica é uma sistematização teórica a respeito da língua, utilizando-se uma metalinguagem estabelecida segundo os modelos da ciência lingüística para esse fim. No ensino/aprendiza-gem, as atividades de gramática teórica se valem das gramáticas descritivas e das gramáticas normativas. A gramática normativa apresenta normas de bom uso da língua em sua variedade culta, padrão. A gramática de uso é não consciente e liga-se à gramática internalizada do falante, ou seja o “conjunto de regras que o falante domina” (Possenti, 2000: 69). Finalmente, a gramática reflexiva é uma gramática que surge da reflexão com base no conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua e que será usada para o domínio consciente de uma língua que o aluno já domina inconscientemente.

Segundo Possenti (op. cit. p. 87), a “proposta elementar do ensino da gramática na escola”, consistiria no trabalho com as gramáticas numa ordem de prioridade que privilegiaria a gramática internalizada, passando pela descritiva, até se chegar à normativa.

No entanto, a prática ainda corrente no ensino/aprendizagem de língua materna ainda consiste na “compartimentação” dos conteúdos.

A fragmentação do Ensino Fundamental é, como nos diz Soares (2002:4) ainda freqüente nas escolas brasileiras: classe de alfabetização, quatro primeiras séries e quatro últimas séries. Essa fragmentação ultrapassa os limites da organização da escola, ocasionando também, como destaca Neves (2001), a compartimentação do ensino de gramática, o que prejudica a prática pedagógica.

Desse modo, as aulas de LP – e, em específico, o estudo da gramática – tem-se restringido à mera transmissão de regras e conteúdos gramaticais lecionados aos alunos de forma descontextualizada, isto é, desvinculada de um uso efetivo da língua. Por isso, concordamos com Neves (op. cit.) quando diz que:

A língua em uso oferece complicadores no nível semântico e no nível pragmático discursivo. E é a língua em funcionamento que tem de ser objeto de análise em nível pedagógico, já que a compartimentação da gramática como disciplina desvinculada do uso da língua tem sido um dos grandes óbices à própria legitimação da gramática como disciplina com lugar no ensino da língua portuguesa. (...) Considerando que a unidade básica na análise da língua em funcionamento é o texto, cabe considerar a natureza dessa unidade, natureza que determinará a postura de análise e as bases de operacionalização. (Neves, 2001: 49-50)

 

À guisa de exemplificação

Uma das maiores preocupações da sociedade moderna é a comunicação. Comunicar bem é, portanto, um dos grandes segredos do êxito em nossa sociedade. E a comunicação se faz por intermédio de textos. Para interagirmos com nossos semelhantes, precisamos, então, produzir textos e, paralelamente, compreender/interpretar os textos produzidos pelos outros.

Um dos problemas que pode afetar essa compreensão/ interpretação é a ambigüidade, entendendo-se por ambigüidade a propriedade de certos enunciados poderem ser interpretados de diferentes maneiras, sendo, pois, sinônimo de “pouco claro”. Por esse viés da ambigüidade, pode-se exemplificar a articulação texto/gramática. Explicando melhor, um dos problemas do ensino de análise sintática refere-se, no estudo dos termos da oração, à distinção entre “complemento nominal” e “adjunto adnominal”. Muitos colegas, professores de português, têm defendido a desnecessidade de tal distinção, resolvendo a questão, de uma maneira simplificada, referindo-se, nos dois casos, a uma sistematização única – a de complemento de nomes.

Não concordo com essa “simplificação”, não por uma questão de “gramatiquice”, como, muitas vezes, se diz, mas por se tratar de distinção significativa no âmbito da compreensão/interpretação dos textos.  

A exemplificação trará luz à questão:

Imaginemos uma situação em que apareça – propositalmente (trata-se da ambigüidade intencional, estilística, muito utilizada na linguagem da mídia) – numa manchete de jornal, o seguinte enunciado: (1) “A demissão do ministro causou impacto”. Numa primeira leitura, pode-se dizer que esse enunciado é ambíguo, pois veicula duas interpretações possíveis: “o ministro demitiu” ou “o ministro foi demitido”. É claro que o “conhecimento de mundo” ou o “conhecimento partilhado” podem dar conta da questão, se, por exemplo, soubermos que um determinado ministro “está sendo fritado” (gíria comum para se referir a alguém que está na mira de ser demitido). Nesse caso, optar-se-ia pela segunda possibilidade: “o ministro estaria sendo demitido”. Mas no geral, sem conhecimento prévio, pode-se dizer que se estabelece a ambigüidade.

É, então, uma ótima oportunidade para, ao se desfazer a ambigüidade, articular-se a aula de texto à de gramática, explicando a diferença entre complemento nominal e adjunto adnominal. O adjunto adnominal, como termo que estabelece uma relação subjetiva, agentiva e o complemento nominal, como termo que estabelece uma relação objetiva, de alvo, paciente. Assim, se a interpretação do texto sugere a idéia de que “o ministro demitiu”, a função sintática do sintagma nominal “do ministro” seria a de adjunto adnominal; por outro lado, se a interpretação pender para o lado de que o”ministro foi demitido”, ter-se-ia a função sintática de complemento nominal.

Muito ilustrativo é o exemplo dado por Henriques (2005:74) a respeito dessa questão:

“Em 1958, não gostei da convocação de Zagalo, mas em 1998 gostei da convocação de Zagalo.”

O autor explica “em 1958, Zagalo era jogador (Alguém convocou Zagalo): de Zagalo: CN. Em 1998, Zagalo era o técnico (Zagalo convocou alguém): de Zagalo: A A”.

Concordamos com o autor, quando diz: “Que a crítica à cobrança excessiva da terminologia não carregue consigo o desleixo de não se explorarem as vantagens do domínio das potencialidades combinatórias estruturais da língua”. (op. cit, p. 75)

Mais um exemplo da articulação texto/gramática, ainda com foco na ambigüidade, mas, desta feita, envolvendo funções sintáticas e colocação de termos na oração.

No programa “Domingão do Faustão”, levado ao ar no dia 13 de julho de 2006, no quadro intitulado “Se vira nos 30”, apresentou-se um candidato com a seguinte proposta:

(2) “Desenhando com lápis cera deitado” . O apresentador Fausto Silva lhe perguntou, então, se iria desenhar deitado, ao que ele respondeu que iria desenhar com o lápis cera deitado.

Essa situação ilustra bem o que pretendemos comentar. O adjetivo “deitado” colocado no final da frase dá margem a ambigüidade, já que pode se referir tanto ao sujeito não explícito – ele – quanto ao lápis cera. No primeiro caso, trata-se de um predicativo do sujeito, enquanto no segundo, de um adjunto adnominal do adjunto adverbial de instrumento. Um modo de resolver o problema da ambigüidade seria a alteração na colocação do termo na frase: “desenhando deitado com lápis cera”.

Um último exemplo, já que tempo e espaço são exíguos.

Comparemos as duas frases seguintes:

(3) Já é meio-dia; logo as crianças chegarão para o almoço.

(4) Já é meio dia; logo, as crianças chegarão para o almoço.

Trata-se, nesse caso, da identificação do valor semântico-pragmático do vocábulo em destaque, o que pode implicar a caracterização da classe gramatical dos elementos envolvidos. Em (3), “logo” equivale a “em breve” e, portanto, é advérbio de tempo, ao passo que em (4), equivale a “portanto”, “assim”, sendo, então, conjunção coordenativa conclusiva.

Outras situações ainda poderiam ser lembradas, mas pensamos serem os exemplos elencados suficientes para demonstrar que se pode ensinar gramática sem memorizações e decorebas mecânicas.


 

Palavras finais

Sugere-se, dessa forma, uma análise de fatos da gramática, articulada ao texto, à preocupação com a variedade de registros (oral, ou escrito) e de usos da língua. Essa é, portanto, uma boa oportunidade para chamar a atenção para o fato de que, contrariamente ao que alguns colegas têm postulado, há e sempre haverá espaço para o estudo da gramática, já que não se pode falar, nem escrever sem gramática, mas, citando Antunes (2003), um estudo em que se tenha em vista (i) uma gramática na perspectiva da linguagem como forma de atuação social, ou seja, uma gramática que seja relevante, selecionando noções e regras gramaticais úteis e aplicáveis à compreensão e aos usos sociais da língua;(ii) uma gramática que seja funcional, que privilegie, de fato a aplicabilidade real de suas regras, tendo em conta, inclusive, as especificidades de tais regras, conforme esteja em causa a língua falada ou a língua escrita; (iii) uma gramática contextualizada, incluída naturalmente na interação verbal, uma vez que é condição indispensável para a produção e interpretação de textos coerentes, relevantes e adequados socialmente, o que torna falsa a questão colocada por alguns professores de “texto ou gramática”?; (iv) uma gramática que traga algum tipo de interesse, desmistificando a idéia de que estudar a língua é algo penoso, desinteressante; (v) uma gramática que liberte, que “solte” a palavra. Nesse sentido, convém lembrar a possibilidade de, em certas situações subverter as regras da língua para obter certos efeitos de sentido; (vi) uma gramática que prevê mais de uma norma, caracterizando a “norma-padrão” como sendo a variedade socialmente prestigiada, mas não a única “certa”, já que “certo” é aquilo que se diz na situação certa à pessoa certa e, enfim, (vii) uma gramática que é da língua , que é das pessoas, já que se a experiência humana da interação verbal é lingüística, ela é também verbal. Isso por si só faz a gramática recobrar a sua importância.

 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

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SOARES, Magda. Português: uma proposta de letramento. São Paulo: Moderna, 2002.

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UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. Fundamentos lingüísticos e pedagógicos para um ensino abrangente e produtivo da língua materna. Separata de: Confluência – Revista do Instituto de Língua Portuguesa. Rio de janeiro, n° 19, p. 62-75, 1o semestre 2000.