Imagens discursivas de professor
em provas de seleção profissional

Fabio Sampaio de Almeida (UERJ)
Maria Cristina Giorgi (CEFET/RJ)

 

Este trabalho propõe-se a investigar os perfis de professor de espanhol que são construídos discursivamente em exames de ingresso ao magistério público do município do Rio de Janeiro (1998, 2001, 2004). Os pressupostos teóricos seguidos são os da Análise do Discurso de base enunciativa e as noções de polifonia, dialogismo e gênero do discurso de Bakhtin (1979). A categoria de análise principal é o discurso relatado, instituído a partir de marcas de discurso direto, discurso indireto, discurso segundo (Maingueneau, 1998), discurso narrativizado (Sant’Anna, 2000) e intertexto (Vivoni, 2003). A análise aponta para uma grande valorização do conhecimento gramatical e léxico do professor/candidato. O perfil de professor inscrito discursivamente nos exames é o de detentor do saber, capaz de identificar o “certo” e o “errado” na língua estrangeira. A língua a ser ensinada por este professor é uma língua abstrata, não compreendida a partir de suas situações de uso, possui uma essência imutável, independente do gênero em que se apresente, isto é, uma língua ideal que só pode ser ensinada por um professor ideal, aos olhos estáticos de uma Gramática Normativa

Os pressupostos teóricos seguidos são os da Análise do Discurso de base enunciativa (Maingueneau, 1998; 2000) e as noções de polifonia, dialogismo e gênero do discurso de Bakhtin (1979). A categoria de análise principal é o discurso relatado (Maingueneau, 1998; Sant’Anna, 2000; Vivoni, 2003). A análise centrou-se na prova de conhecimentos específicos (língua espanhola) dos exames estudados. Os resultados apontam para uma grande valorização do conhecimento gramatical normativo e léxico do professor/candidato. O perfil de professor inscrito discursivamente nos exames é o de detentor do saber, capaz de identificar o “certo” e o “errado” na língua espanhola. A língua a ser ensinada por este professor é uma língua abstrata, não compreendida a partir de suas situações de uso, e que possui uma essência imutável, independente do gênero em que se apresente, isto é, uma língua ideal a ser ensinada por um professor ideal, aos olhos estáticos de uma Gramática Normativa.

 

Introdução

Atualmente muito se discute no que concerne à qualidade do profissional professor. Se voltamos nosso olhar para os profissionais que integram a rede pública de ensino verificamos, no entanto, que poucos ainda são os estudos sobre os mecanismos que o selecionam. O objetivo de nossa reflexão aqui é identificar os perfis de professor de construídos discursivamente nos exames de ingresso ao magistério público do Rio de Janeiro (1998 e 2001) a partir do estudo do gênero discursivo prova de seleção de docentes. Para tal, procuramos relacionar os saberes privilegiados nas provas das disciplinas de língua espanhola e língua inglesa de concursos para professores realizados pelo Estado e pelo Município do Rio de Janeiro. Nosso corpus é composto por provas de Língua Espanhola e Língua Inglesa, dos concursos realizados até 2004.

Pensamos que a relevância deste trabalho justifica-se por serem as provas o instrumento que habilita o professor para atuar nas salas de aula de nosso estado. O mesmo professor que, de acordo com vozes que circulam principalmente na mídia, é responsabilizado, muitas vezes, por uma série de problemas que se reproduzem nas últimas décadas, como a “fracasso escolar”, “má qualidade do ensino. Acreditamos, pois, que, abordando esse tema a partir da perspectiva do gênero de discurso, estaremos contribuindo para discussões sobre o processo de seleção de docentes, aqui compreendido como uma prática discursiva circunscrita a um determinado contexto sócio-histórico.

Com relação à linguagem, seguimos as propostas da Análise de discurso (AD) de base enunciativa (Maingueneau, 2001) e as noções de gênero de discurso e de polifonia (Bakhtin, 2000/2004). Para melhor compreender as provas como uma prática institucionalizada e os saberes que são nelas privilegiados, baseamos nossas análises em propostas de Foucault (1987, 1996).


 

Contextualizando nossa pesquisa

Como já expusemos, acreditamos que aprofundar estudos referentes às provas nos permite entender melhor o próprio gênero, foco de poucas pesquisas, e também recuperar características relacionadas à trajetória do ensino de línguas estrangeiras em nosso Estado, que refletem saberes acumulados ao longo do tempo, além de prescrever visões de ensino prestigiadas por determinados grupos.

As provas indicam, no contexto atual de nossa realidade educacional, aquilo que os profissionais precisam saber. Funcionam como um padrão a ser seguido por aqueles que pretendem ingressar na rede pública, podendo, inclusive, influenciar cursos de formação, uma vez que a última seleção realizada sempre reflete não só o que se espera do professor naquele momento, mas também o que se antecipa para futuras seleções, sugerindo quais saberes devem ser privilegiados e reproduzidos. São, portanto, uma dupla memória que remete ao passado, reproduzindo e mantendo o que vem ou não sendo privilegiado, e aponta para o futuro, prescrevendo o que deve ou não continuar sendo considerado importante; ou seja, o que é esperado por um determinado grupo para a prática desse trabalho. Uma vez que, de acordo com Bakhtin (1929), cada um de nós orienta suas ações a partir de uma visão de futuro, os conteúdos que se repetem nas provas também indicam uma possibilidade de futuro, pois refletem o que é e deverá continuar sendo considerado importante no contexto da educação, isto é, aquilo que o professor precisa conhecer para poder trabalhar com a disciplina.

Voltando, então, para a rede pública a relevância dessa pesquisa emerge a partir do seguinte questionamento: se as provas refletem saberes, registram o que vem sendo valorizado na formação de profissionais no contexto atual de nossa realidade educacional, por que se verifica a contradição entre o professor “esperado” e o professor “real”, aquele que está em sala de aula?

 

Base teórica

Ressaltamos que no presente artigo a base teórica seguida no que se refere aos estudos linguagem relaciona-se diretamente com a compreensão de língua em seu uso, na prática social, e não como uma estrutura isolada. Estes estudos não dissociam o lingüístico e o extralingüístico como construtores de sentido no discurso. Por isso, recorreremos à AD de base enunciativa, tendo como pressupostos fundamentais as noções de Bakhtin (1979/1992) sobre dialogismo nas quais o autor considera que todo enunciado institui um EU que se dirige a um TU, ao mesmo tempo em que um discurso dialoga com outro discurso.

Gênero discursivo (Bakhtin, 1979/1992) é outra noção importante em nosso trabalho. Segundo o autor, é o gênero que garante a comunicação aos falantes de uma língua, pois permite uma economia cognitiva entre os interlocutores por meio da qual o reconhecimento de características particulares que distinguem um gênero de outro, ou seja, estabelece as bases do entendimento com o leitor.

Verificamos que estes gêneros discursivos estão submetidos a algumas coerções, que vão sendo modificadas pelas sociedades ao longo do tempo, de acordo com suas necessidades, sendo todo dito determinado em grande parte pelo lugar onde é enunciado. Para compreender esse movimento, aliamos aos conceitos bakhtinianos, alguns conceitos teóricos de Maingueneau (2001), para quem a perspectiva enunciativa estabelece alguns parâmetros específicos a fim de que haja interação. Conforme o teórico, a situação de enunciação não está dentro do âmbito das circunstâncias empíricas de produção de enunciado, mas sim no campo das coordenadas que servem como referência direta ou não à enunciação, onde os personagens principais são enunciador e co-enunciador e as âncoras espaciais e temporais, eu/você e aqui/agora.

Continuando na perspectiva enunciativa, em que o leitor deve apreender os sentidos do texto a partir do enunciado fazendo uso de competências distintas, recorremos às noções propostas por Maingueneau de competências genérica e enciclopédica, em que a primeira compreende o domínio das leis e gêneros de discurso, e a segunda, os conhecimentos sobre mundo que acumulamos ao longo da vida, sendo ambas responsáveis por nossa capacidade de interpretar e produzir enunciados adequados às múltiplas situações sociais que nos são impostas.


 

Nossas análises: Uma breve análise

A prova de Conhecimentos Específicos em língua espanhola realizada pela SEE em 2004 é composta por dois textos e trinta e cinco questões de múltipla escolha. Destas, quatorze seguem um primeiro texto, dezenove um segundo, e duas não estão vinculadas a nenhum dos dois. Os dois textos foram produzidos na Espanha, fato que por si só já é relevante, se consideramos o universo de países de língua espanhola. Essa escolha pode apontar para um privilégio dado ao espanhol da Espanha, tido ainda como muitos como o “legítimo representante da norma culta deste idioma”. Cabe observar que nenhum dos dois textos está relacionado ao contexto do ensino.

Notamos que não há nenhuma questão que exija conhecimento, por parte do candidato, sobre gênero discursivo, isto é, o candidato não precisa demonstrar nenhum conhecimento sobre tal assunto, já que não há perguntas que abordem os textos partir de suas características genéricas.

Percebemos, também, que os sentidos produzidos pelos textos não são criticamente trabalhados, isto é, têm meramente a “função” de exemplificar questões de gramática e léxico. Não se verifica, portanto, a necessidade de um diálogo co-enunciador / texto, mas sim co-enunciador / fragmento de texto, ainda que segundo o enunciado da questão estas devam ser respondidas a partir da leitura dos mesmos. De fato, as perguntas retomam fragmentos isolados dos textos, indicando que o que está sendo privilegiado nas perguntas não tem relação com a compreensão do mesmo.

Como se pode ver na questão 35,

Pregunta 35

“…vendrán ochenta o noventa a cenar, …”: (L.12) – ochenta y noventa es la forma escrita de los numerales 80 y 90. Señale la de los numerales 16 y 28:

a)    dieceséis y veinteocho

b)    diez y seis y veinte y ocho

c)    dieciséis y veintiocho

d)    deciséis y ventiocho

apesar de a banca apresentar um fragmento de texto no comando da questão, que nos leva, num primeiro momento, a supor que tal fragmento fosse necessário para a solução da mesma, verificamos que a presença desse enunciado é completamente desnecessária, uma vez que a questão trata apenas da identificação da correta ortografia dos números 16 e 28.

Em outras questões, avalia-se o tradicional “conhecimento de vocabulário” do co-enunciador candidato, quer com base na análise contrastiva, quer na tradução – esta última metodologia característica de ensino tradicional. Novamente, a leitura do texto é desnecessária. Nestes casos, para responder as perguntas, uma consulta ao dicionário seria suficiente (em situação que não a do concurso, como a da sala de aula, por exemplo).

Encontramos, ao longo da prova, muitas questões voltadas para o campo lexical. É interessante ressaltar que uma grande parte delas está vinculada à compreensão de expressões idiomáticas, sem considerar que as mesmas, em geral, relacionam-se a contextos muito restritos em função de variedades sociais, etárias, regionais etc., e não conhecê-las significa apenas não estar familiarizado com alguns deles. Algumas das questões não permitem inferência, visto que mais de um significado caberia como resposta.

No que diz respeito às noções gramaticais, vale ressaltar que o exame valoriza o reconhecimento das classificações morfológicas, tais como pronomes, tempos e modos verbais, preposições etc. Verificamos ainda com essas perguntas que o enunciador valoriza a importância dessas classificações morfológicas assim como o correto uso da nomenclatura, como o ilustrado também no exemplo a seguir:

Constatamos, então, que perguntas sobre léxico, morfologia, gramática contrastiva, tradução, constituem os principais saberes solicitados ao candidato, futuro profissional selecionado, e não aparecem abordadas de forma a exigir dele conhecimentos de um estudioso da língua, ou seja, de um professor, mas sim de forma que denotam uma visão de professor como aquele que deve saber responder perguntas sobre gramática normativa.

A prova de Conhecimentos Específicos em língua inglesa é composta por três textos e trinta e cinco questões de múltipla escolha: quinze questões seguem um primeiro texto, seis um segundo, nove um terceiro, duas relacionam os três textos, e três desvinculadas dos mesmos.

Dois dos textos são adaptados, o primeiro, Paulo Freire and informal education de um site da internet, o terceiro, Obituary for Paulo Freire by David Archer de um suplemento da revista Times Educational e o segundo, sem título, não apresenta nenhuma indicação de fonte. Os três versam sobre educação e estão enfocados na figura e em propostas educacionais do educador Paulo Freire. A escolha dos textos aponta para uma diferença entre as provas, uma vez que, ao contrário do que acontece na prova de inglês, vimos que na prova de espanhol os textos não têm nenhuma ligação com temas relacionados ao “profissional professor”. Desde a escolha dos textos – que não acontece de forma aleatória – até a elaboração dos comandos de questões criados, o enunciador opta ou não por apresentar-se como um ser político, social, ético, não desvinculado de seu entorno. Por meio de um texto é possível tratar de questões que estejam relacionadas não só “ao conteúdo programático”, mas à reflexão sobre a própria prática docente.

Nos comandos das questões, uma diferença chamou nossa atenção: enquanto na prova de espanhol todas as questões reproduzem segmentos do texto, na de inglês encontramos comandos que indicam a questão, mas não a reproduzem, devendo o candidato reler o fragmento no texto.

Há, portanto, a necessidade do diálogo candidato / texto no lugar de candidato / fragmento de texto, como acontece nas questões de espanhol, pois apenas por meio da leitura do fragmento não é possível chegar à resposta considerada correta.

Ainda que em nenhuma das duas provas exista uma preocupação em apresentar textos de gêneros de discurso diferentes, encontramos na de inglês uma pergunta que nos remete a características específicas do texto. Deparamo-nos também com uma questão que trata da diferença entre variante falada e escrita, tema não tratado na prova de espanhol.

Por sua vez, s questões relativas à compreensão de texto não são utilizadas como pretexto para gramática, e é necessário que o candidato volte ao texto para respondê-las. Perguntas sobre vocabulário, em sua maioria, são contextualizadas, o que pressupõe, a nosso ver, uma visão que compreende a língua em funcionamento, dentro de um contexto.

No que concerne às noções gramaticais, percebemos que a maioria das questões baseia-se em pressupostos da lingüística textual. Para solucionar questões sobre pronomes, por exemplo, o candidato precisa saber a quem este se refere, portanto, precisa não só voltar ao texto, mas também compreendê-lo. As questões relativas a marcadores textuais, conjunções e verbos funcionam de forma análoga. No total de questões relacionadas aos textos, encontramos apenas uma cuja resposta exige do candidato um conhecimento de gramática desvinculado do contexto global do texto, como exposto no próximo exemplo:

[...][1]

O exposto até aqui nos permite perceber que na prova de língua inglesa as questões refletem um co-enunciador capaz de lidar com significados variados de um termo compreensíveis a partir do contexto em que se inserem. Na maior parte delas encontra-se uma preocupação em fazer com que o co-enunciador-candidato retorne ao texto com o objetivo de selecionar a melhor alternativa. A imagem de co-enunciador é a de um professor atualizado, capaz de lidar com leitura e compreensão de textos.

Verificamos uma preocupação com a questão da compreensão pontual/global, foco dos PCNs, principalmente os PCNs-EF, que priorizara o trabalho com o texto e com as estratégias de leitura, o que demonstra que a abordagem instrumental passa a ter relevância para o ensino de língua inglesa no contexto da escola pública brasileira

Em sendo assim, a análise das provas permitiu-nos, dentre outras constatações, traçar pelo menos dois perfis de co-enunciador candidato: um caracterizado com uma visão de ensino que valoriza os conhecimentos gramaticais, e outro identificado com propostas do ensino instrumental de línguas.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

––––––. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004.

CARVALHO FILHO, J. Manual do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.

CELANI, Maria Alba (Org.). Professores formadores em mudança. São Paulo: Mercado de Letras, 2003.

CRETELLA JÚNIOR, J. Dicionário de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

DAHER, M.; SANT’ANNA, Reflexiones acerca de la noción de competencia lectora: aportes enunciativos e interculturales”. 20 años de APEERJ- El español: un idioma universal – 1981-2001, Rio de Janeiro, APEERJ, 2002, 54-67.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004.

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1996.

Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília. Secretaria de Educação Média e Tecnológica/MEC, 1999.

VIVONI, Renata L. Moutinho. Interlocução seletiva: análise de provas para seleção de docentes – A construção do perfil do profissional professor. Rio de Janeiro, 2003. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


 


 

[1] [Nota do editor]: Os autores se esqueceram de inserir o exemplo referido.