LINGUAGEM E LETRAMENTO
O ENSINO DA ESCRITA
NOS PRIMEIROS ANOS DE ESCOLARIDADE

Edith Frigotto (UFF)

 

Introdução

Este trabalho aborda um dos aspectos da pesquisa “Alfabetização e desenvolvimento de práticas de letramento nos ciclos de formação”, discutindo as concepções de ensino de língua materna, tomando o letramento como horizonte do processo de escolarização. Para tanto retoma a concepção de linguagem de Bakhtin, considerando a categoria gêneros discursivos como o elemento articulador entre as práticas sociais e as práticas de linguagem. Os dados empíricos da análise constituem-se de um conjunto de material coletado em sala de aula, ao longo de dois anos de observação sistemática, em contexto de escola organizada em ciclos de formação. A pesquisa acompanhou os primeiros anos de escolaridade, inicialmente em uma unidade escolar, durante um ano e meio e posteriormente em outra escola, durante seis meses.

O objetivo geral da pesquisa constitui-se em mapear conteúdos e estratégias pedagógicas presentes no I Ciclo, considerando a hipótese de que a mudança na organização do tempo escolar provocaria um deslocamento ou ressignificação da concepção de ensino de língua materna em virtude tanto das novas diretrizes, quanto da influência dos estudos sobre alfabetização e letramento já bastante divulgados em publicações, cursos de formação inicial para professores e cursos de formação continuada. Tem-se também como indicador de análise o pressuposto de que a cultura escolar não se modifica em função de decretos ou de exigências pontuais.

 

Os ciclos

Inicialmente é preciso considerar que a nova organização dos tempos escolares que prevê uma extensão temporal no ensino fundamental, de 8 para 9 anos, traz no seu bojo uma nova concepção da estrutura organizativa desses tempos, não mais em anos letivos senão em ciclos de dois ou três anos. A lógica da avaliação seletiva que se dava anualmente, promovendo ou retendo alunos se desloca para o final de cada ciclo, pois no seu interior os alunos são promovidos a partir de critérios qualitativos, resultantes, em princípio, de avaliações diagnósticas e formativas.

Nos inúmeros municípios em que os ciclos foram implantados, o I ciclo corresponde a três anos, principalmente porque já herdou de experiências dos Ciclos Básicos de Alfabetização uma trajetória já consolidada, mesmo em municípios em que os anos seguintes permaneceram seriados, como o Rio de Janeiro. Tal organização implicaria pedagogicamente em mudanças tanto nas estratégias de ensino, quanto nas responsabilidades de todo o corpo docente em relação aos conteúdos ensinados, posto que a definição do plano curricular pressupõe uma integração entre os três anos visando à consolidação de uma base sólida e contínua sem os tropeços da fragmentação do ensino/aprendizagem e do tempo dedicado aos ritmos de aprendizagem e de socialização da criança na cultura escolar, cuja lógica se distingue de suas práticas diárias na vida familiar e comunitária.

As pesquisas sobre implantação do regime de ciclos (Frigotto, 1999; Fernandes, 2004; Mainardes, 2001; Barreto e Mitrullis, 2001 e outros) mostram que tais medidas visam, em inúmeros casos, muito mais à solução do fluxo escolar do que propriamente a uma mudança na concepção de escolaridade que se materializa na proposta curricular em que outras concepções, tais como a formação integral do sujeito e sua potencial participação crítica na sociedade, deveriam ser assimiladas para que o trabalho de fato se desenvolvesse. Como não é objetivo deste texto focalizar a questão dos ciclos, senão tomá-la apenas como cenário do ensino de língua materna desde a alfabetização até o terceiro ano, não faremos considerações mais aprofundadas sobre as diferentes implicações de tais políticas. Será suficiente para essa abordagem a informação de que as escolas pesquisadas, no município de Niterói, estão oficialmente cicladas desde 1999 e que nosso campo empírico constitui-se dos três primeiros anos de escolaridade, portanto do I Ciclo.[1] Contudo, é importante registrar uma inovação nos textos das propostas curriculares, principalmente nos objetivos do ensino de língua materna desde a alfabetização, não mais centrados no conhecimento do sistema da escrita e das suas normas ortográficas e sintáticas, mas no desenvolvimento da leitura e da escrita, com propostas mais abrangentes, isto é, menos direcionadas, porém mais fluidas. Essa fluidez se expressa na absorção generalizada das novas concepções teóricas que incluem a necessidade de compreensão da dimensão sócio-cultural da língua escrita e de seus efeitos nas práticas sociais de linguagem. Ao mesmo tempo em que tais políticas curriculares se modernizam em termos conceituais, se esquivam em fornecer encaminhamentos para a elaboração de novos conteúdos e estratégias pedagógicas que materializem tal concepção. Esta postura costuma criar expectativas e descompassos entre o que é anunciado e o real do trabalho pedagógico, visto que as propostas, de um modo geral, são produzidas por profissionais distantes da sala de aula, sem a participação do corpo docente.[2]

 

Ensino da língua escrita

Pesquisar sobre o ensino da língua, desde o início da escolaridade, nos impele a perguntar que categorias as produções acadêmicas ofereceram e estão oferecendo como instrumentos de compreensão e análises das práticas de linguagem que levam a práticas de letramento, capazes de incluir todos os sujeitos nos processos contemporâneos de atuação na sociedade letrada. Isto significa pensar qual a responsabilidade da área na produção de conhecimentos sobre a língua que possa servir de elementos à construção de sujeitos letrados.

A vasta produção teórica que derivou em um conhecimento aprofundado da estrutura da língua e, posteriormente, em estudos sobre o uso e funções da linguagem, de sorte a considerar fatores sociais, teve repercussão na forma de ensino que deixou de ser refém apenas dos estudos gramaticais para incluir os estudos lingüísticos. Entretanto, pensar a estrutura da língua e correlacioná-la com as praticas sociais de linguagem constitui-se num universo bastante amplo e difícil de abarcar como conteúdo de ensino.

Os estudos mais recentes sobre alfabetização, após uma intensa produção na área, incorporando pesquisadores de diferentes origens epistemológicas, vêm construindo um novo conceito que potencialmente oferece uma capacidade heurística mais adequada para a compreensão do processo: letramento. Este conceito constitui-se em espaço fértil de incorporação de categorias necessárias a uma melhor compreensão das diversas dimensões que o processo de produção da leitura e da escrita tem na sociedade contemporânea e do papel que a escola ocupa na formação de sujeitos letrados.

Este termo ganhou status de categoria analítica para dar conta de atividades discursivas articuladas à exigência da sociedade atual, em que os graus de inserção na sociedade letrada é sintoma do lugar que o sujeito ocupa na organização hierarquizada das sociedades contemporâneas, principalmente as sociedades de classe. Torna-se importante, neste trabalho, retomar algumas definições que vêm sustentando pesquisas promissoras no sentido de compreender o papel das agências de letramento, cuja finalidade repercute em expectativas sociopolíticas e econômicas.

Embora Paulo Freire, há muito, tenha apontado a necessidade do domínio da leitura e da escrita como potencializador da construção da cidadania e da luta pelo poder, o ensino da língua materna ainda é tratado como conteúdo escolar, abstrato, desvinculado das práticas e usos sociais e do impacto que provoca na sociedade, o grau de letramento de sua população.

Os estudos realizados por Soares destacam a importância de se aprofundar o conhecimento sobre as diferentes modalidades de linguagem sem descuidar-se dos processos pedagógicos que orientam os sujeitos para atingirem o estado ou condição de letramento. A autora aponta como desafio permanente a universalização do letramento, entendido como “acesso pleno às habilidades de leitura e escrita” (2001: 63). Essa visão teleológica que incide principalmente sobre as funções sociais da escola e seu compromisso com a população não elide a necessidade da realização de estudos em diferentes grupos sociais a fim de mapear as práticas de letramento na construção de identidade desses grupos sociais, de sua forma de inserção na sociedade e dos significados que constroem sobre o papel da escola como agência legitimadora da apropriação da escrita. As inúmeras discursividades que dialogam nos espaços da vida cotidiana produzem representações de mundo que abrangem valores e ideologias em que certos rótulos são consolidados, provocando sentimentos de inclusão ou exclusão em relação aos saberes sistematizados.

O próprio uso do termo literacy, entendido no sentido moderno como “alfabetização ou estado de alfabetizado” (Williams, 1979: 52) correspondia, no século XVIII, à literatura enquanto condição de leitura, ou capacidade de ler e ser lido. Nas pesquisas atuais o termo letramento tem sido utilizado de formas distintas, incluindo as práticas orais de sujeitos analfabetos e mesmo de crianças em fase pré-escolar, cujo contato regular com eventos de letramento lhes proporcionaria conhecimentos que indicam uma familiarização com a cultura letrada.

A trajetória desse conceito, realizada por Soares (2001, 2002), mostra a sua pertinência, mas também os problemas decorrentes do seu uso operativo em pesquisas censitárias. A autora reforça a necessidade de aprofundamento teórico capaz de dar conta de inúmeros fenômenos ligados às práticas da escrita articuladas às questões sociais, culturais e aos valores sociais correntes. Soares insiste no compromisso da escola em alfabetizar letrando, isto é, incluindo todos os cidadãos nos processos de participação política e cultural da sociedade, posto que essa é uma condição de participação mais efetiva nas relações sociais e de trabalho.

Kleiman (2001) aponta alguns conceitos de letramento subordinados aos objetivos de pesquisa. Para autores que se utilizam desse conceito para examinar a capacidade de refletir sobre a própria linguagem, “ser letrado significa ter desenvolvido e usar a capacidade metalingüística em relação à própria língua” (p. 17). Para outros que correlacionam a prática da leitura, em certos grupos sociais, ao sucesso escolar, letramento

..significa uma prática discursiva de um determinado grupo social, que está relacionada ao papel da escrita para tornar significativa essa interação oral, mas que não envolve, necessariamente, as atividades específicas de ler e escrever. (p. 18)

Apoiando-se em Scribner e Cole, Kleiman (1995) define letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos. Por outro lado enfatiza a importância da distinção realizada por Street (1984) entre o modelo autônomo e o modelo ideológico de letramento. O primeiro centrado numa concepção de língua limitada à norma culta em que as outras variedades são ignoradas e conseqüentemente suas manifestações discursivas. O segundo modelo problematiza as relações entre os usuários da língua, as práticas sociais e as relações de poder que se expressam nas práticas discursivas.

Assim as teorias de aquisição e desenvolvimento da leitura e escrita vêm cada vez mais se distanciando do estruturalismo para construir explicações historicizadas.

Rojo (1998) buscando uma compreensão do letramento, a partir de uma abordagem socioconstrutivista, afirma a importância do papel constitutivo da interação social para a construção da linguagem. O olhar mais aguçado para a estreita vinculação entre a oralidade e a escrita impede que se ignore o sujeito e suas práticas culturais marcadas por suas origens sociais. Para Rojo, o uso do termo letramento “implica a adoção de pressupostos teóricos (sociológicos, etnográficos) onde a interação social tem um peso decisivo na construção da escrita pela criança.” (p. 11)

Explicações contextualizadas, social e historicamente, efetivadas nos últimos tempos por educadores, lingüistas e sociolingüistas sobre a linguagem verbal em uso têm produzido materiais analíticos substanciais para a compreensão dos processos de leitura e escrita. O pressuposto da aquisição da linguagem não como um produto pronto e acabado (Geraldi, 1991), mas como produção de um trabalho lingüístico, em que os seres humanos produzem e são produzidos pela linguagem, promove uma abertura ampla nesses estudos capazes de atingir situações sócio-comunicativas e de construção de conhecimentos que trazem para o centro os processos pedagógicos escolares como um dos espaços privilegiados de estudo.

Partindo dessa concepção, as premissas de desenvolvimento da linguagem pressupõem a interlocução, posto que esta

...altera e amplia os modos de funcionamento do organismo, transformando-os em linguagem e como a linguagem, por sua vez, os transforma, fazendo-os ascender a um nível de funcionamento superiores.... (Lemos, 1986, apud Rojo, 1998: 122)

Ao realizar uma retrospectiva sobre os estudos de alfabetização nas áreas de Psicolingüística e de Sociolingüística, Kato, Moreira e Tarallo (1997) mostram a importância do diálogo com autores estrangeiros que têm demonstrado, principalmente na Sociolingüística, o quanto os fatores contextuais interferem na aprendizagem da leitura e da escrita. “Se queremos que a escola produza indivíduos funcionalmente letrados, não podemos entender a alfabetização como algo independente do processo mais amplo de letramento...” (p. 14)

Assim, a familiaridade de crianças com as práticas de letramento no contexto doméstico provoca a abstração de estruturas típicas da modalidade escrita, que podem interferir positivamente nos processos de escolarização, tal como foi comprovado por alguns pesquisadores que acompanharam crianças desde as suas primeiras descobertas até o inicio de sua escolarização. Reforçando a idéia das articulações necessárias entre as diferentes agências de letramento, os autores afirmam que “podemos dizer que o processo de letramento se inicia desde os primeiros contactos com a palavra escrita, em outdoors, na televisão, nas revistas e jornais que se encontram espalhados no contexto da criança.” (Idem, p. 14)

Os processos de interação social que, portanto, pressupõem sujeitos, vem sendo cada vez mais enfatizados, mostrando uma fecunda herança nos estudos de linguagem sustentados pela teoria bakhtiniana.

Letramento pressupõe não apenas a tecnologia da escrita, mas uma concepção de língua como discurso e interação entre os sujeitos, situados socialmente. Ser letrado é absorver o que está sendo produzido assim como ser capaz de produzir discursos que afetem o outro. Tais discursos, porém, não são originários de cada sujeito, mas fazem parte de um diálogo universal em que a cadeia de significados vai sendo construída pela participação discursiva de vários segmentos sociais em que as vozes sociais são tecidas. Bakhtin (1981), ao analisar o conteúdo ideológico da consciência, que para ele é social, pois se alimenta de signos lingüísticos, demonstra a importância de considerarmos o discurso exterior como material básico para a formulação do discurso interior numa relação dialética que gera uma visão de mundo identificada com as ideologias vigentes. Tais ideologias são veiculadas tanto por gêneros primários (mais característicos da oralidade e da vida cotidiana), quanto secundários (referentes aos sistemas constituídos de produção cultural) o que pressupõe a sistematização de constructos teóricos consolidados na ideologia do cotidiano. Isto significa que a circulação de discursos não se limita a espaços legitimados por estruturas de poder, mas atinge qualquer atividade humana em que a linguagem esteja presente.

O entendimento da linguagem como constitutiva do ser humano, como interação que se estabelece sob um fundo de discurso, cujo conteúdo ideológico orienta nossa visão de mundo, e não sobre o vazio de formas estanques, nos leva a considerar que a interlocução rotineira com diferentes portadores textuais, seja na escola ou fora dela, amplia a capacidade de atuar criticamente sobre a realidade cotidiana. Esta interlocução é fundamental dado que a linguagem não apenas representa o mundo, mas constrói sobre o mundo uma representação.

Dessa forma as práticas de aquisição da leitura e escrita trazem uma história que não se limita à forma ou ao método de ensino, mas aos conhecimentos internalizados a partir de práticas sócio-culturais construídas no interior da família e reforçadas na comunidade, cujo socioleto marca a sua identidade lingüística, na inter-relação com outros espaços sociais. Entretanto, não são apenas as marcas formais que dão conta da natureza da linguagem.

A partir de uma concepção bakhtiniana de linguagem, podem-se estender os conceitos limitados que circunscrevem a linguagem ao ensino de língua e sua ênfase nas formas lingüísticas, alargando-a para o processo de interiorização e exteriorização dos signos, numa dimensão sócio-ideológica, como pressuposto do processo de construção de conhecimento. Nesse sentido, a necessidade de tomar a língua como prática discursiva, atualizando freqüentemente os signos, nos leva a considerar o conceito de gênero como categoria importante de análise, à medida que este pode ser considerado o elemento organizador das práticas discursivas que não se dão apenas pelo uso indiscriminado dos recursos lingüísticos, mas sofre as coerções da estrutura composicional de determinadas atividades discursivas.

Os pressupostos teóricos que servem de base para a análise dos dados desta pesquisa pautam-se na concepção sócio-histórica e ideológica de linguagem de Bakhtin considerando as relações que o autor estabelece entre atividade humana e atividade discursiva. Do pressuposto de que qualquer campo da atividade humana está ligado ao uso da linguagem infere-se que o uso da língua não é feito de forma aleatória, senão que são constituídos determinados modos de dizer que ao longo do tempo vão se estabilizando, sem, contudo, perder o caráter dialético do signo lingüístico. As formas de comunicação verbal que na teoria bakhtiniana recebem distintos nomes como enunciados, gêneros discursivos, tipos de interação verbal, formas de discurso social “são inteiramente determinadas pelas relações de produção e pela estrutura sócio-polítca” (Bakhtin, 1981: 43), donde se pode depreender o caráter histórico da constituição da linguagem em que as coerções do sistema da langue a que o falante está sujeito constituem-se em apenas um aspecto da natureza da linguagem. Apesar das contundentes críticas ao Objetivismo Abstrato, realizados por Bakhtin em Marxismo e Filosofia da Linguagem, o próprio autor o considera de fundamental importância à compreensão do funcionamento da língua na sua estrutura imanente, pois provocou um incomparável avanço nos estudos lingüísticos. A questão, entretanto, que se coloca a partir da Lingüística da Enunciação é que o abandono do falante, nos estudos lingüísticos, também suprimiu as condições de enunciação e o caráter dialógico da linguagem. A noção de frase, no interior da Lingüística Estrutural, como unidade maior de pesquisa permitiu apenas que se estabelecessem as combinações internas dos elementos que a constituem, numa lógica objetivista.

Bakhtin, ao propor o gênero do discurso como objeto de análise do uso da linguagem, recorta o enunciado na sua contraposição à frase como conceito organizador. Embora cada enunciado possa ser considerado individual, cada campo de utilização da língua elabora tipos relativamente estáveis de enunciados a que ele denomina de gêneros do discurso. A heterogeneidade de gêneros discursivos reflete a heterogeneidade da atividade humana.

Enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. (Bakhtin, 2003: 261)

O contexto de trabalho e de cultura produz uma variedade de gêneros que estruturam modos de dizer identificados com esses elementos: conteúdo, estilo e estrutura composicional, próprios da sua organização interna, porém sem perder a sua dimensão dialógica. Tais contextos, entretanto, sofrem alterações decorrentes do processo histórico da sociedade, das disputas por significados decorrentes das correlações de força em que novas relações vão se reconfigurando em direção a novos horizontes sócio-políticos. Nesta direção o conceito de enunciado e de gêneros discursivos conserva os elementos pragmáticos que envolvem a produção de linguagem restituindo a sua natureza dialógica e as possibilidades de estudo de práticas de linguagem em todas as esferas de ação humana. A distinção necessária ente frase e enunciado, já posta por Bakhtin, exige a configuração de elementos que se distanciam de uma visão apenas estruturalista da língua em que o sentido da frase é secundário em relação a sua sintaxe. O discurso pressupõe um enunciador e, portanto, um contexto de enunciação incluindo um destinatário, um tempo, um lugar, um discurso que precede e outro que se segue. O estudo do enunciado, para Bakhtin, configurar-se-ia como a unidade real da comunicação discursiva concreta (relativa à vida quotidiana, ao mundo do trabalho, aos sistemas ideológicos organizados: arte, ciência, religião etc.) Este conceito, associado aos conceitos de interação verbal e dialogismo, permitem uma compreensão mais significativa das unidades da língua, como sistema de formas.

A noção mais corrente de gênero, principalmente nos estudos concernentes à produção literária, é a do discurso metadiscursivo em que a existência de gênero se dá pelo discurso sobre ele, isto é, pela constituição do gênero em objeto de estudos, portanto um conceito teórico que permite tanto a observação empírica quanto a análise abstrata. “Numa sociedade, institucionaliza-se a recorrência de certas propriedades discursivas e os textos individuais são produzidos e concebidos em relação à norma que constitui essa codificação.” (Todorov, 1978: 51)

No âmbito da Literatura, Todorov (1978) afirma que as mudanças de gêneros literários na modernidade, ocorreram de forma intencional por alguns autores, não como uma simples negação da sua existência, mas como uma transgressão, só possível pela sua existência histórica. Reafirmando a importância do estudo dos gêneros, o autor compara a poesia a outras formas artísticas, destacando que “ela tem em comum com o discurso quotidiano ou científico, o uso da linguagem. Só os gêneros lhe são exclusivamente próprios.” (p. 48) Falar da origem dos gêneros é concluir que um gênero vem de outros gêneros, através da transformação de vários, seja por inversão, deslocamento ou por combinação.

Todorov apresenta como propriedade discursiva dos gêneros, inicialmente definidos como classe de textos, os aspectos semânticos, sintáticos, pragmáticos e verbais, este último entendido como a materialidade dos signos. Tais aspectos podem ser tomados para analisar o real do discurso e não apenas sua potencialidade.

A constituição histórica dos gêneros, decorrentes das formas de relações sociais em determinadas épocas, produz a sua institucionalização que tende a funcionar para os leitores como “horizonte de espera”, isto é, como esquemas de referência já construídos pela trajetória de leitura e como “modelo de escrita” para autores, mesmo considerando os gêneros como “princípios de produção dinâmicos”

A valorização de certas formas genéricas pode ser estudada a partir das ideologias dominantes em que os valores, considerados mais significativos, são disseminados por meio de certos gêneros. Podemos tomar, como exemplo, a nossa sociedade em que a informação tende a constituir-se em um bem gerador de capital, em razão disso, o gênero jornalístico tem se infiltrado em diferentes instituições viabilizando a velocidade das informações. Nesse sentido, realidade histórica e realidade discursiva se interconectam, posto que a língua é considerada como atividade social em que os valores ideológicos nela se alojam, enfatizando a perspectiva semântica e axiológica e sua condição de ação e não apenas de instrumento ou veículo.

Os estudos dos gêneros historicamente circunscritos aos estudos literários, tiveram a partir de Bakhtin e da Nova Retórica um impulso para a consideração de gêneros não literários, podendo constituir-se em categoria importante tanto para a análise das práticas de linguagem articuladas às práticas sociais, quanto em objeto de ensino como elemento organizador das práticas de letramento dentro e fora da escola. Segundo Dolz e Schneuwly (2004), a focalização na concepção de gênero, na perspectiva dialógica da linguagem, ainda está se estruturando no âmbito acadêmico.

Do ponto de vista do ensino da língua materna, as contribuições da Lingüística Textual já operaram algumas mudanças no sentido de considerar o texto além da sua instrumentalidade para a busca de questões ortográficas e gramaticais, na medida em que alguns fatores pragmáticos e lingüísticos se incorporaram ao processo de ensino. Entretanto, o processo de transposição didática de alguns conceitos científicos sofre a adequação à cultura escolar de modo que a aplicação costuma distanciar-se das suas condições de produção e conseqüentemente da sua pertinência como categoria de análise. Não é o caso de tratarmos tal questão como um problema escolar, mas de entendermos que o contexto de situação transforma as intencionalidades iniciais, em prol de outros objetivos. Embora a Lingüística Textual ofereça categorias importantes de análise, há uma tendência a se limitar à estrutura do próprio texto dando ênfase prioritária aos fatores lingüísticos, tais como a coerência e a coesão.

A consideração dos gêneros discursivos como organização do discurso humano, diretamente imbricado nas suas condições de produção, implica na recuperação da dinamicidade da linguagem articulada a outras práticas sociais e ao uso ordenado e controlado do discurso. As pessoas ouvem, falam, lêem, escrevem de maneira socialmente determinada, como membros de determinadas categorias sociais, grupos específicos, profissões, organizações, comunidades, sociedades ou culturas. Isto permite considerar os aspectos sócio-culturais, indo além das descrições apenas dos elementos lingüísticos.

Nos estudos realizados por esta pesquisa foram considerados não apenas as estratégias de ensino/aprendizagem da língua materna no contexto escolar, mas também aspectos sócio-culturais da origem dos alunos a fim de compreender em que medida o universo escolar se aproximava do universo familiar. Foram investigadas as práticas sociais que se utilizam da escrita como elemento organizador das suas inserções no mundo do trabalho e nas relações constituídas no interior da família, a fim de detectar as familiaridades construídas em relação aos gêneros discursivos utilizados que mais se aproximem daqueles valorizados socialmente, ou seja, dos gêneros secundários, valorizados pela escola. Os dados levantados nos levaram a perceber que os pais dos alunos raramente participam de práticas de letramento em que os gêneros secundários estejam presentes, senão em casos de participação em liturgias religiosas. A leitura de jornais ou revistas é rara e suas profissões (os pais: segurança, açougueiro, balconista, borracheiro, ajudante cozinheiro, servente de obras, faxineiro, operário em fábrica de sardinha, conserta coisas, porteiro, negócio de cimento, manobrista; as mães: servindo café na oficina, diarista, do lar, vende quentinha, artesã de crochê e auxiliar de enfermagem. Nos dois grupos havia um número significativo de desempregados), não exigem práticas específicas de letramento, senão um contato eventual com instruções como receitas culinárias ou distribuição de correspondências.

A participação dos pais e responsáveis nas tarefas escolares foi relatada em termos de supervisão sobre o uso do tempo dedicado e não de ajudas específicas. Segundo os alunos os deveres de casa são fáceis e nem sempre o seu cumprimento é exigido. Embora vários alunos relatem a leitura em casa de gibis e livros didáticos, eles não relacionam esses eventos com o processo de escolarização. Segundo eles, na escola só pode ler e escrever aquilo que o professor manda para poder aprender. O estabelecimento dessas distinções, destacadas pelos alunos, denota suas estratégias para tornarem-se letrados conforme as exigências escolares e sociais, configuradas pelas suas experiências discursivas e sócio-educativas, construídas no interior da família e da escola.

Buscando compreender os modos de interação verbal que povoam o contexto escolar, percebemos que as atividades discursivas ocorrem em espaços regulados, em que as posições hierárquicas que cada sujeito ocupa determinam as formas de comunicação verbal, produzindo enunciados com uma estrutura composicional característica de gêneros primários, em certas situações. Por outro lado fica clara a expectativa de incorporação, como meta pedagógica, de gêneros secundários, principalmente aqueles relacionados à literatura, à ciência e à gramática. Entretanto os conteúdos e estratégias pedagógicas se distanciam dessa expectativa, pois a excessiva fragmentação e simplificação das áreas temáticas condenam os alunos à repetição de infindáveis exercícios com objetivos pouco claros.

O estudo da língua no espaço escolar como conteúdo obrigatório tem-se pautado principalmente por um elemento organizador que é a estrutura gramatical da língua materna, expressa em exercícios simples no inicio da escolaridade. Tais exercícios podem ser caracterizados por concepções que sustentam as práticas pedagógicas. Nos anos iniciais o ensino da escrita se propõe, na maioria das vezes, a estabelecer a correspondência entre fonema e grafema, utilizando para tal diferentes estratégias já devidamente descritas tais como os métodos fônicos, silábicos, palavração, global. Qualquer desses métodos tem no aprendizado do código da escrita seu foco fundamental. O segundo e o terceiro ano de escolaridade, pelos dados levantados na pesquisa, continuam o trabalho, tendo como foco a palavra, principalmente a segmentação desta, enfatizando com o decorrer do tempo as chamadas dificuldades, tais como dígrafos e encontros consonantais.

Apesar da expectativa de que no terceiro ano já seria possível a produção textual esta não se concretiza como elemento importante do trabalho, o que caracteriza o pressuposto de que primeiro é necessário aprender a língua para depois inserir-se nas práticas de linguagem. Essa concepção instrumental da linguagem não pode ser creditada apenas a limitações de práticas pedagógicas ou incipiência na formação do professor. Os estudos lingüísticos pouco oferecem em termos de categorias para criar articulações necessárias entre os usos e funções sociais da língua, comprometidos com a produção concreta dos discursos, e os conteúdos de ensino da língua materna. A distinção entre produzir linguagem, inserindo-se no mundo letrado, e aprender a língua ainda é o eixo que diferencia os processos escolares do mundo da vida. A junção dessas duas dimensões está longe de ocorrer.

A questão que se coloca em relação ao papel da escola em promover, por meio do ensino, a construção de competências discursivas necessárias à participação na sociedade pode ser formulada em termos da exposição e análise de práticas discursivas que possibilitem depreender temas e seqüências discursivas, cuja estrutura composicional e escolha de recursos lingüísticos, tanto léxicos quanto gramaticais, possa ser utilizada na sua produção de linguagem. Por outro lado seria necessário considerar em cada fase escolar a trajetória lingüística dos alunos relacionadas aos gêneros a que se filiam, para compreender sua lógica de organização discursiva e suas experiências com práticas e eventos de letramento.

Entretanto os dados coletados indicam que o aluno ainda mantém introjetada a cultura de que na escola se aprende a língua como um conteúdo exterior ao sujeito, mas não se aprende o uso ou a produção de linguagem. Tais elementos puderam ser constatados a partir do mapeamento das práticas pedagógicas nos três anos de escolaridade e da análise dos cadernos de alguns alunos. Esse mapeamento realizado a partir de algumas categorias que incluíam tanto conteúdos como atividades escolares permitiu concluir que 85% do tempo em sala de aula destinavam-se a exercícios pautados pelo condicionamento da aprendizagem dos elementos constituintes de palavras, sejam fonéticos ou morfológicos, e que o máximo permitido era a construção de determinados períodos simples em que o fundamental era o uso correto da ortografia das palavras e da concordância verbal em ocorrências de predicados nominais.

A fim de que pudéssemos compreender o uso possível de tais ensinamentos, propusemos em duas ocasiões a produção de textos do gênero autobiográfico, considerando que tal temática não exige informações além daquelas vinculadas às vivencias dos alunos. Para a análise dessas produções buscamos entender qual seria o elemento dominante na construção do texto que indicasse as escolhas sintático-discursivas.

As análises feitas nos textos infantis indicaram dois movimentos em relação à sua elaboração: que a propriedade pragmática da situação discursiva, centrada na atitude almejada do leitor venha a ser o elemento mais forte que organiza os textos dos alunos. O enunciador não se atribui uma função de narrador ou de personagem principal de sua narrativa, mas elabora escolhas sintático-discursivas que atendam ao modelo prescrito, recorrentemente enfatizado no seu processo de aprendizagem. As propriedades semânticas que teriam a função de encadear a progressão do texto são fortemente marcadas por repetições de construções sintáticas reforçadoras do mesmo tópico. O sentido do texto enfraquece-se pela subordinação à sintaxe considerada apropriada.

Outro grupo de textos demonstra um forte papel do narrador como personagem do texto a partir de sua intencionalidade em exprimir desconfortos em relação ao que lhe é imposto. A organização sintática decorre de uma subordinação ao tema e sua progressão. Embora a situação discursiva seja semelhante, a propriedade pragmática ocupa uma força menor, submetida à propriedade semântica que dá o tom da produção.

De um conjunto de 25 textos analisados foi possível depreender que a maioria dos alunos não estava habituada a exercer o direito de expressar-se em ambiente escolar em que o que lhe é exigido é o estudo da norma como condição de práticas futuras de escritas legitimadas em que os gêneros discursivos produzidos em ambientes extra-escolares não exercem nenhum papel estruturador das suas formas de dizer. A maioria tende a enquadrar-se no modelo assimilado pelas recorrências de textos acartilhados, cujo único propósito é demonstrar o uso de determinadas formas de grafar palavras ou de combinar seqüências básicas de elaboração de frases simples que não contenham marcas da subjetividade dos seus autores.

Podemos concluir que a cultura escolar produz gêneros específicos próprios ao contexto de situação, em que se estruturam formas de interação verbal, cuja intencionalidade não se pauta na produção de enunciados, mas na produção de frases independentes, longe de se constituírem em unidades semântico-discursivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Para maiores informações remeto a Frigotto (2005)

[2] No caso desta pesquisa, todas essas informações foram coletadas por meio de entrevistas.