PERCURSOS DA ESCRITA

Celi Maria de Souza

 

INTRODUÇÃO

O artigo que ora apresentamos constitui uma investigação em nível ainda preliminar acerca da influência da variação lingüística no ensino da escrita. Essa questão é uma das vias de estudo que nortearam a elaboração de nosso projeto de dissertação cujo foco de interesse maior centra-se em questões relativas ao ensino da habilidade de escrever e ao valor da escrita na sociedade contemporânea.

Em nossa prática cotidiana temos vivido o desafio constante de tentar transformar o exercício da escrita numa atividade significativa, com propósitos claros para nossos alunos. Entretanto nem sempre temos conseguido realizar a contento esse objetivo. Aliás, a se considerar todas as reclamações que fazemos diariamente, essa tarefa ganha ares de uma quase impossibilidade. O que fazer então?Onde encontrar explicações para tal situação? Na busca de, pelo menos, delinear algumas respostas é que se insere esta pesquisa.

Ao chegar à 5ª série, pretensamente o aluno já domina o código escrito e, salvos os casos de exceção, realmente é assim que se passa: o aluno sabe ler e escrever. Tem problemas ortográficos, mas em certa medida, quem não os tem? Se de fato é assim que as coisas se dão, por que tantos professores de quinta até oitava séries insistem em dizer que a maioria de seus alunos lê e escreve mal? Que concepções de língua presidem esse tipo de afirmação? O que significa, para os professores, trabalhar a escrita? O que a escrita em si mesma significa para eles? De que valores ela se reveste?

Acreditamos que um dos fatores importantes para explicar tanta insatisfação e frustração por parte de professores e alunos no trabalho com a produção de texto seja a existência de um imenso hiato lingüístico entre eles. Inserimos este estudo na tentativa de mostrar se os professores percebem ou não esse distanciamento e, se percebem, de que forma essa percepção se dá.


 

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Para os propósitos deste artigo entrevistamos, segundo o critério de amostragem, seis professores: três deles atuantes simultaneamente nos sistemas privado e público de ensino e três atuantes exclusivamente no sistema público. Pretendemos, nesse primeiro momento, entrar em contato com algumas crenças e idéias do professor acerca de seu trabalho com a língua portuguesa em geral e com o ensino da escrita em particular.

Escolhemos a entrevista como procedimento de coleta de dados, porque muito mais que informações de caráter subjetivo e/ou objetivo, ela pode oferecer, segundo Haguette (1987: 77), “o retrato que o informante tem de seu mundo.” e, além disso, conforme Selltiz (1975: 271-2), apresenta as vantagens de poder-se refazer as perguntas a fim de torná-las mais inteligíveis para o entrevistado, de poder-se solicitar esclarecimentos acerca das respostas obtidas e, ainda, de ser “a técnica mais adequada para revelação de informação sobre assuntos complexos, emocionalmente carregados ou para verificar sentimentos subjacentes a determinada opinião apresentada”. Dentre os tipos de entrevista possíveis, a semi-estruturada pareceu-nos a mais adequada para nossos fins, uma vez que, mesmo sendo apoiada em questionamentos prévios, ela supõe a ampliação das interrogativas durante o seu próprio desenrolar e mais: “oferece todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação” (Triviños, 1987: 146).

As perguntas, de acordo com o enfoque, puderam ser divididas em três blocos ou grupos. O primeiro deles indagava acerca da opinião do professor sobre a necessidade ou não de um trabalho exclusivamente voltado para a produção de textos e sobre a importância ou não de haver um profissional especialmente destinado a esse trabalho. Indagava ainda sobre como ele é atualmente desenvolvido e como deveria ser, segundo a visão do entrevistado. O segundo grupo de questões indagava sobre o ensino de português nos dias de hoje, sobre a avaliação do entrevistado acerca das mudanças havidas, sobre a existência ou não de planejamento por área na escola em que trabalha e sobre as diferenças do trabalho desenvolvido com a língua portuguesa no sistema público e no sistema privado. E, por último, foi perguntado aos professores se eles viam em sua prática educativa alguma dificuldade derivada da variabilidade lingüística.

A seleção das perguntas buscou privilegiar vários aspectos da questão em estudo. Quanto ao encadeamento, este levou em conta os aspectos centrais do problema investigado, assim, as primeiras perguntas tratam da produção de texto e a última da variação lingüística.  

 

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

A percepção da natureza heterogênea da língua, da relação dialética entre forma e função lingüísticas e do relativismo cultural – princípio segundo o qual não há “dialetos ou variedades inadequados ou inferiores” – são premissas básicas adotadas pela Sociolingüística e que terão importância fundamental no olhar que esse campo de estudos lançará sobre o processo educacional (Bortoni-Ricardo, 2005: 115). Pode-se dizer até que essas premissas de base da Sociolingüística comprometem-na, desde sua origem como uma área independente de estudos, com o problema educacional. Compromisso ao qual, aliás, ela não se furtou, haja vista que desde o final da década de sessenta as discussões sobre o fracasso escolar freqüentavam a agenda dos sociolingüistas. Segundo Bortoni-Ricardo (2005), nesse momento, defendia-se a tese de que a interferência dialetal seria a maior responsável por esse fracasso. Como partidário dessa tese Labov (apud Bortoni-Ricardo, 2005) acrescentava-lhe ainda um outro aspecto: a ignorância recíproca entre professores e alunos das variedades lingüísticas que lhes seriam próprias respectivamente (a padrão e a não-padrão) e, além disso, reconhecia o não esgotamento da questão nesse aspecto, pois se havia de considerar não apenas o problema estrutural – de natureza lingüística –, mas também o problema funcional – de natureza cultural – decorrente do conflito entre os valores dos grupos em contato no processo educacional. De um lado, os valores da cultura dominante representada pelos professores e de outro, os valores das culturas dominadas representadas pelos alunos.

Essa mirada dos sociolingüistas nas questões relativas à educação prolongou-se por todo o século XX, período em que muito do que foi produzido pelo trabalho sociolingüístico, especialmente em relação aos resultados das análises contrastivas de dialetos, realizadas no início dos anos setenta, pôde ser proposto como saída possível para os problemas da educação, “principalmente na implementação de uma educação bidialetal, que se iniciaria com material redigido no dialeto” do grupo ao qual se destinasse. Entretanto, nas décadas de oitenta e noventa “o entusiasmo pela educação bidialetal arrefeceria, na medida em que não se constatavam resultados positivos em sua aplicação” (Bortoni-Ricardo, 2005: 117). Nesse terreno do entusiasmo enfraquecido, proliferaram as críticas advindas tanto do seio da própria Sociolingüística, quanto da análise do discurso e da sociologia.

A proposta de uma educação bidialetal compreende a aplicação de métodos elaborados para o ensino de língua estrangeira ao ensino da variedade padrão para alunos falantes das variedades estigmatizadas (id. ibid., p. 121). Embora, à primeira vista pareça a solução perfeita, assim não se revelou e as críticas vieram. Do interior da sociolingüística veio o questionamento quanto à eficiência da pedagogia bidialetal e quanto ao papel da escola como lugar de difusão da variedade padrão. Da análise do discurso veio a idéia de que a própria noção de variação teria sido naturalizada, sendo necessário desnaturalizá-la e da sociologia vieram as críticas com relação à falta de uma teoria social mais abrangente a embasar as práticas orientadas pelos estudos sociolingüísticos. 

Segundo a perspectiva sociolingüística, conforme já enfatizamos noutro lugar, a relação entre dialetos não-padrão e dialeto-padrão seria de equivalência, uma vez que as variedades lingüísticas têm sempre o mesmo valor estrutural havendo entre elas apenas um conflito funcional já que aquela tomada como padrão é mais aceita que as demais. Eis aí o espaço para o ‘ bidialetalismo funcional’, assim denominado porque supõe a necessidade do ensino da variedade padrão juntamente com a habilidade de usá-la de acordo com a exigência do contexto comunicativo. A sociologia, especialmente na figura de Pierre Bourdieu, vai mostrar que a fragilidade dessa proposta reside no fato de ela não colocar em questão a natureza social do estigma lingüístico. Pelo contrário, ela toma a variação e até a estigmatização como um dado e a partir daí tenta fornecer aos falantes de variedades não-padrão elementos de “adequação” ao status quo.

Apontadas as falhas é hora de fazer o balanço: pode-se ainda apostar nessa proposta? Cremos que sim. Soares (2002) defende um bidialetalismo voltado para a transformação e, por isso, questionador do pressuposto de adequação que a adoção desavisada do método supõe. Segundo a autora, neste ponto em concordância com Pierre Bourdieu, o bidialetalismo funcional, conforme a Sociolingüística o tem concebido, falha ao tomar a existência de um dialeto-padrão prestigiado como um dado inexorável ao qual caiba apenas adequar o aluno. 

 

PERCURSOS DA ESCRITA

Escrever é necessário? Não sendo essa uma atividade natural como andar, comer ou falar, essa necessidade, se existe, é forçosamente uma criação historicamente datada cujo nascimento atendeu a demandas, da mais variada ordem, socialmente engendradas.

Segundo Higounet (2005), o mais antigo sistema de escrita de que se tem notícia documental é a escrita cuneiforme dos sumérios vigente entre eles durante os quarto e terceiro milênios a.C., depois ela veio a propagar-se por toda Ásia anterior constituindo-se, assim, “meio de expressão” para várias línguas.

Desde essa escrita não-alfabética, um longo percurso foi percorrido até o estabelecimento da escrita alfabética cujos primórdios podem ser encontrados na “escrita pseudo-hieroglífica das inscrições de Biblos” (Higounet, 2005: 60) datadas provavelmente dos séculos XV ou XIV anteriores à nossa era. Entretanto o caminho não foi tão linear conforme parece sugerir essa exposição, basta saber que a idéia de grafar as consoantes isoladas já aparecera aos egípcios e crê-se que, por influência deles, tenha aparecido também, durante o segundo milênio a.C., aos povos semíticos ocidentais situados às margens do Mar Vermelho e do Mediterrâneo. Enfim foram muitas as vias confluentes até a fixação e difusão da escrita alfabética. Entretanto, para nossos objetivos presentes não interessa perseguir-lhe, detidamente, os passos retrospectivos, por mais fascinante que seja sua história. Interessa-nos sim retomar a Idade Média, especialmente seus últimos séculos, período em que, segundo Gnerre (1998), houve todo um empreendimento no sentido de associar uma dentre as variedades faladas em cada língua à escrita. Esse foi um processo lento. Primeiro o estabelecimento de uma variedade como modelo e, depois, sua associação à tradição gramatical greco-latina. Nasce daí uma língua escrita duplamente legitimada: por ter sido a língua falada pelos grupos de poder e por ter estirpe. Todo o processo difícil de adequação a essa estirpe clássica é esquecido e sua “superioridade” naturaliza-se.

A escrita, por ser uma habilidade que exige aprendizado, tem sido de domínio restrito ao longo da história. Mesmo em nossos dias, ela ainda não é uma realidade generalizada entre a população de muitos países. Talvez exatamente por isso, por constituir privilégio de alguns poucos em tantas partes do mundo ou por ser de posse irrestrita em tão mínimo fragmento do globo é que seu valor simbólico seja tão imenso. Não se pode esquecer também seu valor prático em sociedades grafocêntricas como as nossas sociedades ocidentais contemporâneas.

 

A ESCRITA E A ESCOLA

Quando se fala em escrita em nossa sociedade grafocêntrica todo o percurso de legitimação de uma determinada variedade está pressuposto, portanto, fala-se em escrita da variedade padrão da língua. É nessa variedade exatamente que os insucessos se multiplicam. E por que aprender a variedade padrão? Ora, se podemos, com certeza, afirmar que o domínio da variedade padrão não é condição primeira de ascensão social, o não domínio dela é, por outro lado, garantidamente, mais um fator de exclusão.

De acordo com Abrahão (1992), no Brasil, é nos meados da década de setenta, a partir da inclusão obrigatória de provas de redação em concursos vestibulares que a escrita torna-se um objeto de ensino abordado segundo as mais diversas perspectivas teóricas. São estudos que objetivam apontar novos pontos de vista, novas metodologias tendo sempre como foco uma maior eficácia no trabalho de ensinar a habilidade da escrita. Esse é também o tempo que marca o início da proliferação dos manuais de técnicas de redação cujo legado ainda se faz muito presente quando o que se pretende é ensinar a escrever.

E O QUE DIZEM OS PROFESSORES...

Sobre o trabalho com produção de texto

Acho que é só através da produção de texto que a gente conhece o aluno, mas eu trabalho numa escola muito conteudista, eles aprendem gramática mesmo... Eu digo sempre que eu sou muito tradicional, acho que me acostumei a trabalhar assim [...] Não acho certo professor diferente não...Eu, por exemplo, uso todas as técnicas que eu vou aprendendo com pesquisa, com os colegas...Depois dali (dos textos produzidos) é que eu vejo o que é preciso trabalhar na gramática. (E1 E Part.)

A produção de texto é mais importante que a própria aula de língua portuguesa, é o que tem de mais importante na aula de língua portuguesa. Se eu dissociar a aula de produção de texto da aula de língua portuguesa eu acabo tendo um aluno que não consegue produzir um texto coerente [...] minha aula toda é de produção de texto. Quando ele (o aluno) estuda gramática? Ele estuda gramática quando há necessidade. (E2 E Part.)  

É importante porque leva o aluno a colocar seu modo de pensamento, a sua vivência, porque antigamente nós éramos muito tolhidos, a gente ficava preocupado com a gramática, hoje o aluno pode expressar mais a criatividade [...] Tem que ser o mesmo professor, porque ele é que vai saber quais são os problemas[...] (E3 E Pub.)

Não, eu acho que não (deve haver um professor específico para produção de texto), acho que a produção de texto surge na medida em que na sala de aula o professor produz esses textos com o aluno, porque os textos são produzidos naturalmente, primeiro orais, depois eles passam a ser escritos e tem aqueles mais formais, que ele (o aluno) precisa aprender[...] ( E4 E Part.)

Eu acho uma das partes mais importantes a produção de texto, é você retirar do aluno aquilo que ele leu ao redor dele (grifo nosso) e você verificar se houve ou não aprendizagem, é através da produção de texto que você vê isso.[...] eu acharia importante, eu gostaria de trabalhar... (só com produção de texto). O professor de língua portuguesa tem muita, tem muita coisa pra trabalhar. As produções de texto têm um fim imediato, não se estendem, acho que com um professor específico o rendimento seria melhor... (E5 E Pub.)

A leitura e a produção de texto são as duas coisas mais importantes da aula de português, porque os alunos estão lendo mal e escrevendo um pouco pior [...] Acho que não pode ser separado não. Por gramática de um lado e texto do outro? Eu me sinto desconfortável quando tenho que dar um conteúdo gramatical assim isolado, eu fico adiando... (E6 E Pub.)

Pelo que se pode perceber das respostas dos professores, todos eles consideram o trabalho de ensinar a escrever o centro de suas práticas docentes, mas esse trabalho parece limitado, de um lado, pela própria incerteza do professor a respeito do que priorizar em seu trabalho – gramática ou produção de texto – e, de outro, pela postura adotada pela escola. Na escola particular, isso se verifica de forma mais contundente: o professor agirá conforme a concepção de língua professada pela instituição. Na escola pública, embora todos tenham afirmado ser um espaço em que reina mais liberdade, o professor debate-se ainda entre a necessidade de um trabalho voltado para a leitura e produção de textos – mais as dificuldades concretas para implementar esse tipo de trabalho: turmas lotadas, falta de material, falta de tempo para planejamento, falta de subsídios teóricos – e uma constante culpa por sentir-se em débito com os alunos desde que não lhes fornece uma sólida formação em gramática normativa. Não é à toa que a mídia dá tanto espaço aos defensores das regras da gramática normativa, na realidade social cotidiana, vivida por professores e alunos, o prestígio simbólico dessa norma lingüística é inquestionável. E é na escola, segundo a crença fortemente entranhada na sociedade, que deve aprendê-la através de um estudo sistemático das prescrições gramaticais.

Está sendo difícil convencer os pais de que a gramática tá por baixo, porque tem pouca gramática... (E2 E Part.)

A fala da entrevistada permite-nos concluir que a velha divisão entre gramática e redação continua vigorando no imaginário coletivo e mais que isso, ela continua sendo cobrada como índice de eficiência do trabalho escolar com a língua portuguesa. A academia, com toda sua reflexão em torno da língua, parece distante demais do fazer cotidiano das escolas e, por isso, incapaz de apresentar-se como alternativa àquilo que Bagno (2002) denomina comandos paragramaticais.


 

Sobre o ensino de português:

Acho que mudou a forma de tratar o aluno, mudou também o jeito de dar a gramática, hoje é tudo mais contextualizado...Até na aula de produção de texto, sabe? A gente procura mais técnicas [...] Acho que a escola particular cobra mais do professor... (E1 E Part.)

Eu gostaria de um ensino mais rico. As escolas não viabilizam, a pública e a particular [...] para o professor trazer o diferente pra mexer com a criatividade deles. Você tem que trazer alguma coisa para poder mexer com eles, pra incentivar isso daí [...] No geral não se prepara os professores que saem das universidades para lidar com a realidade e trazer o diferente [...] Na minha época se cobrava muito a gramática. Eu até hoje eu me cobro, hoje você não é mais de colocar aquele acento de metro, o aluno hoje é mais respeitado... (E3 E Pub.)

Na rede privada há mais investimento, há mais cobrança [...] Houve mudança sim, não sei precisar o que foi positivo... mudou bastante, há mais democracia, a forma do professor tratar...Eu estudava gramática e fazia redação ‘Minhas férias’...Não acho que piorou a escrita não, só acho que tem mais gente escrevendo [...] Não sei por que as pessoas insistem em dizer que jovem não lê, porque tem muito mais material escrito, acho que eles não lêem o que a escola acha que eles devem ler. (E4 E Part.)

Eu nunca trabalhei em escola particular. Quando eu era aluna... Talvez por ser escola do interior, nós não tivemos acesso a muita leitura, era gramática... Hoje o aluno... a gente prioriza a leitura, a produção de texto, mas o aluno perdeu essa questão de interesse, de compromisso com o aprendizado. (E5 E Pub.)

Eu me formei em 2004, acho que aquelas teorias todas que a gente aprende na faculdade...a gente fica querendo um jeito de aplicar... [...]. Acho que tem de insistir, eu insisto muito na leitura, na interpretação...acho que as turmas tinham que ser menores pra gente fazer um trabalho mais verdadeiro...mais efetivo com produção de texto [...] O problema maior é esse desinteresse, é tanta falta de vontade, as famílias não tão nem aí... (E6 E Pub.)

Ninguém ou qualquer corrente lingüística questiona a necessidade de que a variedade padrão da língua seja de domínio geral, muito menos se põe em questão que seja função da escola disseminá-la. De forma geral, as falas evidenciam que o modo de trabalhar a língua portuguesa mudou. Há uma atenção maior sendo dada à leitura e à produção de textos. Entretanto, se de um lado nota-se que os professores mostram-se sensíveis a tudo que aprenderam, que têm o desejo efetivo de tornar seu trabalho com a língua portuguesa mais eficaz, de outro, percebe-se que ou sua prática oscila entre uma concepção formalista e legitimada da língua e tudo aquilo que ele conheceu ou toma conhecimento em termos de novas concepções de língua, ou atém-se mesmo ao caminho já conhecido:

Eu consigo chegar numa sala, cansada, sem um material sequer e dar uma aula de gramática, consigo até elaborar exercício ali, na hora; de texto não, aí a gente tem de preparar, senão fica uma coisa só pra passar o tempo...o aluno escreve à força... (E1 E Part.)

 

Sobre a variação lingüística

Acho que na escola particular não tem muito problema não, os pais deles se não usam a língua culta, eles querem que os filhos saibam usar...já tem um incentivo que vem de casa, eles sabem que é importante... (E1 E Part.)

Os alunos daqui às vezes brincam comigo dizendo ‘Por que você não fala mais simples?’, eu brinco mandando eles irem no dicionário... Os enunciados das nossas questões, do ENEM lá na frente, os enunciados não têm adequação quanto à variação... Ele ta sempre precisando reescrever, observar... letras de músicas com problemas, a fala dele, charges [...] Geralmente eles têm vocabulário bom aqui. (E2 E Part.)

Eu acho que não interfere, porque eu procuro respeitar a individualidade do aluno, eu procuro respeitar o meio onde o aluno vive, o que ele traz, né? A bagagem que ele tem [...] Se o professor se condicionar a olhar a língua portuguesa por um único caminho vai interferir. Agora desde o momento que você procura olhar a língua individual, olhar o que o aluno traz, a sua história de vida, não dá pra interferir não, pelo contrário, as produções ficam mais ricas... (E3 Pub.)

Do modo como eu faço, eu acredito que não seja ( um problema) não, porque eu ouço muito os meninos. Eles perguntam: Como? Que que você falou? [...] Procuro um vocabulário que não seja muito distante. Aconteceu aqui, eu usei uma expressão que parecia muito clara, eles não entenderam... (E4 Part.)

Ah, eu acho que não há dificuldade não, lógico que o professor tem que fazer um discurso mais próximo do aluno pra que o aluno entenda, mas ele não pode deixar de usar um certo tipo de vocabulário mais prestigiado. (E5 Pub.)

Não sei, acho que não... não. O que tem é muito desinteresse, eles lêem pela metade, tenho reparado que eles lêem a palavra do jeito que falam, não param pra prestar atenção... (E6 Pub.)

Ao elaborar a questão referente a esse tópico tínhamos como princípio norteador a variação lingüística e a hipótese de que como o trabalho com a escrita prioriza a variedade padrão ela própria constituiria o maior entrave ao sucesso dessa empreitada. Pensávamos que nessa disputa entre o conhecido – a variedade do aluno – e o desconhecido – a variedade padrão – o mais familiar venceria. Pensávamos comprovar isso na fala dos professores. Entretanto não foi assim que se deu. Ao serem indagados sobre a influência da variação em seu trabalho cotidiano, foram unânimes em afirmar que não reside aí o problema. Não houve entre os seis entrevistados nenhum que admitisse a variação como uma realidade lingüística capaz de interferir no entendimento entre alunos e professores. Todos apontam, porém, situações em que o entendimento havido não atendeu às suas expectativas, além de apontarem também procedimentos seus e dos alunos que atestam sim a interferência da variação.

 

CONCLUSÕES PROVISÓRIAS

O percurso traçado até aqui conduz-nos a conclusões que reforçam nossa hipótese inicial e referendam a escolha da entrevista como procedimento de coleta de dados. Embora o professores afirmem que o fato de a língua variar não constitui uma questão a ser levada em consideração no momento de explicar os problemas da relação ensino-aprendizagem de língua portuguesa em geral e da escrita em particular, paradoxalmente, o relato de suas ações e de suas concepções sobre o que ocorre em suas aulas deixa entrever que a variação é uma realidade orientadora do seu fazer diário. Tanto é assim, que tomam atitudes com a finalidade explícita de resolver problemas de caráter lingüístico que causam interferências indesejadas em sala de aula.

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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