teoria semiótica e ensino de redação

Regina Souza Gomes (UFRJ)

 

Introdução

...ou melhor, quando eu me sento para escrever, costumo levantar logo em seguida para fazer qualquer outra coisa. Faço isso algumas vezes. Tomo água, lembro de um telefonema para dar, até que não resta outro jeito se não encarar o teclado e enfileirar as palavrinhas, uma atrás da outra, e tratando para que elas não pinguem em gotas monótonas como as que pingam agora da torneira do banheiro e, desculpem, preciso me levantar e ir lá fechar a porta. [...] Escrever é um trabalho pesado. Dói. Às vezes dói muito. Às vezes, no entanto, são as melhores, você perde o pé do chão e parece só acordar – caraça! Por onde estive?! – quando pinga o ponto final. É o melhor de escrever, quando a concentração beira o transe. (Joaquim Ferreira dos Santos. O Globo, 1º/08/03)

O depoimento de Joaquim Ferreira dos Santos, publicado no Segundo Caderno do jornal O Globo, 1º de agosto de 2003, no decorrer da I Festa Literária Internacional de Paraty, sintetiza a dor e o prazer de escrever, tarefa muitas vezes necessária, outras, prazerosa, freqüentemente sentida como difícil, mesmo para muitos escritores experimentados. É o que demonstra a epígrafe, retirada de matéria produzida a partir do depoimento de quinze autores, vários deles expressando a insegurança e a angústia de enfrentar a folha em branco e, ao mesmo tempo, o alívio e a satisfação de ver o texto já pronto ou de se perder no seu universo em construção, mergulhado na “concentração” ou no “transe”, como diz Joaquim Ferreira dos Santos. O desespero de Adriana Falcão e o desejo de Zuenir Ventura de terminar logo a tarefa, em depoimento na mesma reportagem, reafirmam essa sensação, cada qual a seu modo:

...um texto para ser publicado, como este que estou escrevendo, sempre me ocorrem as mesmas sete idéias, nesta exata ordem:

1 – Não vou conseguir

2 – Toda vez eu penso isso.

3 – Se eu ligar para o cara e disser que tive uma crise renal?

4 – Toda vez eu também penso isso.

5 – Bem que eu podia encontrar um texto guardado que não serviu para outra coisa e servisse para eu usar aqui.

6 – Toda vez eu procuro e não encontro.

7 – E se eu me matar?

E quando resolvo não me matar é que começa o desespero. Pronto. Acabou a enganação. Foi desta vez. Deu-se a tragédia. [...]

(Adriana Falcão)

 

...quero acabar logo para voltar ao prazer da leitura, como agora. Por que então escreve? Porque, plagiando Armando Nogueira, não gosto de escrever, mas gosto de ter escrito. (Zuenir Ventura)

Se a tantos escritores por ofício o processo da escrita implica a superação da inércia e insegurança iniciais e muita trabalheira, os autores ocasionais, compelidos por alguma necessidade prática ou por obrigação escolar ou acadêmica, muito mais razões encontram para recuar diante dessa tarefa.

No entanto, numa sociedade letrada, é inegável a necessidade de se dominar a habilidade de produzir textos escritos. Seja por razões práticas, por registro de informações novas ou conhecimento acumulado, ou mesmo por exercício prazeroso de inventividade do autor, a redação de textos segundo o padrão considerado aceitável na sociedade parece ser uma preocupação importante de professores e de qualquer cidadão letrado.

Para Zuenir Ventura, o prazer e o motivo para escrever estão no caráter terminativo da ação – o fato de já ter escrito – mas para nós, professores e pesquisadores da linguagem, o importante é o processo – a construção mesma do texto, para a qual deteremos nosso olhar.

Nesse contexto, esse artigo pretende ser mais uma contribuição para a reflexão sobre a produção textual escrita e seu ensino na escola. São muitos os trabalhos, de artigos a livros, que abordam essa questão, mas dada a complexidade do tema e os problemas ainda enfrentados por aqueles que, de diversos níveis de escolaridade, devem ou querem assumir a tarefa de escrever e as dificuldades dos professores em orientá-la, voltamos a essa reflexão, a partir das recentes teorias do texto e do discurso, tendo como base teórica principal a semiótica de linha francesa.

 

Teorias do texto e do discurso
e ensino de redação

Dentre os obstáculos enfrentados pelos professores, podem-se enumerar a sua pouca prática nas atividades de escrita (que se traduz por um não saber e não querer escrever), a falta de domínio de uma teoria sobre o texto e o discurso que embase seu trabalho, e a própria normatividade da escola, tornando qualquer atividade de escrita uma obrigação descontextualizada a cumprir.

Tudo isso faz com que essa atividade se torne esporádica, mal organizada, intuitiva, sem que se tracem objetivos claros e eficazes de modo a resolver as dificuldades apresentadas pelos alunos, levando em conta as especificidades da construção do texto escrito. O pouco tempo destinado na escola para o desenvolvimento da habilidade de redigir é dividido entre o debate de assuntos propostos para as dissertações ou a preparação de dados (sugestão de espaço, tempo, personagens, ações) empregados nas narrações ou ainda exercícios preventivos e corretivos dos erros ortográficos e gramaticais esperados ou cometidos.

Como diz Ilari (1992: 80), “a atuação do professor de Português no tocante à redação diz respeito à forma...”. A sua preocupação deve ser, então, não só no que dizer, mas principalmente em como dizer. É claro que nenhum aluno pode escrever uma boa redação se não tem idéias a transmitir, e isso deve ocupar qualquer educador, no entanto, o professor de Português, pela particularidade de sua formação e de seu ofício, pode e deve assumir a função de desenvolver a competência textual e discursiva do aluno, criando condições de fazê-lo compreender tanto a organização imanente dos conteúdos lingüísticos, em seus diversos níveis de abstração, quanto a estruturação mais superficial da manifestação textual, dando-lhe coerência e coesão.

Concordamos com Orlandi (1996: 78) ao dizer que é na instância do autor (segundo a autora, nesta mesma obra, uma das formas de representação do sujeito enquanto produtor de linguagem) que “mais se exerce a injunção a um modo de dizer padronizado e institucionalizado”, cumprindo inúmeras exigências relativas à coerência, à forma do discurso, aos usos gramaticais, às regras textuais, originalidade, relevância etc.

Essas injunções, apesar de tornar o sujeito “calculável, controlável, em uma palavra, identificável” (idem), possibilita a eficácia do diálogo e da interlocução, já que o sujeito enunciador está imerso num determinado contexto sócio-histórico.

Assim, para escrever, não basta estar alfabetizado, ter o que dizer e derramar palavras no papel, mas é preciso construir um saber dizer de acordo com essas injunções relativas a um modo de dizer próprio.

Essa forma do dizer, quando se trata do texto escrito, não se restringe, entretanto, à correção gramatical e à ortografia segundo as prescrições normativas, como se pode depreender de Orlandi (idem) e bem mostrou Ilari (op. cit.: 78-82). Este autor defende que ao professor “convirá orientar o aluno na observação de aspectos textuais do uso da língua e na produção de textos coesos e adequados” (Ilari: 82).

Para que isso seja possível, o ensino de redação deve fundamentar-se em teorias do discurso e do texto, como salienta Fiorin (1997: 8). É preciso compreender que o texto é um todo de sentido que possui um plano da expressão e um plano do conteúdo. Caracteriza-se também, segundo observou Barros (1990: 7-8), por constituir-se como um objeto de significação e, ao mesmo tempo, um objeto de comunicação. Tem, portanto, uma estruturação interna e, inscritas nela, marcas contextuais.

Como corolário dessa inscrição, no próprio texto, de suas condições sócio-históricas de produção, está a sua relação necessária com outros textos e discursos, com os quais pode compactuar ou polemizar (relações intertextuais e interdiscursivas). Ademais, possui, para além do conteúdo dado, explícito, um conjunto de conteúdos que foram calados e de outros, implícitos, que jogam na sua significação.

A partir da compreensão dessa rede de relações e do aspecto dinâmico e dialógico que constrói a noção de texto, podemos, enfim, considerar o exercício de redação como uma atividade que pressupõe um conjunto complexo de competências a que o professor deve estar atento para propiciar o seu desenvolvimento pelo aluno por meio de uma ação pedagógica adequada, ao invés de se render a oferecer esquemas e fórmulas de redação estereotipadas, fôrmas de textos em que se encaixam quaisquer conteúdos em qualquer situação de comunicação (Cf. Fiorin, 1997: 9).

Antes de tratar mais especificamente das competências necessárias para a produção escrita adequada, é preciso comentar as diferenças entre a fala e a escrita e suas conseqüências para o ensino da redação. Mesmo inscrevendo-se no âmbito da competência lingüística, apreciaremos esse aspecto num item à parte, devido a sua importância.

 

Texto escrito e texto falado

No ensino de redação, muitas vezes não se consideram as características próprias de cada uma das modalidades de uso da língua. Ora a escrita é tomada como mera transcrição da fala, ora as duas modalidades são vistas como absolutamente dicotômicas. Tanto uma perspectiva quanto outra podem levar a ações pedagógicas equivocadas, às vezes inócuas, às vezes prejudiciais. Como diz Koch, que faz referência a diversos autores que corroboram sua posição (Halliday, Marcuschi e outros),

... os diversos tipos de práticas sociais de produção textual se situam ao longo de um contínuo tipológico, em cujas extremidades estariam, de um lado, a escrita formal e, de outro, a conversação espontânea, coloquial (Koch, 2006: 43)

Para o professor, é importante ter clareza tanto das propriedades que diferenciam a fala da escrita quanto da modulação que relativiza essa oposição, circunscrevendo as produções escritas nas diversas situações e condições de uso.

Uma das especificidades da escrita é o fato de que o texto é planejado de antemão, permitindo a sua reelaboração, revisão e correção, diferenciando-se da fala, em que o planejamento é local, ocorrendo simultaneamente à interlocução, tornando perceptível o processo de produção do texto.

Outra propriedade da escrita é a necessidade de se inscrever no texto os elementos próprios da situação de comunicação, já que, ao contrário da fala, os interlocutores não partilham do mesmo espaço nem o tempo da produção é o mesmo da recepção.

Na escrita, o destinatário não pode interferir na produção do texto direta e concretamente. Ele existe como uma imagem construída no enunciado pelo autor. Por isso, não se pode, como na fala, ir esclarecendo os pontos obscuros a partir das reações verbais ou gestuais do ouvinte, também co-participante da construção do texto falado. O texto escrito deve ser, então, claro e completo, revendo-se todos os esclarecimentos necessários para a compreensão do conteúdo, segundo os possíveis leitores do texto, cuja imagem, como já foi dito, está necessariamente inscrita no próprio texto (Cf. também Fiorin, 1995: 114-116).

Todas essas características acabam por determinar o modo de construção da coerência, do encadeamento coesivo, do emprego dos dêiticos, do próprio arranjo lingüístico (sintático, léxico etc.) específico para cada modalidade de texto. O aluno, ao se tornar consciente dessas particularidades, por meio da observação orientada pelo professor de diversos tipos e gêneros de textos orais e escritos, pode melhorar seu desempenho na escrita. O professor deve incentivar, principalmente, o exercício da revisão, possível na escrita, mas muito pouco praticada.

Não se pode esquecer também que

...existem textos escritos que se situam, no contínuo, mais próximos ao pólo da fala conversacional (bilhetes, cartas familiares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem textos falados que mais se aproximam do pólo da escrita formal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos administrativos e outros), existindo, ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários (Koch, 2006: 44)

Assim, diferentes gêneros[1] de textos falados e escritos podem não apresentar alguma(s) das características diferenciadoras dessas modalidades.

Outra abordagem simplificadora dessa questão ocorre ao se relacionar necessariamente escrita e variante padrão formal e fala e variante coloquial informal. Desse modo, muitos professores consideram erro o emprego de variedades diastráticas e diafásicas não-padrão em qualquer gênero de texto, de bilhetes pessoais a anúncios publicitários, de crônicas jornalísticas e textos humorísticos a romances. Qualquer das variedades lingüísticas pode ocorrer tanto em enunciados falados quanto escritos. A adequação do seu emprego depende do gênero, da intencionalidade do texto (chocar, impressionar ou aproximar-se do destinatário, por exemplo), do processo de figurativização dos personagens e do próprio narrador etc.

Muitos professores também reduzem a peculiaridades ortográficas reveladoras da pronúncia das palavras a influência da oralidade na escrita. Não percebem, por exemplo, a organização própria da escrita em textos com problemas ortográficos. Deixam de observar ou não sabem interpretar as rupturas, a representação de marcadores conversacionais, repetições, certas estruturas sintáticas próprias da fala não pertinentes a certos gêneros textuais escritos, não criando estratégias adequadas para a superação dessas dificuldades.

Compreendidas as diferenças entre fala e escrita, que, como vimos, se dão num contínuo tipológico, nos deteremos nas competências necessárias para a atividade discursiva, especialmente dos enunciados escritos.

 

Competências para o exercício da escrita

Para que o sentido do texto seja construído, deve-se desenvolver a competencialização do autor para o exercício da escrita, ou seja, um poder e um saber escrever, de acordo com as injunções mínimas quanto ao modo de dizer um conteúdo, para tornar possível a sua compreensão e aceitação pelo leitor. O autor deve, portanto, ser capaz de empregar os recursos de linguagem de várias ordens, suficientes e pertinentes para a constituição de um texto coerente e eficiente, dando conta da intencionalidade desejada.

Fiorin (1996: 32-33) arrola, como competências necessárias para a produção de um enunciado, as seguintes: lingüística, discursiva, textual, interdiscursiva, intertextual, pragmática e situacional. Procuraremos revê-las, apresentando considerações sobre sua implicação no ensino da redação. Dada a complexidade que abrange cada uma dessas competências, não será possível tratar exaustivamente de todos os seus aspectos, mas exemplificaremos, na medida do possível, alguns deles, após dar uma noção geral do que abarca cada competência.

A competência lingüística é básica, envolvendo, nesse caso, a aquisição da escrita. O autor deve conhecer e dominar a gramática e o léxico da língua para produzir textos aceitáveis. O conhecimento e escolha adequada das variedades lingüísticas nas diferentes situações de comunicação e o emprego apropriado das modalidades de uso, tratado no item anterior, também concernem a esse tipo de competência. Dificuldades com o emprego de determinados lexemas (desconhecimento de seu significado e possibilidades de uso) e estruturas sintáticas e morfológicas podem causar incoerências locais ou mesmo impossibilitar a interlocução. Isso é muito comum quando o autor não domina, por exemplo, a variante padrão da língua e deve empregá-la em determinada circunstância de intercomunicação escrita.

A competência discursiva engloba, segundo Fiorin (1996: 32), uma competência narrativa e uma competência discursiva propriamente dita, ou seja, está relacionada ao modo de estruturação lógica, em diferentes graus de abstração, do conteúdo do texto.

A competência narrativa diz respeito à organização lógica das diversas etapas de uma narrativa, representando as transformações de estado de um sujeito na busca de um valor investido num objeto e suas relações com outros sujeitos.

A competência discursiva propriamente dita abrange, sintaticamente, as projeções da enunciação no enunciado (actorialização, temporalização e espacialização, ou seja, as projeções de pessoa, tempo e espaço) e os mecanismos argumentativos, determinados pelas relações enunciador / enunciatário e, semanticamente, a tematização e a figurativização[2].

Em relação à competência discursiva, destacam-se dois aspectos que devem ser considerados no ensino da redação: a questão da argumentatividade e a questão da manifestação da ideologia na conversão dos valores em temas e figuras.

Todas as escolhas do enunciador, mesmo as relacionadas às projeções actanciais, temporais e espaciais, pretendem, em última instância, convencer e persuadir o enunciatário da “verdade” do seu discurso, sendo, portanto, argumentativas. A implicitação de conteúdos, a escolha de uma determinada norma lingüística, a citação de textos ou discursos autorizados e o modo de citá-los, a apresentação de argumentos contrários para refutá-los são exemplos de mecanismos argumentativos que podem ser utilizados. Todos esses procedimentos causam efeitos de sentido que impressionam o enunciatário, prendendo sua atenção e provocando sua adesão.

A escolha e emprego coerente de temas e figuras, que concretizam os valores veiculados pelo discurso, sua inserção ideológica assim como sua organização em percursos é outro fator importante na produção de textos.

O texto abaixo pode servir de ilustração do uso desses recursos discursivos no sentido de instaurar organização narrativa e orientação argumentativa ao enunciado, dando ao texto unidade coerente de sentido. Apenas destacaremos alguns recursos empregados, de maneira simplificada, dados os limites impostos pela dimensão e objetivos do artigo.

Marketing do além

Segundo fábula que circula em Brasília, um senador morreu e, ao chegar diante de São Pedro, ouviu que deveria ficar um dia no inferno e outro no paraíso para então escolher onde gostaria de passar a eternidade.

Levado ao inferno, viu-se no meio de um campo de golfe. Encontrou antigos colegas da política. Degustou champanhe e caviar. O diabo contava piadas.

No dia seguinte, no paraíso, avistou almas contentes que andavam nas nuvens tocando harpas e cantando. Ao final da jornada, o senador concluiu:

– Nunca pensei, mas acho que ficarei melhor no inferno.

Quando a porta se abriu, ele estava em um terreno baldio. Com as roupas rasgadas, seus colegas recolhiam lixo e entulho.

– Ontem estive aqui e era tudo diferente – disse atônito.

– Ontem estávamos em campanha – explicou o diabo – Agora já conseguimos seu voto. (Folha de S. Paulo, seção Painel, 4/7/04, p. A4)

Nesse texto, percebe-se que há a concretização de uma etapa da narrativa – a sanção negativa, o castigo recebido pelo senador – possibilitando a reconstrução, por pressuposição, das outras etapas de uma seqüência narrativa que organiza a ação de um sujeito político que engana e trai seu eleitorado. A competência narrativa é que possibilita organizar logicamente as etapas dessa narrativa de sanção, espalhando marcas que permitam ao leitor a reconstrução das etapas pressupostas.

Do mesmo modo, ao selecionar e relacionar figuras e temas (que concretizam os sujeitos e objetos de valor almejados na organização narrativa) de modo coerente, dando um sentido, uma direção argumentativa ao texto, o autor atualiza sua competência discursiva. Para ilustrar, em Marketing do além, a combinação de figuras como São Pedro, céu, inferno, paraíso, diabo etc., de um lado, e senador, campanha, voto etc. de outro, constrói universos coerentes em que circulam valores ideológicos no âmbito religioso (de tradição cristã) e político. Torna, também, o texto verossímil, permitindo a aceitação pelo destinatário dos valores veiculados no discurso.

Para desenvolver a competência discursiva, não é suficiente apenas a leitura de grande quantidade de textos para a absorção das variadas estruturas narrativas e discursivas. É preciso fazer, sim, uma leitura atenta e cuidadosa de cada texto, para que se possa descobrir o modo de construir a narrativa e sua cobertura discursiva em todas as suas sutilezas. É nesse sentido que se deve direcionar o trabalho do professor.

A competência textual também influencia decisivamente na produção de textos escritos. A percepção de que a ordem lógica do discurso não corresponde, necessariamente, à ordem dada pelas estruturas textuais é um dos dados fundamentais para a produção textual. O caráter linear que a textualização verbal impõe obriga, por exemplo, o autor a organizar sucessivamente narrativas concomitantes. Aliás, a ordenação temporal dos eventos pode aparecer de várias maneiras na superfície do texto, de acordo com o efeito a ser construído (surpresa, suspense etc.), bastando, para isso, empregar elementos lingüísticos adequados.

É o caso do texto abaixo, retirado da mesma seção do texto citado anteriormente:

 

Voto vitalício

O premiê do Japão, Junichiro Koizumi, surpreendeu em vários momentos de sua visita ao país. Em Brasília, manifestou desejo de conhecer Vanderlei Cordeiro de Lima e pediu ao atleta que repetisse o “aviãozinho” feito ao cruzar a linha de chegada da maratona olímpica.

Em São Paulo, sua parada anterior, fez descida não programada de helicóptero para cumprimentar membros da comunidade japonesa em Pradópolis.

Na volta, Geraldo Alckmin, que acompanhara o primeiro-ministro ao interior, levou-o a seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes. Lá chegando, Koizumi observou o porta-retrato sobre a mesa ao lado do sofá e comentou com o governador:

– Muito bonita a sua filha!

A foto era da primeira-dama do Estado, Maria Lúcia, o que levou Alckmin a responder:

– O sr. acaba de ganhar uma eleitora para o resto da vida.

(Folha de S. Paulo, seção Painel, 19/09/04, p. A4)

O fato de o premiê japonês ter visitado Brasília ocorreu depois da passagem por São Paulo, apesar de, no texto, a ordem de aparecimento dos eventos ter sido contrária. O emprego, porém, da expressão temporal sua parada anterior permite a liberdade na colocação dos fatos na linearidade textual e a recuperação da ordem temporal pelo leitor.

Outro aspecto relacionado à textualização dos conteúdos diz respeito à sua apresentação formal. As características formais de uma carta de leitor de jornal, uma poesia, um artigo científico ou petição, por exemplo, devem ser consideradas no momento de elaborar um texto. Essas peculiaridades formais próprias dos gêneros em questão são importantes por criar expectativas em seu destinatário, acionando esquemas que guiarão e facilitarão a leitura e devem ser apontadas pelo professor nas aulas de redação.

A competência interdiscursiva “diz respeito à heterogeneidade constitutiva do discurso” (Fiorin, 1996: 33), ou seja, às diversas formações discursivas que atravessam o discurso. Concerne aos conhecimentos relativos à cultura, a concepções consensuais ou polêmicas das várias vozes que constituem o discurso, expressando diferentes visões de mundo.

O texto Marketing do além, anteriormente citado, serve de ilustração no que concerne às escolhas de temas e figuras adequadas para inscrever no discurso determinado conjunto de valores a serem veiculados. Esses valores, concepções e conhecimentos devem ter uma base comum entre autor e leitor, pelo menos o suficiente para estabelecer a comunicação. Essa previsão dos conhecimentos e valores partilhados é que permite ao autor escolher os conteúdos que podem ser implicitados ou calados, sem tornar o texto incompreensível ou inaceitável a seu destinatário. Nesse texto, o modo como tem sido construída, nas diversas mídias e conversações cotidianas, a imagem dos políticos brasileiros é levado em conta para a construção do implícito relativo ao comportamento do senador em vida que justifique o castigo imposto após a sua morte, por sua própria escolha, manifestado no texto.

Nos exercícios e propostas de redação e revisão de textos, o professor deve dar especial atenção à inscrição no texto de um leitor virtual o mais próximo possível do suposto destinatário da produção escrita, seja ele particular ou coletivo.

Também relacionada às vozes que permeiam o discurso, a competência intertextual abrange a heterogeneidade mostrada, referindo-se “às relações contratuais ou polêmicas que um texto mantém com outros ou mesmo uma maneira de textualizar, como ocorre, por exemplo, na estilização” (Fiorin, 1996: 33).

Saber retomar outros textos, para comentá-los ou empregá-los como recurso expressivo ou argumentativo é uma forma de refinar e dar credibilidade ao texto escrito. Saber citar ou fazer alusão a outros textos é, muitas vezes, obrigatório em certos gêneros. Artigos jornalísticos, alguns tipos de cartas de leitores na mídia impressa, artigos e trabalhos acadêmicos, por exemplo, dificilmente podem escapar desse procedimento. A incorporação da voz do outro, para confirmá-la ou contestá-la, exige encadeamento coerente com a voz do enunciador que organiza e controla o intertexto. O texto a seguir, publicado no Painel do leitor da Folha de S. Paulo é um bom exemplo da incorporação de diferentes vozes no discurso, empregando, para isso, diferentes recursos:

 

Jornal racista na USP

Gostaria de ressaltar alguns fatos importantes em relação à reportagem “Jornal de alunos da USP traz piadas racistas” (Cotidiano, 22/06).

Primeiramente, é inegável a hipocrisia do grupo Escória, que clama “repudiar veementemente qualquer iniciativa de cunho discriminatório” e cai na contradição de publicar textos com alto teor racista, homofóbico e intolerante, mascarados por um tom jocoso de extremo desrespeito e mau gosto.

É penoso saber que tal grupo é responsável pela atual gestão do Centro Acadêmico XI de Agosto. Mais ainda: que é legitimado por uma eleição democrática ocorrida em 2004.

Como aluna do primeiro ano do curso de Direito da USP, senti-me extremamente desapontada com a situação da política estudantil com que me defrontei ao ingressar na faculdade. Tenho certeza de que parcela majoritária dos alunos compartilha dessa mesma opinião.

Atualmente, há inúmeras manifestações de descontentamento e de revolta contra a gestão do C.A., e é crucial que a sociedade brasileira saiba que mais de um século de tradição de ensino humanístico não será facilmente apagado por um grupo de alunos pretensiosos e inconseqüentes.

(Carolina Y. Furusho. Folha de S. Paulo. Painel do Leitor, 25/06/05)

A alusão à reportagem anterior do jornal em que está publicada a carta da missivista e a citação, entre aspas, do discurso dos alunos do grupo Escória são os exemplos mais evidentes do domínio dos procedimentos relativos a essa competência.

A competência pragmática se refere aos valores ilocutórios dos enunciados, ou seja, à sua força, às intenções do enunciador ao dizer, capaz de produzir efeitos diretos, reações (ocorridas nos casos de ordens, conselhos, interrogações etc.). Os enunciados são, portanto, não apenas objetos de transmissão do saber, mas uma forma de ação no mundo, e assim devem ser compreendidos para se construir o sentido dos textos, na redação.

Finalmente, entre os saberes que interferem decisivamente na interpretação do texto, a competência situacional corresponde ao conhecimento (que se constrói por um jogo de imagens) “referente à situação em que se dá a comunicação e ao parceiro do ato comunicativo” (Fiorin, 1996: 33). Assim, a situação em que se desenrola a comunicação e seus agentes influenciam o modo de construção de sentido do texto e o professor orientador da escrita do aluno deve estar atento aos aspectos situacionais que modificam o processo e seu resultado. O caráter artificial das atividades de redação na escola torna difícil a percepção pelo aluno desses aspectos situacionais a serem considerados na comunicação por meio da escrita.

 

Conclusão

A aquisição dessas competências aqui apresentadas é conquistada nas diversas etapas do aprendizado da escrita e não se esgota numa determinada fase da aprendizagem, mas vai se refinando e aprimorando nas diversas oportunidades de exercitar a escrita como forma de atuação no mundo, tanto para o aluno quanto para professores.

Para os alunos, a artificialidade das situações de produção escrita proposta na escola, a que talvez não possamos escapar, determina a ocorrência de textos sem sentido. São sem sentido não só porque apresentam formulação incompreensível para o leitor, mas também porque não têm um propósito, uma significação, uma direção: são textos sem destinatários. Ou melhor, o único destinatário é o professor que, longe de lê-los com interesse, apenas o faz para avaliá-los, marcar os erros ortográficos, as estruturas gramaticalmente defeituosas. Uma forma de tornar menos artificial a proposição de escrita na escola é fazer do texto do aluno um objeto de leitura para outros alunos, pais, comunidade, ou mesmo para o próprio autor, que registra conteúdos e informações a serem retomados e, quem sabe, posteriormente partilhados.

O professor pode, então, criar com os alunos situações de escrita que permitam a socialização do resultado. Essas circunstâncias em que se dará a intercomunicação devem estar bem explicitadas, assim como os supostos destinatários do texto, suas expectativas, seus valores, seus saberes.

Além disso, é preciso desenvolver as competências necessárias, por meio de atividades específicas e da observação atenta, nos diversos tipos e gêneros de textos, dos recursos empregados, seu efeito e eficácia, para que o aluno possa também empregá-los à sua maneira.

Finalmente, é necessário dar atenção à revisão dos textos, como já sublinhamos. Avaliar criticamente o próprio texto ou o do colega faz desenvolver a consciência no uso dos procedimentos e explorar mais radicalmente uma das peculiaridades da modalidade escrita no uso da língua – a possibilidade de reelaboração que permite.

Para que o trabalho com redação tenha bons resultados, reiteramos que o professor precisa abandonar de vez a facilidade de buscar sugestões práticas, modelos de propostas de redação, fórmulas para ensinar a escrever, enfim, as receitas. Ao contrário, as idéias de atividades poderão ser renovadas e criativas se o professor se dispuser a estudar também, a procurar bibliografia específica no âmbito das teorias do discurso e do texto para compreender mais amplamente os mecanismos de construção dos textos e embasar, assim, consistentemente, o seu fazer pedagógico.

E, antes de mais nada, o professor precisa também escrever – primeiramente, porque só podemos ensinar aquilo que sabemos – e nada melhor que exercitar a escrita (registrando experiências, resumindo livros lidos, partilhando descobertas...) para melhor compreender o caminho que deve ser trilhado para tornar-se autor autônomo e competente.


 

Referências bibliográficas

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GOMES, Regina Souza. Teoria semiótica do texto e ensino da leitura. In: Gragoatá, nº 2. Niterói: EDUFF, 1º sem. de 2004, p. 129-142.

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[1] Para o conceito de gênero, cf. Marcuschi, 2005, p. 19-36.

[2] Figurativização e tematização são mecanismos de concretização, no nível discursivo dos textos, dos sujeitos e objetos de valor que constituem o nível narrativo.