A CRÔNICA DE CLARICE LISPECTOR:
UMA ESPÉCIE DE AUTOBIOGRAFIA?

Fátima Cristina Dias Rocha (UERJ)

 

Mais conhecida por seus romances e contos, Clarice Lispector desenvolveu, paralelamente à produção ficcional, a atividade jornalística. Entretanto, a escritora sempre resistiu à assinatura de suas crônicas, preferindo proteger-se sob um pseudônimo, como o de Teresa Quadros, na coluna feminina do semanário Comício (1952); ou o de Helen Palmer no espaço “Correio Feminino”, do jornal Correio da Manhã (1959/1962). Já no Diário da Noite, Lispector foi ghost-writer da atriz Ilka Soares, na coluna “Só para mulheres” (1960/1961).

Do mesmo modo, quando, em 1953, surgiu a possibilidade de escrever para a revista Manchete, Clarice propôs o uso de um pseudônimo qualquer: “Até Tereza Quadros poderia ressuscitar, sem se especializar em assuntos femininos” (Lispector apud Sabino, 2001: 100). O projeto não se concretizou e a autora escapou, mais uma vez, da assinatura.

O risco da pessoalidade volta a ameaçar Clarice quando esta, alguns anos mais tarde, aceita o convite para assinar uma coluna semanal no Jornal do Brasil, iniciando uma colaboração que se prolongaria por sete anos: de 19 de agosto de 1967 a 29 de dezembro de 1973. Nesse período, Clarice conquista um vasto público, com seus fragmentos, soltos, somados na coluna, que reúne desde o breve diálogo e o conto mais longo, até anotações, traduções de trechos de escritores estrangeiros, perguntas, reflexões de teor filosófico e metalingüístico, principalmente sobre o escrever e sobre a crônica.

Se, em 1953, a autora confessara a Fernando Sabino o quanto lhe seria incômodo assinar suas crônicas na revista Manchete – pois teria a impressão de estar presente em pessoa, “provavelmente gaga de encabulamento” (Idem, 103) –, é aos leitores do Jornal do Brasil que Clarice Lispector confessa, em crônica de 9 de setembro de 1967, sua falta de habilidade como cronista e o receio de se expor:

Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal (Lispector, 1984: 20).

Apesar desse receio da exposição excessiva, a escritora, em grande parte de suas crônicas, trata diretamente de si mesma: “dos filhos, da casa, da cidade, das empregadas, do seu passado, dos lugares por onde andou e por onde anda, dos amigos, de bichos, da escrita, da arte: pintura, escultura, música, dança” (Gotlib, 1995: 375).

É tão intensa a densidade autobiográfica dos textos que Clarice publica no Jornal do Brasil que Nádia Battella Gotlib, na biografia Clarice: uma vida que se conta, os considera como “um extenso ‘diário’ de Clarice Lispector, que durou sete anos” (Op.cit.: 376). Na mesma clave, Lícia Manzo – autora de Era uma vez: Eu /A não ficção na obra de Clarice Lispector – afirma que, nas páginas do Jornal do Brasil, Clarice “escrevia o que se poderia, mais tarde, chamar de ‘autobiografia’, ainda que de modo inteiramente não planejado” (Manzo, 2001: 89). Por outro lado, a própria cronista declarou, em sua coluna: “Mas eu não quero contar minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia” (Lispector, 1984: 545).

A partir do contraponto entre as vozes de Clarice Lispector e de suas biógrafas, e tomando como corpus as crônicas publicadas no Jornal do Brasil e reunidas no livro A descoberta do mundo (1984), pretendo, neste trabalho, investigar algumas peculiaridades da cronista Clarice Lispector. Minha hipótese é a de que, no espaço da crônica, a autora tanto experimenta a escrita de caráter autobiográfico quanto problematiza a exatidão ou sinceridade dessa escrita, ao expor a reversibilidade de relações entre o autobiográfico e o ficcional.

Quando começa sua colaboração no Jornal do Brasil, a cronista “neófita” comenta que ainda se atrapalha com a escolha dos assuntos, pois não sabe o que interessa ao leitor. Um desses assuntos aparece pela primeira vez na crônica de 2 de setembro de 1967 (a terceira colaboração da autora para o Jornal do Brasil) e não mais abandona a coluna do jornal, nela permanecendo até 1970: trata-se da infância de Clarice Lispector, tema que compõe um dos veios mais dos veios mais férteis da inscrição do autobiográfico nas crônicas claricianas. Dentre os “textos da infância” destacam-se: “Tortura e glória” (02 de setembro de 1967); “As grandes punições” (4 de novembro de 1967); “Lição de piano” (9 de dezembro de 1967); “Restos do carnaval” (16 de março de 1968); “Banhos de mar” (25 de janeiro de 1969); “Medo da eternidade” (6 de junho de 1970).

Reconstituindo as experiências vividas em Recife com a família, a escritora, em tais crônicas, efetiva o que Philippe Lejeune chama de “pacto autobiográfico”, isto é, a afirmação da identidade autor-narrador-personagem, “remetendo em última instância ao nome do autor na capa do livro” (Lejeune, 1975: 26). Segundo Lejeune, a pessoa que enuncia o discurso deve permitir sua identificação no interior mesmo desse discurso, e é no nome próprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa. A questão da autobiografia não se coloca, para Lejeune, como uma relação entre eventos extratextuais e sua transcrição “verídica” pelo texto, mas sim a partir do contrato implícito ou explícito do autor com o leitor, o qual determina o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que, atribuídos a ele, parecem defini-lo como uma autobiografia. É nesse sentido que deve ser entendida sua definição de autobiografia, a saber: “Narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a história de sua personalidade” (Lejeune, op.cit., p. 14).

Se as “crônicas da infância” não chegam a delinear a “história de sua personalidade”, em muitas delas a escritora dedica-se à tarefa de retratar-se e avaliar-se – um dos aspectos essenciais do “ato autobiográfico”, segundo Elizabeth Bruss (1974: 14).

Assim, em “Tortura e glória”, a voz da mulher madura lança um olhar para o próprio passado e traça aproximações entre a criança e a adulta:

(...) O plano secreto da filha do dono de livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do dia seguinte ia se repetir com o coração batendo (Lispector, 1984: 17).

Todos se lembram desse episódio “de amor e de leitura” (Gotlib, 1997: 183) recordado por Clarice Lispector em “Tortura e glória” – texto que, com o título “Felicidade clandestina” e algumas alterações, passou a integrar o volume de contos Felicidade clandestina (1971).

Tentativa semelhante de buscar na infância as chaves de compreensão para a vida adulta encontra-se em “Restos do carnaval” – texto também incluído em Felicidade clandestina –, e na crônica “Banhos de mar”, em que a menina Clarice inaugura a série de banhos, um dos motivos reiterados da experiência vital – e ficcional – da escritora:

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que não consigo escrever. O mar de Olinda era iodado e salgado. E eu fazia o que no futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas, e trazia um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele (Lispector, 1984: 250-1).

Enquanto reconstrói, através dos mecanismos da memória, a infância passada em Recife, Clarice escreve, paralelamente, uma série de crônicas em que comenta os seus procedimentos como cronista, chamando a atenção para o tom pessoal de sua coluna. Na crônica “Dies irae”, por exemplo, publicada em 14 de outubro de 1967, Lispector afirma:

E agora [Teresa] me telefonou para ser franca: que eu não escreva no jornal nada de crônica ou coisa parecida. Que ela e muitos querem que eu seja eu própria, mesmo que remunerada para isso. Que muitos têm acesso a meus livros e que me querem como sou no jornal mesmo. Eu disse que sim, (...) (Lispector, 1984: 34).

Embora procure minimizar o desconforto causado pelo cunho intimista de suas crônicas atribuindo-o a uma exigência dos leitores, as preocupações com o ato de escrever crônicas, agora como atividade remunerada, continuam a ser tematizadas no Jornal do Brasil, como no fragmento “Ser cronista”, de 22 de junho de 1968:

Sei que não sou [cronista], mas tenho meditado ligeiramente no assunto. (...)

Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? Não sei, pois antes de começar a escrever para o Jornal do Brasil eu só tinha escrito romances e contos. Quando combinei com o jornal escrever aqui aos sábados, logo em seguida morri de medo. Um amigo (...) disse: escreva qualquer coisa que lhe passe pela cabeça, (...), porque coisas sérias você já escreveu, e todos os seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo honesto de ganhar dinheiro. No entanto, por uma questão de honestidade para com o jornal, que é bom, eu não quis escrever tolices. As que escrevi, e imagino quantas, foi sem querer.

E também sem perceber, à medida que escrevia para aqui, ia me tornando pessoal demais, correndo o risco daqui em breve de publicar minha vida passada e presente, o que não pretendo (Lispector, 1984: 155-6).

As mesmas inquietações – com destaque para o conflito entre a exposição e a necessidade de preservar a individualidade – são o tema do fragmento “Fernando Pessoa me ajudando”, de 21 de setembro de 1968:

Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas, mas agora entendo os nossos melhores cronistas. Porque eles assinam, não conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim, isto me desagrada. Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? (...) É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que se escrever sobre o problema da superprodução do café terminarei sendo pessoal. Daqui em breve serei popular? Isso me assusta. Vou ver o que posso fazer, (...). O que me consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos” (Lispector, 1984: 195).

Apesar de insistir na inevitabilidade da confissão por parte daquele que assina suas crônicas, a escritora, no final do fragmento acima, acaba por relativizar as próprias afirmações e, conseqüentemente, as certezas dos leitores, quando propõe, em lugar do binômio falar/revelar, um outro: falar/encobrir.

Da mesma forma, a idéia de que, na literatura de livros, Clarice permanece “anônima e discreta”, contrasta com a resposta que a cronista enviara a uma de suas leitoras, na coluna de 24 de fevereiro de 1968, na qual a autora sugerira os modos de relação entre a ficção e a autobiografia:

Talvez em resposta a algo que eu tenha escrito aqui, [a leitora] diz que “o escritor, se legítimo, sempre se delata”. (...) E termina sua carta dizendo: “Não deixe sua coluna sob o pretexto de que pretende defender sua intimidade. Quem a substituiria?”.

Por enquanto, L. de A., não estou largando a coluna: mas aprendendo um jeito de defender minha intimidade. Quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, e não digo nas colunas, mas nos romances. Estes não são autobiográficos nem de longe, mas fico depois sabendo por quem os lê que eu me delatei.

No entanto, paradoxalmente, e lado a lado com o desejo de defender a própria intimidade, há o desejo de me confessar em público e não a um padre (Lispector, 1984: 97) (Grifos nossos).

A respeito da cronista que se diz dividida entre o impulso confessional e a necessidade de refreá-lo, Nádia Gotlib comenta:

Como resolver o impasse? Escrevendo coisas pessoais. É o que a narradora faz, apesar de sua indisponibilidade para tal. Embora afirme que quer escapar das memórias, não escapa. E escreve textos autobiográficos justamente quando afirma que não quer desempenhar esse papel (Gotlib, 1995: 113).

Um exemplo dessa estratégia de Clarice Lispector é a crônica “Viajando por mar (1ª parte)”, de 5 de junho de 1971, em que a escritora, que já recorrera a Fernando Pessoa, pede a “ajuda” de Rubem Braga:

Nota: um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?” Ele me disse: “É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal”. Mas eu não quero contar minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia. Mas aí vão minhas recordações de viagem por mar.

Fiz na minha vida várias viagens por mar. À medida que eu for escrevendo vou me lembrando delas.

A primeira foi com menos de dois meses de idade, da Alemanha (Hamburgo) ao Recife (...). Nada sei sobre essa viagem de imigrantes: devíamos todos ter a cara dos imigrantes de Lazar Segall.

Outra viagem de mar de que me lembro foi na terceira classe de um navio inglês: de Recife ao Rio de Janeiro. (...)

Estou agora me lembrando de uma viagem que fizemos de Gênova ao Rio, “tomei um Ita no Norte”. Meu primeiro filho já tinha nascido. (...) A comida era péssima, gordurosíssima, eu fazia o possível para alimentar sem perigo o meu menino de oito meses (Lispector, 1984: 545-6).

Além de reencenar o impasse obsessivamente tematizado pela cronista, o fragmento acima permite apontar para um outro aspecto da crônica clariciana: na coluna do Jornal do Brasil, os textos autobiográficos de Clarice não só evocam a sua infância, como também o tempo de estudante de Direito; os períodos em que viveu fora do Brasil na companhia do marido; o convívio com os amigos.

De dois desses amigos, a escritora compôs “retratos” em que conta a história da relação que manteve com cada um: “San Tiago”, em 6 de janeiro de 1968, e “Lúcio Cardoso”, em 11 de janeiro de 1969. Na crônica sobre Lúcio Cardoso, motivada pela saudade do amigo, que morrera em setembro de 1968, as lembranças de Clarice se embaralham, aproximando encontros diversos:

Estou me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ele me ensinou o que é ter chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio, Pedro e Miriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos nos braços um do outro (Lispector, 1984: 244).

Mas o espaço jornalístico não propicia a Clarice apenas a retrospecção e a conseqüente “revisão de si” (Gotlib, 1995: 377). Sua coluna também inclui o registro do efêmero e do circunstancial, em geral sob a forma de textos curtos e fragmentados, que vão desenhando uma outra “personagem”: a escritora em seu cotidiano. Nele, Clarice contracena com os filhos, como em “Mãe gentil”, de 12 de outubro de 1968:

Por um tempo atrás meus filhos andaram me descobrindo. Quero dizer como pessoa, (...). Foi tão curioso como, na descoberta, além de mãe, eles me consideravam uma pessoa com quem conversar. Quando eu ia escovar os cabelos no espelho do banheiro, eles me seguiam para continuar a conversa (Lispector, 1984: 207).

Com as empregadas, das quais a escritora compõe breves e incisivos perfis, como no fragmento “A mineira calada”, de 25 de novembro de 1967:

Aninha é uma mineira calada que trabalha aqui em casa. E quando fala, vem aquela voz abafada. (...) Um dia de manhã estava arrumando um canto da sala, e eu bordando no outro canto. (...) Veio até mim a sua voz: “A senhora escreve livros?” Respondi um pouco surpreendida que sim. Ela me perguntou (...) se eu podia emprestar-lhe um. (...) Fui franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que (...) respondeu: “Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar” (Lispector, 1984: 51).

Não falta, em tais retratos, a atmosfera pouco metafísica de sua casa, em que “todos falam em comida” (Lispector, 1984: 222); os hábitos, como o de escrever com a máquina no colo (Idem, 82); os males, como a insônia, registrada no fragmento de 20 de janeiro de 1968, intitulado “Insônia infeliz e feliz”:

De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. (...) Acendo a luz da cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. (...) Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às duas da noite e que não me maldiga. (...) E as horas não passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que preciso perder os quatro quilos que aumentei com a superalimentação depois do incêndio. (...) Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio, quem sabe se são cinco horas. Nem quatro chegaram. (...) (Lispector, 1984: 81-2).

Nesses textos enraizados no cotidiano, ainda que Clarice Lispector se volte sobre si enquanto escreve, parece haver uma menor separação temporal entre o vivido e o seu registro pela escrita. É o que também sugere a crônica “Ao correr da máquina”, de 17 de abril de 1971:

Agora vou interromper um pouco para atender o homem que veio consertar o toca-discos. Não sei com que disposição voltarei à máquina. (...)

Pronto, já voltei. O dia continua muito bonito. Mas a vida está muito cara (isso por causa do preço que o homem pediu pelo conserto). Preciso trabalhar muito para ter as coisas que quero ou de que preciso. Acho que livros não pretendo nunca mais escrever. Só vou escrever para este jornal (Lispector, 1984: 530-1).

Devido ao menor porte – sincero ou “fingido”? – de sua perspectiva de retrospecção, esta modalidade de escrita confessional aproxima-se do diário, no qual

...há uma possibilidade maior de exatidão, de precisão e fidelidade à experiência real (...), justamente pela menor separação temporal entre o evento e o seu registro, o que é mais difícil de ser atingido pela autobiografia, em razão do caráter seletivo da memória, que modifica, filtra e hierarquiza a lembrança (Miranda, 1992: 34).

Portanto, a identificação desses textos em que o caos e o contingente da experiência vivida não são reorganizados pela reflexão permite-nos perceber um outro modo de abordagem da matéria autobiográfica por parte da cronista Clarice Lispector. Assim como nos permite compreender as repetidas referências às crônicas de Clarice como um extenso “diário” – nas palavras de Nádia Gotlib (1995: 376); ou como um “diário público” em que a cronista registrou suas dores e alegrias (Manzo, op. cit. 91).

Além dos textos que representam a escritora inserida em seu cotidiano e daqueles que recompõem o passado da autora, há as crônicas em que a narradora procura “resumir um estado de espírito” – palavras da própria Clarice –, como no fragmento “Enquanto vocês dormem”, de 18 de maio de 1968, no qual, conversando com o leitor, a cronista retoma o motivo da insônia:

São três horas da madrugada, estou com uma de minhas insônias. Tomei uma xícara de café, já que não ia dormir mesmo. Botei açúcar demais, e o café ficou horrível. Ouço o barulho das ondas do mar se quebrando na praia. Esta noite está diferente porque estou conversando com vocês. (...) Penso em pessoas de quem eu gosto: estão todas dormindo ou se divertindo. É possível que algumas estejam tomando uísque. Meu café se torna então mais adocicado ainda, em mais impossível ainda. (...) Estou caindo numa tristeza sem dor. Não é mau. Faz parte. Amanhã provavelmente terei alguma alegria, (...). É, mas não estou gostando muito deste pacto com a mediocridade de viver (Lispector, 1984: 140).

Ou como em “Anonimato”, de 10 de fevereiro de 1968:

Tantos querem a projeção. Sem saber como esta limita a vida. Minha pequena projeção fere o meu pudor. Inclusive o que eu queria dizer já não posso mais. O anonimato é suave como um sonho. Eu estou precisando desse sonho. Aliás eu não queria mais escrever. Escrevo agora porque estou precisando de dinheiro. Eu queria ficar calada. Há coisas que nunca escrevi, e morrerei sem tê-las escrito. Essas por dinheiro nenhum. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio (Lispector, 1984: 92). (Grifos nossos).

Certamente, a partir do “contrato” da cronista com o leitor – contrato que determina o modo de leitura de tais textos e os efeitos que os definem como dotados de teor autobiográfico –, aquele (o leitor) identifica nos fragmentos transcritos algumas linhas do retrato que Clarice vem compondo de si mesma, linhas que vão se somar a todas as outras que a cronista vai “revelando” ou “dando a conhecer” em sua coluna.

Entretanto, a sinceridade da reconstituição do estado de espírito ou da experiência vivida será colocada em xeque por Clarice Lispector quando, nas páginas de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969), as impressões registradas no fragmento “Enquanto vocês dormem”, há pouco transcrito, se transferirem para Lóri, a protagonista do romance; e quando parte da “confissão” de Clarice, no fragmento “Anonimato”, passar a constituir um trecho da fala de Ulisses, o parceiro de Lóri em Uma aprendizagem.

Lembro que, enquanto escreve para o Jornal do Brasil, a autora intensifica a ampla movimentação textual que marca sua produção literária. Nas palavras de Walnice Nogueira Galvão, trata-se de um fenômeno peculiar e que pode ser chamado de “transmigração auto-intertextual”. Diz a estudiosa:

Com esse abuso polissilábico pretende-se apenas indicar que seus textos [de Clarice Lispector] são dotados de mobilidade e que o leitor pode reencontrá-los onde menos espera. Uma crônica já publicada vai reaparecer integrada a um conto posterior. Um trecho de romance ressurge como um conto independente. Um conto muda de título e é reeditado em outra reunião de contos. Um texto volta reduzido a fragmentos, ou vários fragmentos se amalgamam para constituir um texto mais longo. Um livro se transforma em dois livros. (Galvão, 1996: 11).

Eis alguns exemplos da “errância textual” praticada por Clarice: “crônicas” publicadas no Jornal do Brasil são incluídas no volume de “contos” Felicidade clandestina (1971); “contos” de A legião estrangeira (1964) transitam pela coluna do Jornal do Brasil, alguns deles sendo reeditados em Felicidade clandestina; ainda de Legião estrangeira, vários fragmentos que compunham a segunda parte do livro (“Fundo de gaveta”), depois de passarem pelo Jornal do Brasil, vão figurar em Água viva (1973); fragmentos publicados no Jornal do Brasil aparecem no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, sendo que alguns deles, reescritos, transitam para Água viva, enquanto outros retornam à coluna do Jornal do Brasil.

Nessa “ciranda de textos” (Gotlib, 1997: 189), fragmentos do Jornal do Brasil – nos quais, a partir do pacto de leitura entre autor e leitor, identifica-se o centro imutável da autobiografia: a identidade autor-narrador-personagem – compõem o romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, sem que se possa afirmar com certeza se Clarice reescrevia os textos/crônicas para incluí-los no romance, ou se fazia o inverso, publicando no Jornal do Brasil fragmentos do livro que estava escrevendo.

Interessa-nos, neste ponto, a verificação de que, na intensa circulação entre o material apresentado nas crônicas e nas páginas do romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, as impressões “de Clarice” nas crônicas transferem-se para Lóri, ou mesmo para Ulisses. Ou seria o inverso, e a escritora, nas crônicas, “fingiria” serem suas as impressões dos protagonistas do romance?

Observemos, apenas para rápida exemplificação, a passagem em que parte do fragmento “Anonimato” (transcrito anteriormente) é deslocada, no romance, para a fala de Ulisses:

– Bem tranqüila, Lóri, vá bem tranqüila. Mas cuidado. É melhor não falar, não me dizer. Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido fonte de minhas palavras. E do silêncio tem vindo o que é mais precioso que tudo: o próprio silêncio. Por que é que você olha tão demoradamente cada pessoa? (Lispector, 1982: 74-5) (Grifos nossos).

Embora os fragmentos/crônicas sejam recortados, reescritos e colados em outro texto e num contexto totalmente diferente, tendo sua origem rasurada, consideramos que a prática clariciana da transmigração textual amplia as indagações entre vida e obra, experiência vivida e representação literária. Entre outras questões, a escritora expõe as tênues fronteiras entre o conteúdo autobiográfico do narrado e a livre invenção romanesca.

Por outro lado, Clarice Lispector sugere a possibilidade da presença implícita de elementos autobiográficos nos seus romances que se especificam pela efetivação explícita do pacto romanesco. Seguindo a “sugestão” da escritora, alguns estudiosos, como Lícia Manzo, têm abordado sua obra ficcional como uma espécie de “autobiografia não planejada”, procurando “ler a vida que Clarice, através de sua literatura, nos contou” (Manzo, op.cit.: 4). De forma semelhante, Edgar Cézar Nolasco considera a inscrição do biográfico como um traço caracterizador do processo de criação da ficcionista, visível desde o romance de estréia (Nolasco, 2004).

Retomamos neste ponto a Clarice Lispector cronista, procurando responder à pergunta que dá título a este trabalho: a crônica de Clarice é uma espécie de autobiografia?

Distanciando-se do conceito estrito de autobiografia pela ausência de um relato cronológico de experiências que se iniciam pelo nascimento, seguido de acontecimentos logicamente encadeados, as crônicas de Clarice contêm alguns procedimentos do auto-retrato, tal como o conceitou Michel Beaujour (1980). Para este autor, o auto-retrato se aproxima do relato metafórico e poético, constituindo-se segundo um processo de recorrências, retomadas e superposições de elementos homólogos e substituíveis, “resultando ser sua aparência o descontínuo, a justaposição anacrônica e a montagem” (Miranda, op.cit.: 36). Texto que reflete a si próprio e tem como referente a imagem do sujeito, é inerente ao auto-retrato a prática do comentário, a revisão constante de seu próprio fazer. Inclinando-se tanto para a ficção quanto para o documento, o auto-retrato pertence à categoria dos discursos próprios aos Ensaios de Montaigne, ao Ecce Homo, de Nietzsche, e ao Roland Barthes por Roland Barthes.

Dramatizando sua dimensão empírica e esboçando-se como ficção; valorizando os detalhes, “alguns gestos” e inflexões, sem qualquer desejo de totalização, à maneira dos “biografemas” de Barthes (1990); compondo uma “colagem (...) das várias Clarices de todos os tempos” (Gotlib, 1995: 377), a escritora, em suas crônicas, tenta dizer “quem é”: “Quem sou eu? como sou? o que ser? quem sou realmente? e eu sou?” (Lispector, 1984: 267) –, embora sua busca, tal qual no auto-retrato, não a conduza à certeza do eu. Neste aspecto, talvez Clarice pudesse afirmar, como Roland Barthes:

Este livro não é um livro de “confissões”; não porque ele seja insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem; esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim nunca é a última palavra: quanto mais sou “sincero”, mais sou interpretável, sob o olhar de instâncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma única lei: a autenticidade (Barthes, 2003: 137).

A nós, leitores que, em busca de respostas, nos deixamos enredar nas linhas fugidias do auto-retrato desenhado por Clarice, só resta concluir este percurso com uma outra pergunta: o que é real e o que é imaginário nesse retrato de Clarice Lispector por Clarice Lispector?


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARÊAS, Vilma. Clarice Lispector com a ponta dos dedos. São Paulo: Cia. das Letras, 2005.

BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1990.

––––––. Roland Barthes por Roland Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’encre: rhétorique de l’autoportrait. Paris: Seuil, 1980.

BRUSS, Elizabeth W. L’autobiographie considerée comme acte littéraire. In: Poétique. Paris, n.17, p. 14-26, 1974.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Entre o silêncio e a vertigem. In: –––. (org.). Os melhores contos de Clarice Lispector. São Paulo: Global, 1996. p. 7-11.

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

––––––. Um fio de voz: histórias de Clarice. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Florianópolis: UFSC, 1997. p. 161-95. Ed. crítica coordenada por Benedito Nunes.

LEJEUNE, Philipe. Le pacte autobiographique. Paris: Éditions du Seuil, 1975.

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. 11ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

––––––. A descoberta do mundo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

MANZO, Lícia. Era uma vez: Eu / A não-ficção na obra de Clarice Lispector. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 2001.

MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: USP; Belo Horizonte: UFMG, 1992.

NOLASCO, Edgar Cezar. Restos de ficção. A criação biográfico-literária de Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2004.

SABINO, Fernando. Cartas perto do coração. Fernando Sabino e Clarice Lispector. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.