A intertextualidade nos sambas da Polêmica
entre Wilson Batista e Noel Rosa

Flávio de Aguiar Barbosa (UERJ)

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é aplicar o conceito de intertextualidade à análise dos sambas produzidos por Wilson Batista e Noel Rosa, na famosa Polêmica entre os dois.

Inicialmente, apresentam-se brevemente os fatores de textualidade, especialmente a intertextualidade, segundo a lingüística textual. Em seguida, analisam-se as letras dos sambas referidos, com atenção especial para as relações de intertextualidade construídas entre as letras. Exploram-se também, com base na análise do discurso, os posicionamentos discursivos dos compositores, com seus pressupostos ideológicos, principalmente a partir de evidências lexicais.

 

Embasamento teórico do estudo da
intertextualidade e da textualidade em geral

Os estudos lingüísticos tradicionais, baseados na perspectiva estruturalista, enfocavam quase exclusivamente a descrição gramatical no nível da frase. O sistema da língua era entendido como uma rede formal de estruturação abstrata e os conhecimentos referentes ao mundo extralingüístico e ao uso da linguagem não deviam interferir nessas investigações. Chegava-se a reconhecer a importância de fatores como a sociedade, a cultura de uma determinada comunidade lingüística etc., mas transferiam-se essas preocupações para outras linhas de pesquisa.

As incursões estruturalistas no estudo do texto limitavam-se a tentativas de estabelecer linhas estruturais invariáveis no desenvolvimento de determinados tipos de texto (como a divisão do texto argumentativo em introdução, desenvolvimento e conclusão, a divisão do texto narrativo em exposição, complicação, clímax e desfecho etc.).

Com o desenvolvimento da lingüística do texto, já a partir da década de 60 do século XX, mas principalmente a partir dos anos 1980, o enfoque dado a esse estudo mudou consideravelmente. Isso decorreu em grande parte da tese de que não há textos e “não-textos” em essência. Considerando-se que texto pode ser definido, na conceituação de Halliday e Hasan (1976), como “qualquer passagem, falada ou escrita, de qualquer tamanho, que realmente forma um todo unificado” e que a percepção da unidade a que se refere a definição é devida à depreensão de uma mensagem global pelo receptor, percebe-se que a interpretabilidade de um mesmo texto variará de acordo com uma série de fatores, como a identidade do receptor e a situação comunicativa.

Novos elementos passaram então a ser valorizados nas investigações textuais. Além de informações gramaticais e semânticas, passou-se a atentar para a contribuição de elementos pragmáticos e discursivos ao estudo do texto. Podem-se perceber os avanços deflagrados por essa ampliação teórica ao considerar conceituações posteriores de texto, como a de Koch e Travaglia (1993):

...unidade lingüística concreta (perceptível pela visão ou audição), que é tomada pelos usuários da língua (falante, escritor / ouvinte, leitor), em uma situação de interação comunicativa, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente da sua extensão.

Nessa definição percebe-se uma série de incrementos à noção teórica de texto: o reconhecimento do fato de que não há somente textos escritos (os produtos comunicativos em linguagem oral também são textos)[1], a consideração da influência dos participantes do processo comunicativo na produção e interpretação de um texto e a inserção dessas atividades em uma situação concreta para alcançar objetivos específicos.

Um dos pontos mais importantes no desenvolvimento dos estudos sobre o texto foi a sistematização da noção de coerência textual. Tal conceito é tido como a base da interpretabilidade, ou seja, é o requisito básico para que um texto possa funcionar como uma unidade comunicativa, cuja mensagem é interpretável. Assim como a interpretabilidade de um texto é variável, dependendo de diferentes fatores, também a coerência textual não é um conceito absoluto e não se pode dizer que haja textos completamente incoerentes, os ditos não-textos.

Uma série de elementos favorece o estabelecimento da coerência pelo receptor de um texto. Eles são agrupados diferentemente pelos teóricos, mas são basicamente os seguintes:

 

Elementos lingüísticos

O conhecimento gramatical (tanto por parte do produtor quanto do receptor de textos) é importante para o estabelecimento da coerência textual: por meio desse conhecimento, o receptor pode detectar no desenvolvimento linear de um texto conexões lógicas que balizam a interpretação da mensagem. A concordância gramatical, a referência pronominal, a elipse, a seleção lexical, o uso de tempos verbais, de elementos dêiticos, de conectivos etc. são recursos da coesão textual, segundo a terminologia predominante[2].

 

Conhecimento de mundo

Na conceituação de Koch e Travaglia (1993), “o conhecimento de mundo é visto como uma espécie de dicionário enciclopédico do mundo e da cultura arquivado na memória.” Essas informações são armazenadas e organizadas sistematicamente por cada indivíduo em modelos cognitivos que aciona para interagir com a realidade. Esse tipo de conhecimento e principalmente o seu compartilhamento são essenciais no processo comunicativo (ver também o tópico informatividade, a seguir).


 

Fatores pragmáticos

Os que ancoram um texto em uma situação comunicativa determinada, como a situacionalidade (ver subtópico seguinte), características dos interlocutores ou da relação entre eles (posição hierárquica, afetividade, familiaridade com o assunto abordado, entre outras), crenças pessoais, a função do texto produzido etc.

 

Situacionalidade

Fator que ancora um texto em uma dada situação comunicativa. É materializada por contextualizadores (assinatura, data, local, elementos gráficos, como disposição da página, fotos, etc., que ancoram o texto na situação comunicativa) e perspectivos ou prospectivos (elementos que avançam expectativas sobre o conteúdo; dependem do conhecimento de mundo do leitor – título, autor [seu estilo, dados biográficos, postura política etc.], estilo de época, corrente científica, filosófica, religiosa).

 

Inferência

É o processo cognitivo usado para estabelecer relações não explícitas entre informações de um texto, que garantem a continuidade de sentido. Tem a ver com o conhecimento de mundo e principalmente com o compartilhamento desse conhecimento. Todo texto é repleto de informações pressupostas que devem ser recuperadas pelo receptor.

 

Intencionalidade e aceitabilidade

O produtor de um texto pode deflagrar o processo comunicativo com uma série de possíveis intenções, desde a simples criação e manutenção do canal de comunicação até a interferência no comportamento ou nas crenças do interlocutor. É necessário que o receptor perceba essa intenção e a adequação do texto produzido à situação comunicativa, considerando-o aceitável e relevante para o propósito almejado.


 

Informatividade

O conhecimento partilhado entre produtor e receptor define a parcela de informações dadas e novas de um texto. Quanto mais informativo ele for, maior será a dificuldade para se estabelecer a coerência textual; a situação inversa também pode abalar o cálculo da coerência textual: se houver muitas informações já conhecidas, o texto não será informativo e o intercâmbio textual será percebido como irrelevante e sem objetivo; fere-se, nesse caso, o princípio da aceitabilidade.

A sétima característica de um texto coerente é a intertextualidade, foco principal deste estudo.

Uma possível definição inicial de intertextualidade é o recurso de produção textual a partir do qual se retoma um texto preexistente para o enriquecimento da interpretação da mensagem de um novo; o benefício da intertextualidade é o estabelecimento desse “diálogo entre textos”. A sinalização de tal conexão pode ser feita de duas formas, basicamente: pode ser explícita (por citação de um trecho na íntegra, por exemplo), ou implícita (por paráfrase de outro texto, entre outras maneiras)[3].

Comparando-se os dois tipos de intertextualidade, percebe-se que a implícita é mais elaborada do que a explícita. Segundo André Valente (2002), a intertextualidade implícita

...exige muito mais do leitor no jogo intertextual, pressupondo maior grau de informatividade, mais “conhecimento de mundo”: “mundo partilhado”. Constitui fator importante para a coerência do texto, pois o leitor, não possuindo as referências ou não identificando as citações, pode encontrar dificuldades para decodificação da mensagem.

Considerando a contribuição da intertextualidade, é interessante articular esse conceito às meta-regras estabelecidas por Charolles (1988) para a produção da coerência textual: a partir das suas regras de repetição, progressão, não-contradição e relação, pode-se dizer que, no nível macrotextual, a principal contribuição da intertextualidade é deflagrar concomitantemente os processos de repetição e de progressão: repete-se uma referência extratextual que deve já ser conhecida, integrando-a na formulação de um novo texto e, em conseqüência, a carga semântica trazida pelo texto referido passa a contribuir para a veiculação da mensagem.

O processo de construção da intertextualidade é realizado intencionalmente. É a isso que Laurent Jenny (1979: 14) se refere ao afirmar:

...a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido.

Cabe diferenciar intertextualidade de interdiscursividade: segundo Charaudeau, esta última é a retomada, em um texto, de referências culturais que não chegam a ter um suporte textual identificável:

...Charaudeau (1993d) vê no “interdiscurso” um jogo de reenvios entre discursos que tiveram um suporte textual, mas de cuja configuração não se tem memória; por exemplo, no slogan “Danoninho vale por um bifinho”, é o interdiscurso que permite inferências do tipo “os bifes de carne têm um alto valor protéico, portanto devem ser consumidos”. Por sua vez, o “intertexto” seria um jogo de retomadas de textos configurados e ligeiramente transformados, como na paródia. (Charaudeau e Maingueneau, 2004: 286)

As retomadas por interdiscursividade, portanto, acionam informações correntes em uma determinada cultura, ou em um determinado posicionamento ideológico. Devem, assim como o intertexto, fazer parte do conhecimento de mundo do destinatário.

Os elementos básicos da textualidade abordados anteriormente ‑ especialmente, a intertextualidade ‑ serão o ponto de partida para a análise das letras de samba que compõem a “Polêmica” entre Wilson Batista e Noel Rosa. Aproveitarei a ocasião para ressaltar aspectos ideológicos que diferenciam sensivelmente os discursos dos dois compositores, partindo sempre de evidências lexicais.


 

Análise do corpus

A deflagração da polêmica ocorre com a gravação, em 1933, da música Lenço no pescoço, de Wilson Batista, uma apologia à malandragem. A contestação de Noel Rosa é Rapaz folgado. Produz-se, a partir de então, uma série de composições que constituem uma talentosa disputa musical[4].

Essas duas primeiras músicas estabelecem o tom da disputa: Wilson Batista assume a identidade de malandro, com a ideologia nela implicada: valores como a aversão ao trabalho, a navalha como arma, a ginga e a habilidade para fazer samba eram correntes no grupo social que a figura do malandro integrava: a classe popular marginalizada e majoritariamente identificada com elementos da cultura negra, como o próprio samba. O autor se preocupa em descrever detalhadamente a figura do malandro, em indumentária e atitudes.

Lenço no pescoço (1933)

Wilson Batista

Meu chapéu de lado,
Tamanco arrastando,
Lenço no pescoço,
Navalha no bolso,
Eu passo gingando, provoco e desafio
Eu tenho orgulho em ser vadio.

Sei que eles falam deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha andar no miserê
Sou vadio, sempre tive inclinação
Desde o tempo de criança tirava samba-canção.

A resposta de Noel Rosa lança mão do artifício usado na maior parte da polêmica: a desconstrução do discurso do adversário. Estabelece-se constantemente um jogo de oposições no qual se desqualificam os valores propostos pelo outro, afirmando-se valores alternativos àqueles. Tal jogo discursivo é feito principalmente a partir da intertextualidade.


 

Rapaz folgado (1933)

Noel Rosa

Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca foi sandália
Tira do pescoço o lenço branco,
Compra sapato e gravata,
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Com chapéu de lado deste rata
Da polícia quero que escapes
Fazendo samba-canção, já te dei papel e lápis
Arranja um amor e um violão.

Malandro é palavra derrotista
Que só serve pra tirar
Todo o valor do sambista
Proponho ao povo civilizado
Não te chamar de malandro
E sim de rapaz folgado.

Pois bem: em Rapaz folgado, Noel retoma, um a um, os signos propostos por Wilson ‑ o tamanco, a navalha, o chapéu de lado e o lenço no pescoço são substituídos, ou mesmo eliminados, numa “reforma geral” da figura do malandro.

O ato espontâneo de tirar samba-canção, próprio de quem sempre teve inclinação ao samba, também é reformulado. Noel acrescenta o papel e o lápis à atividade, signos que formalizam a prática, representando metonimicamente o registro das músicas, próprio de quem encara a composição como atividade profissional e não apenas exercício de criatividade e habilidade.

Finalmente, Noel combate a própria identificação malandro, considerando-a derrotista. Dirigindo-se ao povo civilizado, propõe a qualificação eufêmica rapaz folgado. Segundo essa construção, a imagem do malandro é, portanto, incivilizada.

A atitude de Noel vai ao encontro da ideologia dominante na sociedade carioca da época, que recriminava a figura do malandro e, na verdade, ainda começava a ver a figura do sambista com mais benevolência. Toda uma geração de sambistas, da qual, entre outros, sobressaiu Paulo da Portela[5], lutava para que o samba fosse reconhecido como uma manifestação cultural respeitável e seus praticantes não mais fossem perseguidos pela polícia.

A resposta de Noel é, conforme a sua perspectiva, uma tentativa de integrar o malandro aos valores dominantes, uma receita para que escape da polícia.

A réplica de Wilson é Mocinho da Vila:

Mocinho da Vila (1933)

Wilson Batista

Você, que é mocinho da Vila,
Fala muito em violão, barracão e outras coisas mais,
Se não quiser perder o nome
Cuide do seu microfone e deixe quem é malandro em paz.

Injusto é seu comentário
Fala de malandro quem é otário
Mas malandro não se farte
Eu, de lenço no pescoço,
Desacato e também tenho o meu cartaz.

Wilson busca desautorizar o oponente como interlocutor apto a falar de samba e malandragem. O título, além do uso pejorativo do diminutivo, recupera, por interdiscursividade, a origem de Noel, que vem de um bairro de classe média e que, apesar de essa não ser a sua realidade, gosta de falar em violão, barracão e outras coisas mais.

A letra reafirma a identidade de Wilson como malandro e estabelece polarizações, tanto do universo do samba e da malandragem com o da classe média (malandro versus otário), quanto dos compositores profissionais (simbolizado pelo microfone) com o dos autênticos sambistas, que desacatam e também têm o seu cartaz.

Eis a resposta de Noel:

Feitiço da Vila (1934)

Noel Rosa / Vadico

Quem nasce lá na Vila, nem sequer vacila ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos do arvoredo e faz a lua nascer mais cedo
Lá em Vila Isabel, quem é bacharel não tem medo de bamba
São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba.


 

A Vila tem um feitiço sem farofa, sem vela e sem vintém, que nos faz bem
Tendo nome de princesa, transformou o samba
Num feitiço decente que prende a gente.

O sol na Vila é triste, samba não assiste, porque a gente implora
Sol, pelo amor de Deus, não venha
agora que as morenas vão logo embora.
Quem nasce pra sambar chora pra mamar em ritmo de samba
Eu já saí de casa olhando a lua e até hoje eu estou na rua.

Eu sei por onde passo, sei tudo que faço, paixão não me aniquila
Mas tenho que dizer, modéstia à parte, meus senhores, eu sou da Vila.
A zona mais tranqüila é a nossa Vila, o berço dos folgados.
Não há um cadeado no portão porque na Vila não há ladrão.
[6]

A letra atende à necessidade de desconstruir a idéia, então corrente, de que o samba tradicional era próprio do morro, qualificando a Vila Isabel também como reduto de sambistas. O texto, paralelamente ao que acontece em Rapaz folgado, também estabelece o gosto pelo samba como um atributo de nascença ‑ de quem nasce lá na Vila.

A exaltação a Vila Isabel atinge o auge quando o bairro é equiparado aos estados de São Paulo e Minas, maiores potências político-econômicas da época, e seu produto, o samba, é apresentado em igualdade com o café paulista e o leite mineiro.

A “intenção civilizadora”, marca da atitude discursiva de Noel, novamente transparece quando, na apreciação do feitiço da Vila, ele diz que esse é sem farofa, sem vela e sem vintém [e] que nos faz bem. Isso pressupõe a existência de um outro tipo de feitiço, próprio do pólo oposto da disputa, que não seria decente. De fato, as práticas religiosas afro-brasileiras também eram muito perseguidas no início do século XX.

Noel assume novamente um tom conciliador na afirmação de que na Vila Isabel, quem é bacharel [ele próprio estava nessa posição] não tem medo de bamba. Igualmente, pelo uso de berço dos folgados para alusão aos sambistas, sem emprego da palavra malandro, sua proposta ideológica se reafirma ‑ observe-se a intertextualidade com Rapaz folgado.

É significativo perceber que o samba é o denominador comum a partir do qual surge a disputa. É, portanto, já na década de 1930, um elemento cultural partilhado por diferentes grupos da sociedade. A ambiência do samba, principalmente a sua identificação com o malandro, é que se torna objeto de polêmica. Noel, como compositor profissional, que se dirigia a um público mais amplo do que o tradicionalmente relacionado ao samba, buscava mudar a representação dessa ambiência, tornando-a mais aceitável conforme a ideologia dominante.

A controvérsia segue com Conversa fiada:

Conversa fiada (1934)

Wilson Batista

É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço
Eu fui ver para crer e não vi nada disso
A Vila é tranqüila porém eu vos digo: cuidado, antes de irem dormir dêem duas voltas no cadeado

Eu fui à Vila ver o arvoredo se mexer e conhecer o berço dos folgados
A lua essa noite demorou tanto e assassinaram meu samba
veio daí o meu pranto

Wilson Batista mantém a estratégia da desconstrução: o próprio título nega a existência do feitiço da Vila. A segurança e harmonia do bairro (simbolizada pela inexistência de cadeados) e o seu lirismo (o arvoredo, cujos galhos dançam ao som do samba, e a lua, que lá nasce mais cedo) são ambos retomados e contestados na letra desse samba. Finalmente, o golpe de misericórdia para a desqualificação da Vila é o assassinato do samba, que ocorreria no berço dos folgados ‑ note-se que só nesse contexto extremamente pejorativo Wilson Batista admite utilizar a palavra folgado em vez de malandro.

Noel retoma a carga com Palpite infeliz:

Palpite infeliz (1935)

Noel Rosa

Quem é você que não sabe o que diz
Meu Deus do céu que palpite infeliz
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Osvaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém
Só quer mostrar que faz samba também

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz... REFRÃO

A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar pra quem não sabe aonde tem o nariz
Quem é você que não sabe o que diz... REFRÃO

O título é uma apreciação geral de Noel em relação às impressões de Wilson em Conversa fiada. O texto mantém o esforço por afirmar Vila Isabel ao lado de Estácio, Salgueiro, Mangueira, Osvaldo Cruz e Matriz, outros redutos de sambistas.

A referência intertextual do arvoredo (que também simboliza metonimicamente harmonia entre samba e natureza) é reafirmada. A atitude do autor de Conversa fiada, que contestara o feitiço da Vila, é combatida retomando-se por interdiscursividade o ditado “o pior cego é aquele que não quer ver”.

Enfim, a interdiscursividade também é usada para combater a postura de sambistas tradicionais que usavam a expressão tirar patente como equivalente de ter história, tradição. Segundo o discurso de Noel, na Vila, o interesse era em fazer samba, não em ostentar tradição.

A resposta de Wilson Batista, Frankenstein da Vila, praticamente encerra a polêmica, não por ser peremptória, mas por fugir da linha de desconstrução do discurso alheio e apelar para a ofensa pessoal. Depois dessa letra, que alude a um defeito que Noel tinha no rosto, comparando-o ao monstro de Frankenstein, Noel deixa de responder as composições de Wilson. A mudança de estratégia discursiva também pode ser percebida pelo afrouxamento do jogo intertextual. Mantêm-se apenas a referência a Vila Isabel e a frase depois não vai dizer que eu não sei o que digo:


 

Frankenstein da Vila (1935)

Wilson Batista

Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração

Entre os feios é o primeiro da fila
Todos reconhecem lá na Vila
Essa indireta é contigo
Depois não vai dizer que eu não sei o que digo
Sou teu amigo

A partir de Frankenstein da Vila, os relatos da polêmica variam. O fato é que geralmente ainda se registram as duas seguintes músicas relacionadas ao evento:

Terra de cego (1935)

Wilson Batista

Perde esta mania de bamba
Todos sabem qual é o teu diploma no samba
És o abafa da Vila, bem sei
Mas em terra de cego quem tem um olho é rei

Pra não terminar a discussão
Não deves apelar para o barulho à mão
Em versos podes bem desacatar
Pois não fica bonito um bacharel brigar.

 

Deixa de ser convencida (1935)

Wilson Batista/Noel Rosa

Deixa de ser convencida
Todos sabem qual é teu velho modo de vida
És uma perfeita artista, eu bem sei
Também fui do trapézio, até salto mortal no arame já dei.

E no picadeiro desta vida, serei o domador
Serás a fera abatida
Conheço muito bem acrobacia
Por isso não faço fé em amor de parceria.

Wilson Batista ainda teria composto Terra de cego para incitar uma resposta de Noel. Há, entretanto, versões diferentes para o final da disputa: 1) os dois teriam ficado amigos e Noel faria outra letra na melodia de Terra de cego, surgindo a parceria Deixa de ser convencida, dirigida a uma namorada sua; 2) Noel teria posto, sim, outra letra em Terra de cego, mas o título era Deixa de ser convencido e essa era mais uma resposta a Wilson. 3) essas duas últimas composições não chegam a ser mencionadas.

De todo modo, as composições ainda retomam elementos da polêmica: Wilson voltaria ao mote de que Noel só tinha destaque em Vila Isabel e nas classes altas da sociedade, valendo-se do ditado “em terra de cego quem tem um olho é rei”. Provoca-o, ainda, insinuando que poderia perder a esportiva e querer brigar, aproveitando para alfinetá-lo, dizendo que isso não é bonito para um bacharel. Apesar disso, dá o braço a torcer para as habilidades de Noel, reconhecendo: em versos podes bem desacatar.

Supondo que a resposta de Noel seja dirigida a Wilson Batista, a condição de malandro seria retomada (e desautorizada) por teu velho modo de vida. A virtude de Noel, como compositor de samba (e também como lutador?) seria reafirmada figuradamente com Também fui do trapézio, até salto mortal no arame já dei.

Noel ainda ironizaria as ofensas, a atitude combativa e a própria insistência de Wilson em um modo de vida, na compreensão do compositor de Vila Isabel, fadado à perseguição, com E no picadeiro desta vida, serei o domador / Serás a fera abatida.

Sobra ironia, também, para a própria parceria resultante na nova letra posta na música de Wilson: Por isso não faço fé em amor de parceria.

 

Considerações finais

A intenção deste estudo foi apresentar uma aplicação dos princípios de textualidade, especificamente do recurso da intertextualidade, ao domínio discursivo da canção popular. O corpus das composições que integram a Polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa revelou-se um excelente material de estudo das relações intertextuais, visto que a controvérsia se processa basicamente a partir da retomada e desconstrução das propostas discursivas do oponente.

É interessante observar que a consideração da intertextualidade entre as letras traz novos elementos para a compreensão dos valores e implicações presentes nos textos. Músicas como Feitiço da Vila e Palpite infeliz, já bastante conhecidas, ganham novos aspectos significativos a partir da investigação intertextualidade com outras letras da série de composições.

Essa é uma observação significativa, principalmente para o ensino de leitura: é sempre enriquecedor considerar o texto como produto de um processo discursivo no qual um enunciador, com identidade sociocultural e intenções determinadas, aciona os recursos de textualização, levando em conta um destinatário, também com identidade pressuposta e conhecimento de mundo consoante a essa identidade.

Ingedore e Travaglia (1992: 84) estabelecem muito propriamente quais devem ser as preocupações no trabalho com a leitura:

Antes de dizer que alguém não é capaz de compreender, é preciso considerar: a) se ele conhece os recursos lingüísticos [utilizados] (ele pode não entender bem uma passagem, por exemplo, por desconhecer uma diferença de sentido causada por uma regência verbal pouco freqüente na(s) variedade(s) lingüística(s) que ele domina); b) se ele compartilha com o produtor o conhecimento de mundo que este põe em ação no texto. Daí as recomendações técnicas que já são feitas há tanto tempo sobre a necessidade de esclarecer previamente todas as referências históricas, geográficas, mitológicas, literárias etc. e as palavras desconhecidas que o texto contém (...); c) se ele tem informações suficientes sobre a situação e seus componentes (inclusive os usuários e sua relação); d) se o texto em questão não exige o conhecimento prévio de outros textos a que ele remete intertextualmente. [Esses fatores] têm de ser considerados não só na compreensão de textos, mas também na sua produção, para que se realize com eficiência a intenção comunicativa.

A leitura é, portanto, além da decodificação léxico-gramati-cal, a recuperação desses fatores e intenções. Isso quer dizer que, para além da decodificação, deve ser entendida como um ato cultural e mesmo político.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHARAUDEAU, Patrick e MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004.

CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos textos (abordagem teórica e estudo das práticas pedagógicas). In GALVEZ, Charlotte; ORLANDI, Eni Pulcinelli; OTONI, Paulo (orgs.). O texto: escrita e leitura. Campinas: Pontes, 1988.

DANTAS, André. Malandro que é malandro... In: Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas. Ano 02, número 03, 2003. Disponível na internet: www.unirio.br/cead/morpheus.

Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível na internet: www.dicionariompb.com.br/.

HALLIDAY, M. A. K. e HASAN, R. Cohesion in English. Trechos traduzidos por André Valente. Rio de Janeiro: mimeo.

KOCH, Ingedore Villaça e TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 1992.

PAIVA, Roberto e EGYDIO, Francisco. Polêmica - Noel Rosa/Wilson Batista. Código do disco: MODB 3033. Odeon, 1956.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar / UFRJ, 2001.

VALENTE, André. Intertextualidade: Aspecto da intertextualidade e fator de coerência. In: HENRIQUES, Claudio Cesar e PEREIRA, Maria Teresa Gonçalves (orgs.). Língua e transdisciplinaridade: rumos, conexões, sentidos. São Paulo, Contexto Acadêmica, 2002.

VAN DIJK, Teun A. Discurso, conhecimento e ideologia: reformulando velhas questões. In HENRIQUES, Claudio Cezar (org.). Linguagem, conhecimento e aplicação: estudos de língua e lingüística. Rio de Janeiro: Europa, 2003.


 

[1] Outra concepção mais extensa de texto não mencionada por Koch e Travaglia abrangeria também unidades comunicativas de outras linguagens diferentes da verbal (músicas, imagens, gestos etc.).

[2] Outros, como Charolles (1988) não distinguem coesão textual e coerência textual, mas consideram que em todos os casos analisa-se a coerência textual, só que em diferentes níveis: o de coerência microestrutural, no qual operam relações intra e interfrásticas que estabelecem ligações lógicas mais superficiais, e o de coerência macroestrutural, no qual operam relações entre seqüências de frases que estabelecem a coerência global do texto.

[3] A base para a distinção entre intertextualidade explícita e implícita é o trabalho de Laurent Jenny (“A estratégia da forma”. In: Poétique. Coimbra: Almedina, n. 27, 1979), apud André Valente (2002). O mesmo autor também propõe a distinção entre intertextualidade externa (conexão entre textos de autores diferentes) e interna (conexão de textos de um mesmo autor).

[4] As versões das letras e a ordem em que estão citadas são informações apuradas em três fontes: o disco Polêmica - Noel Rosa/Wilson Batista (Odeon, 1956), de Roberto Paiva e Francisco Egydio; o artigo Malandro que é malandro (Dantas, 2003); o Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira (s.v. Noel Rosa e Wilson Batista).

[5] Veja-se, a respeito, a biografia Paulo da Portela: traço de união entre duas culturas, de Marília Trindade Barboza da Silva e Lygia Santos (Funarte, 1989).

[6] Esta versão da letra, que não coincide com a mais corrente, foi transcrita do disco de Roberto Paiva e Francisco Egydio. É relevante observar que ela apresenta maior número de elementos intertextuais com outras da Polêmica (principalmente Conversa fiada) do que a versão mais conhecida.