África, espaço de epifania:
uma leitura d’os cus de judas
de antónio lobo antunes

Roberto Nunes Bittencourt (PUC-Rio)

 

Mais coisas sobre nós nos ensina a terra que todos os livros. Porque nos oferece resistência. Ao se medir com um obstáculo, o homem aprende a se conhecer. (Antoine de Saint-Exupéry)

 

Publicado pela primeira vez em 1979, Os Cus de Judas retomam um momento-clímax da ditadura em Portugal: a guerra colonial angolana, irrompida em fevereiro de 1961 e completada em 15 de janeiro de 1975, com os Acordos de Alvor.

Mais que um romance, Os Cus de Judas são, como definiria o próprio autor, um livro de visões. Estamos diante do testemunho de um médico lisboeta, convocado às armas para lutar pela sua pátria em Angola. Em momento algum sabemos o seu nome – talvez porque a voz do narrador seja a do próprio Lobo Antunes, que realmente vivenciou os horrores da guerra, mas, também, talvez seja a voz de cada um dos seus companheiros que, arrancados de seus lares, de suas vidas quotidianas, partiram para Angola. Enfim, a voz desse narrador assume um aspecto universal; não se trata da história de um homem, mas, em suma, de todos.

Já de volta a Lisboa, o médico relata a uma amiga, Maria José, episódios de sua vida anterior ao serviço militar e de sua experiência, por 27 meses, em Angola. Não lhe foge da memória a imagem das tias velhas:

– Estás magro [...]

– Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.

Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infância e da adolescência por dentaduras postiças de indiscutível autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fêmeas do clã forneciam às missas do Domingo um contrapeso pagão a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propósito de um beste, ódios antigos pacientemente segregados. (Lobo Antunes, 2003: 14-16)

Partindo para Angola – para, finalmente, tornar-se um homem – o médico reflete sobre a sua condição de sujeito reprimido pelo estado e pela família, que não permitem, sequer, momentos de prazer e felicidade. Tem, no coração, saudades da sua esposa, que deixara grávida.

[...] a felicidade, esse estado difuso resultante da impossível convergência de paralelas de uma digestão sem azia com o egoísmo satisfeito e sem remorsos, continua a parecer-me, a mim, que pertenço à dolorosa classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre, qualquer coisa de tão abstrato e estranho como a inocência, a justiça, a honra, conceitos grandiloqüentes, profundos e afinal vazios que a família, a escola, a catequese e o estado me haviam impingido para melhor me domarem, para extinguirem [...] no ovo os meus desejos de protesto e de revolta. (Lobo Antunes, 2003: 106)

Passando por Mafra, Tomar, Elvas, Santa Margarida, Madeira... finalmente chega ao Pontão da Cruz Quebrada, em Luanda, de onde toma um trem que o levará até ao acampamento. No percurso, deslumbrado com a miséria dos bairros que cercavam Luanda, Angola emerge como espaço de epifania. África é uma terra de resistência, um lugar de revelação, de “aparição de si a si”: o homem desdobra-se, vê-se e espanta-se consigo mesmo.

O comboio que fugiu connosco daquela Cruz Quebrada africana e da sua coroa de guindastes oxidados e gaivotas pernaltas acabou por depositar-nos numa espécie de quartel ao largo de Luanda, casernas de cimento a arderem no calor, onde o suor crepitava na pele como bolhas de fervura. Nos alojamentos dos oficiais, cercados de bananeiras de grandes folhas franjadas idênticas a asas de arcanjos em ruína, os mosquitos atravessavam a rede das janelas para produzirem no escuro, em conjunto, um rumor insiste e agudo em que o meu sangue, sorvido em bochechos rápidos e finalmente liberto de mim, cantava. Lá fora, um céu coberto de estrelas desconhecidas surpreendia-me: assaltava-me por vezes a impressão de que haviam sobreposto um universo falso ao meu universo habitual, e que me bastaria romper com os dedos esse cenário frágil e insólito para reingressar de novo no quotidiano do costume, povoado de rostos familiares e de cheiros que me acompanhavam com a fidelidade dos cachorros. (Lobo Antunes, 2003: 30-31)

Presenciando a miséria de um povo devastado por anos de guerra e de tortura, marcado por estigmas que teimam em sangrar, o médico parece ter uma revelação ainda maior: a da miséria humana, a da condição do homem como um ser transitório no mundo.

[...] o crepúsculo chega e o coração acelera-se, palpo-o no pulso, as vísceras comprimem-se, a vesícula dói-me, os ouvidos zumbem, qualquer coisa de indefinível e prestes a romper-se palpita, tenso, no meu peito: um dia destes, o porteiro dá comigo estendido nu no chão da casa de banho, um fio de pasta de dentes e de sangue ao canto da boca, as pupilas subitamente enormes contemplando nada, a cheirar mal, sem cor, inchado de gases [...] foi há seis meses e perturbo-me ainda: descíamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lucusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construção da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pré-fabricados dos quartéis, o cemitério dos refeitórios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descíamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilómetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia e íamos morrer, íamos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de boné nos olhos , o vibrar de um cigarro infinito na mão, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia. (Lobo Antunes, 2003: 42-43)

E a cada momento, novas lições de dor e agonia. Partindo de Nova Lisboa ao Luso e, então, para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilômetros de Luanda, e, afinal, a Gago Coutinho, junto à fronteira com a Zâmbia, luta contra o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Todo o horror das cenas de guerra – os cadáveres, os homens mutilados, os gritos de pavor, a dolorosa agonia, a morte do cabo Paulo e a mutilação do companheiro Ferreira, enfim, toda a barbárie da guerra, que arranca os homens de suas vidas diárias, fazendo deles animais predadores e carniceiros, bestas em corpos humanos, parece amenizar-se quando, na tarde de 22 de junho de 1971, estando no Chiúme, o médico recebe a notícia de que sua filha nascera.

[...] encostado ao arame, sozinho, a fim de que não vissem as lágrimas, encostado ao arame do Chiúme e assistindo ao descer do morro até à chana e, para lá da chana, à mata de morrer do Leste, pensava na minha filha desconhecida num berço de clínica, entre outros berços de clínica que se espiam através da vigia de navio, pensava na filha que tanto desejava como testemunho vivo de mim próprio na esperança de que, por interrmédio dela, me redimisse um pouco dos meus erros, dos meus defeitos e das minhas falhas, dos projectos abortados e dos sonhos grandiloquentes a que me não atrevia a dar forma e sentido. Talvez que ela escrevesse um dia os romances que eu tinha medo de tentar e encontrasse para eles a cor e o ritmo exactos, talvez que ela lograsse com os outros a relação próxima e quente e generosa que eu ao mesmo tempo desejava temia, talvez que nos fosse possível um entendimento pacientemente conquistado que de certa forma me justificasse, e que a mãe dela, durante anos, aguardara em vão. (Lobo Antunes, 2003: 87)

Sua filha é um sopro de vida no inferno angolano. Por um momento – e por um momento apenas – o narrador parece encontrar alguma paz, um fio de esperança em meio a tanto desespero. Pensando na filha que não conhece, recorda-se da esposa, “grito de amor sufocado”, e dos amigos cujas feições começa a esquecer. “Há onze meses que não vejo cortinas, nem tapetes, nem cálices, nem alcatrão, e era como se essas quatro ausências constituíssem a base elementar de qualquer espécie de felicidade”. (Lobo Antunes, 2003: 94)

Em uma triste madrugada de novembro está de volta a Lisboa. Dominado pela emoção, prestes a explodir em choro, encontra esposa e filha, ambas fragilizadas pelo abandono do sono.

[...] trepei os degraus com a mala a arrastar atrás de mim à laia de uma cauda incómoda e uma explosão de lágrimas a inchar, enovelada, na garganta, encontrei uma mulher numa cama e uma criança num berço dormindo ambas na mesma crispação desprotegida feita da fragilidade e abandono, e fiquei parado no quarto com a cabeça cheia ainda dos ecos da guerra, do som dos tiros e do silêncio indignado dos mortos, a escutar, sabe como é, os sonos que se entrelaçavam numa rede complicada de hálitos, um tornozelo da minha mulher sobrava, pendente, dos lençóis, e eu comecei a afagá-lo de leve até ela acordar, afastar os cobertores sem uma palavra, e me receber inteiro na cova morna do colchão. A voz gorda do tenente, rebolando de muito longe, repetia Pôr o selo na patroa, pôr o selo na patroa, pôr o selo na patroa, doutor é preciso pôr o selo na patroa, os capitães vindos de sargentos jogavam as damas na messe, o Ferreira cicatrizava o coto da perna que já não tinha, no Luso, e eu sentia-me fazer amor por todos eles, entende, vingar o sofrimento e a angústia de todos eles num corpo aberto como uma onda nocturna, a cerrar-se devagar sobre os meus rins exaustos. (Lobo Antunes, 2003: 104-105)

Entretanto, os ecos da guerra ainda o permeiam. Sente-se em uma espécie de entrelugar entre a sua casa e África. O homem culto e sensível parece ter morrido lá. Lá, terra onde não há sonhos nem esperanças, onde o amor não é possível, um novo homem emergiu. Estrangeiro até mesmo em sua própria casa, não se sente bem-vindo em parte alguma. Por vezes sente estar, ainda, em Angola. Com a alma mutilada, parece-lhe impossível retomar a vida. O mundo torna-se-lhe intransponível:

Passámos vinte e sete meses juntos nos cus de judas, vinte e sete meses de angústia e de morte juntos nos cus de judas, nas areias do Leste, nas picadas dos Quiocos e nos girassóis do Cassanje, comemos a mesma saudade, a mesma merda, o mesmo medo, e separámo-nos em cinco minutos, um aperto de mão, uma palmada nas costas, um vago abraço, e eis que as pessoas desaparecem, vergadas ao peso da bagagem, pela porta de armas, evaporadas no redemoinho civil da cidade.

Fardado, com um saco cheio de livros ao ombro e outro de roupa na mão, Lisboa ergue perante mim a sua opacidade de cenário intransponível, subitamente vertical, lisa, hostil, sem que nenhuma janela abra diante dos meus olhos sequiosos de repouso, côncavos favoráveis de ninho. (Lobo Antunes, 2003: 238-239)

É com extrema sensibilidade e profundidade que António Lobo Antunes, através de sua escrita, mergulha no interior do ser humano, trazendo à tona o homem em meio ao caos do mundo fragmentado e disperso. Através das representações das relações do eu com o outro e com o mundo, Lobo Antunes mostra-nos, muitas vezes, a impossibilidade do relacionamento humano.

N’Os Cus de Judas temos o testemunho amargurado de um médico, convocado para servir em Angola. Tudo com o que se depara é a morte, a amargura, o desespero e a solidão. Marcas de uma terra em guerra, em que se mata e, inadvertidamente, morre-se sem mesmo saber a razão. Está ali, em um tempo-espaço, arrancado de sua vida, de sua esposa, de sua filha. Nesse espaço hostil, entretanto, nesse deserto interior, isolado de todo o mundo, sem possuir absolutamente nada além das recordações, há o momentum da descoberta, do encontro consigo mesmo:

Tudo é real, sobretudo a agonia, o enjoo do álcool, a dor de cabeça a apertar-me a nuca com o seu alicate tenaz, os gestos lentificados por um torpor de aquário, que me prolonga os braços em dedos de vidro, difíceis como as pinças de uma prótese por afinar. Tudo é real menos a guerra que não existiu nunca: jamais houve colónias, nem fascismo, nem Salazar, nem Tarrafal, nem PIDE, nem revolução, jamais houve, compreende, nada, os calendários deste país imobilizaram-se há tanto tempo que nos esquecemos deles, marços e abris sem significado apodrecem em folhas de papel pelas paredes, com os domingos a vermelho à esquerda numa coluna inútil, Luanda é uma cidade inventada de que me despeço, e, na Mutamba, pessoas inventadas tomam autocarros inventados para locais inventados, onde o MPLA subtilmente insinua comissários políticos inventados. O avião que nos traz a Lisboa transporta consigo uma carga de ferramentas que lentamente se materializam, oficiais e soldados amarelos de paludismo, atarraxados nos assentos, de pupilas ocas observando pela janela o espaço sem cor, de útero, do céu. Reais são as camionetas cinzentas à espera no aeroporto, o frio de Lisboa, os sargentos que nos examinam os documentos no vagar lasso dos funcionários desinteressados, o trajecto até ao quartel onde as nossas malas se empilham numa confusão cónica de volumes, as despedidas rápidas na parada. (Lobo Antunes, 2003: 237-238)

E assim, decifrando a noite, o deserto, os homens, a luz e as trevas, depara-se consigo mesmo. A verdade é o Homem que emerge dentro de si, quando supera a si mesmo, quando diz não a tudo aquilo que o sufoca, o desespera, quando supera África, terra de resistência, terra de epifania, porque “ao se medir com um obstáculo, o homem aprende a se conhecer”. (Saint-Exupéry, 1987: 8)

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOBO ANTUNES, António. Os cus de judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Terra dos homens. 38ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.