Apresentando o Paraíso de Dante

Cristina Monteiro de Castro Pereira (UERJ)

 

Uma grande viagem, provavelmente, a maior de todas: a peregrinação pelo mundo do Além com a esperança de salvação da alma. Esta é a via traçada por Dante para Dante na Divina Comédia. Perdido na selva oscura, nel mezzo del cammin de sua vida, sem conseguir à diritta via retornar, recebe a graça divina de um guia para ajudá-lo na difícil tarefa de purgar seus pecados e alcançar a salvação de sua alma. Mas este percurso não é simples. A doutrina cristã exige o caminho mais difícil: a humildade de reconhecer e encarar os pecados – a decida ao inferno (que também remete à katábasis grega, rito de iniciação para os heróis), para depois purgá-los – a subida à montanha do purgatório, e finalmente estar preparado para receber a graça da salvação – o acesso ao paraíso. Dante-personagem passa por todos esses estágios, concretizando os passos da doutrina nas divisões da Comédia, até ser capaz de, após o encontro com a Trindade, voltar e escrever o poema.

O poeta dividiu sua obra em três grandes partes – Inferno, Purgatório e Paraíso – de acordo com a crença cristã-medieval sobre o mundo pós-morte. Dante pretende, depois de voltar de sua experiência, ser capaz de deixar para seus futuros leitores una favilla da glória de Deus. Mas, por que só uma “centelha”, apesar de ter merecido – de lhe ter sido ofertada – a possibilidade da revelação?

Embora a personagem esteja in loco, presenciando o absoluto no paraíso, ela preserva seu corpo mortal, o que a limita em relação à experiência do divino, e a conecta às possibilidades de seus leitores. A limitação de Dante, um homem encarnado no reino do Além, corresponde, então, a uma graduação de apreensão que parte do menor para o maior grau de dificuldade. As imagens do Inferno são bem concretas, assim como os pecados são velhos conhecidos do homem; no Purgatório, as cenas da caminhada se intercalam com sonhos e visões imaginativas de cunho didático, intermediando entre o Inferno e o Paraíso, mas permanecendo ainda dentro dos limites humanos; o último estágio é aquele que mais se afasta da possibilidade de compreensão. De acordo com Beatriz (Par.: IV, 37-42), a visão de Dante é “facilitada” pela graça de Deus, que re-configura aquilo que ultrapassa a capacidade humana de entendimento, para que a personagem seja capaz de experienciá-lo. Trata-se de uma performance da presença do absoluto, o qual, em todo o seu esplendor, não pode ser experimentado por um corpo encarnado.

Chegamos, então, à dificuldade aludida pelo poeta: como transformar, em versos, a experiência do sublime? Quando as faculdades falham, se debilitam frente ao imenso, como representá-lo? Como escrever (sobre?) aquilo que não se consegue abarcar?

Só com o auxílio do próprio deus da poesia, guia das Musas (de quem se valeu para cantar o Inferno), Dante se sentiria capaz de apresentar para seus leitores o reino supremo. O deus pagão precisa intermediar a audaciosa proposta de Dante para que ele consiga escrever o poema. Como um deus pagão – mesmo que ainda vivo, como tantos outros personagens míticos, no imaginário do poeta – pode ter tanto poder para um autor cristão? Provavelmente porque Apolo encarna, simbólica e poeticamente na Comédia, a própria poesia. Os recursos estéticos têm de ser especialmente trabalhados, de modo provocar no leitor, o indizível.

Como representar um mundo cujas imagens são “anti-imagens” (Cf. Freccero: 1986: 212)?

A necessidade de uma poesia extremamente estética se agiganta no Paraíso. Como per verba não consegue exprimir o que vê e sente, o poeta-personagem re-configura, em uma linguagem extremamente potencializada, a sombra que sua memória consegue reter – ou o poeta histórico, ciente de que um mortal seria incapaz de abarcar a totalidade do paraíso, constrói esta parte de seu poema de modo que a impossibilidade de sua personagem se metamorfoseie em forma, permitindo, desse modo, que o leitor a experiencie. Jogos de palavras, criações sonoras, visuais e cinéticas são mais alguns dos recursos poiéticos utilizados por Dante para apresentar, em poesia, o que resiste à representação. É no Paraíso, apesar de todo o seu conteúdo teológico, que Dante mais se aproxima de uma arte “moderna”, negativa, altamente formal, abstrata. Dois universos tão distantes e diferentes encontram um ponto em que tangenciam: o efeito estético, o salto para o vazio que uma obra “concreta” pode promover.

Dante alude à dificuldade da representação do que viu no paraíso em seus versos. Deste mesmo problema, ainda que não ligada a um contexto místico, mas decorrente de uma possível leitura de Kant, advêm algumas das teorias modernas e contemporâneas sobre a impossibilidade da mímesis diante de uma obra abstrata, como podem ser classificadas várias partes do Paraíso. É exatamente como um “poema abstrato” que Haroldo de Campos se refere ao Paradiso dantesco:

Deste ângulo, para mim, o Paradiso pode ser visto como um verdadeiro poema abstrato. Um poema em que aqueles “sujets d’immagination pure et complexe ou intelect”, que moveram também o último Mallarmé, o do Coup de Dés, estavam de certo modo tematizados com antecipação de vários séculos. (Campos, 1998, 74)

“Objetos da pura imaginação”, diz Haroldo de Campos, citando Mallarmé. Será mesmo? Luiz Costa Lima, lutando contra a maioria dos pensadores da contemporaneidade, recusa a idéia da inexistência, a priori, da mímesis na arte abstrata e na própria obra de Mallarmé (Cf. Costa Lima, 1980 e 2000).

Considerando a teoria de Costa Lima de uma mímesis como representação-efeito, ou seja, como representação que tendencialmente conduz à apresentação, entendemos, com o autor, que, muitas vezes, o que é considerado amimético deveria ser repensado a partir de possíveis graduações dentro da mímesis. Dante não viu o Paraíso, mas tem, a partir da doutrina cristã, uma idéia de alguns possíveis efeitos que sua visão teria sobre o homem mortal. Além disso, o ponto de partida de Dante são suas fontes: a organização do céu ptolomaico-aristotélico, os ensinamentos da mística medieval e a doutrina católica. Mesmo que a apresentação e que a configuração do Paraíso de Dante – apesar de partir de – se destaque, em sua concretização, de suas referências externas (em seu limite, inalcançáveis) –, não concordamos com a idéia de que seja amimético. O horizonte de expectativas do autor, o espaço geográfico, místico e cultural que impulsionou o poeta à construção do Paraíso, é conhecido também por seus leitores, em maior ou menor grau. A mímesis, neste caso, se desloca do objeto – que não existe no sensível – mas atravessa o horizonte de expectativa do poeta para se concretizar no poema. Se há comunicação, então existe mímesis. Se fosse produto da pura imaginação do autor, sem nenhum traço de mímesis, as leituras seriam desvinculadas da própria obra, o que acarretaria interpretações muito díspares do Paraíso – o que não acontece, uma vez que, existe, de certa forma, um relativo consenso nas leituras propostas pelos críticos.

Obviamente, neste caso, não se trata da mímesis clássica, onde a semelhança impera, quase absoluta. Nem tampouco de um processo mais simples de representação-efeito, que ainda se vincule, de uma maneira mais ou menos explícita, à sua referência externa. Estamos falando do que Luiz Costa Lima classificou como “mímesis da produção”, quando o efeito produzido pela imaginação se agiganta e prepondera sobre a representação (que não cessa de existir, mas existe em um grau muito menor, apenas como uma referência ao ponto de partida, seu horizonte de expectativas, e metamorfoseada no próprio poema). Neste caso, o poema produz sua própria referência, transformando-a em linguagem e em “modo de apresentação”:

O diferencial da mimesis da produção está na transformação das referências com que a obra é recebida em referências que nela mesma se constituem, transformação, portanto, efetuada pela própria linguagem, ajudada pela memória do leitor que a atualiza. (Costa Lima, 2000: 321).

Neste sentido, o jogo de luz, som, cor e movimento em que se transforma o paraíso é a tentativa da produção da própria epifania configurada em versos, em palavras, por meio de uma anterior suspensão semântica provocada pela experiência estética. Cabe ao leitor detectá-la e experienciá-la esteticamente para que haja a comunicação, para que haja mímesis (da produção).

Epifania e experiência estética podem ser relacionadas a partir de um quiasmo. Enquanto a primeira provoca uma suspensão do real em prol de um preenchimento divino, a segunda leva à suspensão do real para a criação de um “vazio”. No primeiro caso, temos um excesso de semântica, no segundo, uma escassez. A configuração do Paraíso de Dante é produzida, em grande parte, pela negatividade, ou seja, quando a referência externa, por algum motivo, é diluída (no caso do paraíso, sua matéria é diáfana e intangível), a representação também se reduz e, na apresentação do poema, uma outra referência é criada. Surge, então, uma tentativa de transformar o paraíso em uma configuração estética com uma finalidade específica: aproximá-lo de uma experiência epifânica. O que aponta para a dupla entrada da Comédia: por um lado, um poema “ideológico”; por outro, um poema extremamente estético.

O estético se sobressai no Paraíso a ponto de nos fazer, leitores “modernos”, por vezes esquecer o contexto em que a obra se insere. Daí podermos ver o branco sobre branco de Maliévitch no Canto III, 15:

tornan d’i nostri visi le postille
debili sí, che perla in bianca fronte
non vien men forte a le nostre pupille;
[1]

A pérola no branco, o branco sobre branco, não exprime o inimaginável, mas nos coloca frente a ele, cegos de luz. Vivenciamos, na experiência estética, a falha dos sentidos, da razão e da imaginação diante do intangível. Voltando à visão de mundo medieval-cristã, Dante se vale do efeito estético para provocar – naqueles que a isso se predispõem – uma epifania. É, então, produzindo sua própria referência nos versos que o poeta nos faz ver as almas etéreas que o circundam. Aqui nem a pérola e nem as almas são uma representação de suas referências externas. A construção do poeta criou uma nova referência que só existe em seus versos. E o leitor, só neles, ao mesmo tempo conhecerá e reconhecerá o que está escrito.

Dante rima Cristo com Cristo por três vezes, em algumas partes do paraíso, rompendo bruscamente com o encadeamento normal de seus versos em terza rima. John Freccero aponta para o fato de que o rompimento da rima própria à Comédia, que, encadeando-se, funciona como passos em um trajeto ascendente, remete à atemporalidade de Cristo ou, para nos mantermos mais próximos do pensamento cristão, para o seu caráter eterno, sua temporalidade simultânea: passado, presente e futuro inseridos em sua transcendência. Em relação ao efeito, Dante consegue incitar outra vez a experiência estética do leitor, que, atordoado, presencia – por alguns segundos alheio da semântica e de conceitos – a singularidade trina:

Qui vince la memora mia lo ‘ngegno;
che ‘n quella croce lampeggiva Cristo,
si ch’io non so trovare essemplo degno;

ma chi prende sua croce e segue Cristo
ancor mi scuserà di quel ch’io lasso,
vedendo in qull’albór balenar Cristo.
[2]

Trazendo para a configuração dos versos a Trindade pela repetição do nome “Cristo”, Dante cria, novamente, a referência dentro do poema. Não é o Cristo que conhecemos e nem a Trindade explicitada – Pai, Filho e Espírito Santo. É, mais uma vez, uma possibilidade nova com que o leitor só se conecta nos versos. Exemplos do que Costa Lima denominou de mímesis da produção.

Dante-poeta segue o caminho de Deus ao re-configurar para ele o paraíso: promove menos uma representação, mais uma “performance” ou “encenação” do absoluto em um grandioso jogo de palavras:

A encenação se origina da infra-estrutura da apresentação, ou seja, do jogo (...). Ela empresta forma ao inacessível, preservando ao mesmo tempo seu estatuto, à medida que se evidencia como simulacro. Daí resulta, de um lado, sua fascinação, à medida que mostra mundos impenetráveis, e, de outro, sua potência, à medida que torna presentes estados de coisas não passíveis de objetivação, de tal forma que parecem ser percepções para a consciência. O que nunca pode se tornar presente, o que se furta ao conhecimento e à experiência, apenas pode entrar na consciência através da apresentação. (Iser, 1991, 360-361).

Esta performance dos significantes também se afasta da noção tradicional da mímesis clássica, e se conecta com as teorias mais contemporâneas da arte. Mas reiteramos: mesmo se tratando de uma performance, mesmo sendo um objeto artístico que se vale da apresentação produtora de sua configuração – e não da representação de um objeto externo à obra – para comunicar, ele comunica, ou seja, ainda existe mímesis no Paraíso de Dante.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução ao português de Cristiano Martins. Belo Horizonte, São Paulo: Itatiaia, 1979, 2 vol.

––––––. A divina comédia. 3 vol. Tradução ao português de Ítalo Eugênio Mauro. Ed. Bilíngüe. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001.

CAMPOS, Haroldo. Pedra e luz na poesia de Dante. Rio de Janeiro: Imago, 1998.

COSTA LIMA, Luiz. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002.

––––––. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

––––––. Mímesis e modernidade. Formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.

––––––. Vida e mímesis. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

FRECCERO, John. Dante, the poetics of conversion. USA: Harvard University Press, 1986.

GILSON, Étienne. Dante et Béatrice: etudes dantesques. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1974.

ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropologia literária. Tradução ao português de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: Eduerj, 1996.

––––––. Das Fiktive und das Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropologie. Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main, 1991.

KANT, Emmanuel. Crítica da faculdade de juízo. Tradução ao português de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

MANDELSTAM, Ossip. Entretien sur Dante. Lausanne: L’Age d’Homme, 1977.

SCHUBACK, Marcia de Sá Cavalcante. Para ler os medievais: ensaio de hermenêutica imaginativa. Petrópolis: Vozes, 2000.


 


 

[1] “Nos volta imagem tal que discerni-la, / quase qual pérola em pálida fronte, / ainda não poderia nossa pupila;” Trad. Ítalo Eugênio Mauro.

[2] “Aqui minha memória do narrável / vence o engenho; na cruz lampeja Cristo / e outro exemplo não diz quão memorável; / mas o que toma a cruz e segue a Cristo / escusará quem ora desanima, / quando vir nesse alvor luzindo Cristo.” Trad. Haroldo de Campos.