CRÔNICA: A LITERATURA DO JORNAL

Fernanda Freitas (UERJ)

 

Este trabalho é parte do que venho desenvolvendo em minha dissertação do Mestrado em Língua Portuguesa na UERJ. A pesquisa tem como corpus os Contos Mínimos de Heloisa Seixas, autora que por muito tempo publicou crônicas na Revista Domingo do Jornal do Brasil.

O que trago hoje é a discussão a respeito da validade da crônica como texto literário. Para isso, vale observar algumas definições de crônica:

De acordo com Antônio Geraldo da Cunha, em seu Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (1986), crônica vem do francês chronaxie. sf. ‘Narração histórica, feita por ordem cronológica’ ‘seção ou coluna de jornal ou de revista, que trata de assuntos da atualidade’. Do latim chronîca –orum pl., deriv. do gr. chronikós.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) apresenta o seguinte verbete:

Crônica s.f. 1. HIST compilação de fatos históricos apresentados segundo a ordem de sucessão no tempo [Originalmente a crônica limitava-se a relatos verídicos e nobres; entretanto, grandes escritores a partir do sXIX passam a cultivá-la, refletindo, com argúcia e oportunismo, a vida social, a política, os costumes, o cotidiano etc., do seu tempo em livros, jornais e folhetins.]

4. p. ext. JOR coluna de periódicos, assinada, com notícias, comentários, algumas vezes críticos e polêmicos, em torno de atividades culturais (literatura, teatro, cinema etc.), de política, economia, divulgação científica, desportos etc., atualmente tb. abrangendo um noticiário social e mundano.

6. LIT texto literário breve, em geral narrativo, de trama quase sempre pouco definida e motivos, na maior parte, extraídos do cotidiano imediato.

7. p. ext. LIT prosa ficcional, relato com personagens e circunstâncias alentadas, evoluindo com o tempo (...)

Nota-se que o sentido primeiro apresentado nos dicionários não é o que se entende por crônica hoje, mas é a origem desse gênero atualmente tão popular. A crônica atual nasceu no formato de narrativas que registravam acontecimentos históricos, como a Carta de Pero Vaz de Caminha. Caminha registrou o tempo presente, os costumes da terra explorada, comportando-se como um cronista do descobrimento. Muitos outros produziram textos como os dele: relatando o cotidiano da época e contribuindo para a história, já que temos notícias daquele tempo com base em seus escritos. Todos eles fizeram crônicas no sentido primeiro da palavra, apesar de o valor literário de tais documentos ser questionado por alguns. O que vale é que nesses relatos detalhes aparentemente insignificantes são mostrados, tornando-se fundamentais para formar uma unidade. Este é o princípio básico da crônica: o registro do circunstancial.

Durante muito tempo esse conceito do gênero existiu. Até mesmo quando surgiram os primeiros textos semelhantes aos que se tem hoje. Só com o advento da literatura jornalística a crônica foi perdendo o caráter histórico e assumindo as feições atuais, apesar de não deixar de ser um registro dos costumes da época.

O modelo da crônica atual nasceu na França e veio para o Brasil com o nome de folhetim. A diferença para a crônica atual estava, principalmente, no lugar que o veículo de comunicação dedicava a esse texto: um espaço no rodapé do jornal que tinha o objetivo de entreter o leitor em meio às notícias, com pequenos contos e artigos, poemas e breves ensaios. Na época existiam dois tipos folhetim: o folhetim-romance e o folhetim-variedades.

Foi o folhetim de variedade que deu origem ao gênero crônica, trazendo matérias diversificadas sobre os fatos que comentavam e registravam a vida cotidiana de então. Essa vertente literária era considerada como uma prova de que a literatura brasileira estava crescendo e seduzindo leitores. Nesse espaço vários talentos apareceram e a crônica foi desenvolvendo-se até o que temos hoje.

Traçando um paralelo entre os cronistas daquela época e os atuais, vê-se que um dos pontos em comum é que sempre foi assunto da crônica o exercício da metalinguagem, a crônica sobre a crônica, o ato de fazer o texto que perturba a vida dos autores, tirando noites de sono e fazendo com que a falta de imaginação para produzir um texto que tem data marcada para ser entregue seja o próprio tema e resulte em belos textos.

O interessante é que no tempo de José de Alencar e Machado de Assis, que também foram cronistas, a discussão sobre a crônica aparecia no meio de outros pontos que precisavam estar no folhetim, como os comentários sobre a ópera da noite anterior, os bailes e recepções, e a política – que ainda hoje é matéria favorita de muitos cronistas. Para isso, os folhetinistas precisavam freqüentar os salões e estar a par de todos os acontecimentos da sociedade.

Foi da exigência de não ficar apenas na redação do jornal à espera das novidades que alguns escritores modificaram seus textos ao sair para investigar e colher material suficiente para render um folhetim. Assim, a notícia do dia-a-dia transformava-se em literatura e confirmava cada vez mais o nascimento de um gênero literário. O que começou no Romantismo expandiu-se, chegando até o Pré-modernismo, quando João do Rio, cronista carioca por excelência, consagrou-se como mundano ao trazer em suas crônicas a vida dos morros e da malandragem carioca vestidas de literatura. Com o pseudônimo que o popularizou, Paulo Barreto renovou a crônica, registrando a vida social da época e também denunciando os problemas da cidade rodeada de belezas naturais.

A crônica adaptou-se muito bem ao estilo de vida carioca. O Rio de Janeiro, durante muito tempo, foi privilegiado por concentrar um grande número de cronistas e com isso recebeu belas homenagens. Chegou-se a dizer que a crônica seria um gênero essencialmente carioca. Apesar da afirmativa não ser de todo verdadeira, Artur da Távola, em “Literatura de jornal (o que é a crônica)” (Távola, 2006). diz que um dos pré-requisitos da crônica é ser “irreverente como um carioca”.

Ela se caracteriza pelo gênero de linguagem leve, frouxa, envolvente, com a finalidade de entreter. A crônica é uma narrativa curta de tom quase sempre coloquial, uma “conversa fiada”, segundo Vinicius de Moraes, que recebe tratamento literário. Seus temas são os mais variados: tudo que passar pelos olhos e ouvidos do cronista e resultar em frases interessantes. Pode-se tratar de dor, saudade, uma cena no sinal de trânsito, observar um idoso que caminha na praia ou acena da janela, uma criança que brinca no jardim, ou se pode lembrar da criança que ficou para trás. Fala-se também de política, costumes e da falta do que falar – assunto recorrente para muitos cronistas, como já visto.

 

Crônica: gênero jornalístico e/ou literário?

Por aparecer em um veículo de publicação caracterizado pela informação e ao mesmo tempo relatar o cotidiano de forma subjetiva, a questão do gênero é freqüentemente uma dúvida ao se tratar de crônica. Não restam dúvidas de que há ali um misto entre jornalismo e literatura. O grande desafio do cronista está justamente em transformar o fato, a simples informação, em um texto artístico. Seus comentários precisam afastar-se da linguagem denotativa, ganhando subjetividade.

Para adequar-se ao tempo de que seu leitor dispõe no café da manhã ou no intervalo entre uma atividade e outra, o ritmo da crônica é ágil – herança recebida do jornal, que tem vida útil de 24 horas, não mais. Essa agilidade encontra-se na arrumação das palavras, que algumas vezes parecem soltas, mas nunca desarrumadas, apenas mais próximas da oralidade. É um diálogo entre cronista e leitor baseado em algo tirado do cotidiano. O valor literário vem pela capacidade do autor de trazer lirismo àquele texto tão familiar, de apresentar clareza e não ser simplista, atingindo o público.

Tudo isso coloca em questão a validade da crônica como literatura. Para alguns ela é vista como um gênero menor por não apresentar a sofisticação dos romances, mas é nítido que sua elaboração literária existe e é fundamental. Não há nada mais literário do que transformar uma simples situação do dia-a-dia em um diálogo cheio de indagações e reflexões sobre a problemática da vida.

Eduardo Portella argumenta a respeito:

O que interessa é que a crônica, acusada injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia, que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se perde no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros, esses transcendem e permanecem. (Portella,. apud Bender e Laurito, 1993: 53)

Com isso, pode-se dizer que a crônica é a literatura do jornal e o jornalismo da literatura e o cronista é o poeta dos acontecimentos do dia-a-dia.

Ilustra-se o exposto com uma das crônicas do corpus da dissertação, pois além da questão do gênero, a pesquisa consiste na identificação dos mecanismos lingüísticos que supostamente tornam a escritura de Heloisa Seixas tão envolvente. Observando seus textos, saltam aos olhos a maneira de pontuar e organizar os parágrafos, a preocupação com uma descrição minuciosa, traços de oralidade, certas inversões sintáticas e uma discreta conversa com o leitor, entre outros aspectos recorrentes.

Uma cena

É de manhã. Não num lugar qualquer, mas no Rio. E não numa época qualquer, mas no outono. Outono no Rio. O ar é fino, quase frio, as pedras portuguesas da calçada estão úmidas. No alto, o céu já é de um azul escandaloso, mas o sol oblíquo ainda não conseguiu vencer os prédios e arrasta seus raios pelo mar, pelas praias, por cima das montanhas, longe dali. Não chegou à rua. E naquele trecho, onde as amendoeiras trançam suas copas, ainda é quase madrugada.

Mesmo assim, ela já está lá – como se à espera do sol.

É uma senhora de cabelos muito brancos, sentada em sua cadeira, na calçada. Na rua tranqüila, de pouco movimento, não passa quase ninguém a essa hora, tão de manhãzinha. Nem carros, nem pessoas. O que há mais é o movimento dos porteiros e dos pássaros. Os primeiros, com suas vassouras e mangueiras, conversando sobre o futebol da véspera. Os segundos, cantando – dentro ou fora das gaiolas.

Mas mesmo com tão pouco movimento, a senhora já está sentada muito ereta, com seu vestido estampado, de corte simples, suas sandálias. Tem o olhar atento, o sorriso pronto a cumprimentar quem surja. No braço da cadeira de plástico branco, sua mão repousa, mas também parece pronta a erguer-se num aceno, quando alguém passar.

É uma cena bonita, eu acho. Cena que se repete todos os dias. Parece coisa de antigamente.

Parece. Não fosse por um detalhe. A senhora, sentada placidamente em sua cadeira na calçada, observando as manhãs, está atrás das grades.

Meu irmão, que foi morar fora do Brasil e ficou 15 anos sem vir aqui, ao voltar só teve um choque: as grades. Nada mais o impressionou, tudo ele achou normal. Fez comentários vagos sobre as árvores crescidas no Aterro, sobre o excesso de gente e carros, tudo sem muita ênfase. Mas e essas grades, me perguntou, por que todas essas grades? E eu, espantada com seu espanto, eu que de certa forma já me acostumara à paisagem gradeada, fiquei sem saber o que dizer.

Penso nisso agora, ao passar pela rua e ver aquela senhora. Todos os dias, o porteiro coloca ali a cadeira para que ela se sente, junto ao jardim, em frente à portaria, por trás da proteção do gradil pintado com tinta cor de cobre. E essa cena tão singela, de sabor tão antigo, se desenrola assim, por trás de barras de ferro, que mesmo sendo de alumínio para não enferrujar são de um ferro simbólico, que prende, constrange, restringe.

Eu, da calçada, vejo-a sempre por entre as tiras verticais de metal, sua figura frágil me fazendo lembrar os passarinhos que os porteiros guardam na gaiolas, pendurados nas árvores.

Logo no título aparece a característica primeira da crônica: o relato do cotidiano, “uma cena”. O texto é dividido em dois momentos: o primeiro, em que o narrador é observador e limita-se a descrever minuciosamente a cena observada e o segundo, em que o foco narrativo mistura-se com o da 1ª pessoa. E é nesse segundo momento que a proximidade com o leitor é representada em maior intensidade, é quase uma conversa, um desabafo.

Observando a estrutura do texto, vemos a presença de frases curtas e fragmentadas que dão ritmo à narrativa e são uma marca forte do estilo da autora. Observem também a paragrafação: o segundo parágrafo é curtíssimo, mas expressivo. Ela separa a descrição do cenário da apresentação da personagem, e só num terceiro parágrafo vem a descrição da mulher.

É comum encontrarmos também períodos iniciados com conjunções, como no segundo parágrafo da segunda coluna: “Mas mesmo com tão pouco movimento...”. O “mas” é freqüente no início dos períodos da Heloisa. No quinto parágrafo, onde ela traz a fala do irmão, há mais uma representação disso: “Mas e essas grades, me perguntou, por que todas essas grades?” Em outros textos, há grandes seqüências de períodos assim, não só com o “mas”, com outras conjunções também.

Outro ponto a ser observado é a pontuação, que é bastante expressiva. Pela fragmentação das frases, os pontos são constantes e também colaboram para o ritmo da narrativa. Para exemplificar rapidamente eu vou apontar questão do discurso. Ela não faz qualquer diferença entre a sua fala como narradora e a do personagem que se manifesta na história. Não há aspas ou travessão, apenas o verbo discendi nos dá a informação.

Outro traço marcante é o da oralidade. Nessa crônica isso pode ser representado pelo E que inicia alguns períodos, como no último período do primeiro parágrafo: “E naquele trecho...”. E também logo depois da fala do irmão: “E eu, espantada com seu espanto...” e mais abaixo no penúltimo parágrafo: “E essa cena tão singela...”

Na sala de aula, isso é um material riquíssimo, já que dessa forma o aluno pode ver a gramática concretizada, além de ser uma grande vantagem trabalhar com as crônicas pelo pouco espaço que ocupam evitando-se o trabalho com fragmentos de textos que normalmente perdem sua essência.

Com um texto de valor literário indiscutível, o professor pode oferecer ao aluno um material rico e de fácil acesso, pois as crônicas estão em todos os meios de comunicação de massa à disposição dos leitores. Antonio Candido, quando questionado a respeito do valor do gênero crônica, disse que é bom que alguns pensem que se trata de um gênero menor, seria o caso de dizer “Graças a Deus” (...) porque sendo assim, ela fica perto de nós.” (Candido,. apud Bender e Laurito, 1993: 43.)

 

Referências bibliográficas

BENDER, Flora Christina e LAURITO, Ilka Brunhilde. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. (Série Princípios).

TÁVOLA, Artur da. Literatura de jornal (o que é a crônica). Disponível em http://intervox.nce.ufrj.br/~edpaes/lit-jor.htm em agosto de 2006.