Darcy ribeiro: seus elementos coesivos

Carmen Elena das Chagas (UFF)

 

INTRODUÇÃO

O estudo da coesão textual, nas últimas décadas, tem sido de bastante relevância devido ao fato da mesma constituir um problema, de certa forma, presente no ensino da língua materna.

Ao longo deste tempo tem havido muita divergência entre os estudiosos. Este contraste de pensamento entre os mesmos, torna a discussão bem interessante e proveitosa para a construção e a análise de texto.

Para melhor entendimento, é necessário o conhecimento de algumas definições de coesão textual.

Segundo Schmidt, o texto é toda comunicação transmitida por sinais, inclusive, os lingüísticos.

Texto é qualquer expressão de um conjunto lingüístico num ato de comunicação – no âmbito de um jogo de atuação comunicativa – tematicamente orientado e preenchendo uma função comunicativa reconhecível, ou seja, realizando um potencial ilocucionário reconhecível.

Já Marcuschi (1983) define coesão como: “Fatores de coesão são aqueles que dão conta da estruturação da seqüência superficial do texto” ou “Uma espécie de semântica da sintaxe textual, isto é, dos mecanismos formais de uma língua que permitem estabelecer, entre os elementos lingüísticos do texto, relações de sentido.”

Halliday & Hasan (1976) dizem o seguinte:

A coesão como parte do sistema de uma língua: embora se trate de uma relação semântica, ela é realizada – como ocorre com todos os componentes do sistema semântico, através do sistema léxico-gramatical. Há, portanto, formas de coesão realizadas através da gramática e outras, através do léxico.

Halliday & Hasan citam como principais fatores ou mecanismos de coesão a referência, a substituição, a elipse, a conjunção e a coesão lexical. Para estes autores, a coesão é uma relação entre um elemento do texto e algum outro elemento importante para a sua interpretação.

Para Beaugrande & Dressler (1981) coesão é:

A coesão concerne ao modo como os componentes da superfície textual, isto é, as palavras e frases que compõem um texto – encontram-se conectadas entre si numa seqüência linear, por meio de dependências de ordem gramatical.

Assim, este trabalho será desenvolvido, tomando como referência a definição de Marcuschi, não deixando de fazer algumas inferências, segundo o pensamento de Halliday e Hasan.

Para que não se perca o sentido deste trabalho, é necessário que haja uma pré-definição dos mecanismos de coesão utilizados nesta análise textual.

O primeiro mecanismo é o da referência endofórica, ou seja, aquela que se acha no próprio texto, mais especificamente, a anáfora.

O segundo mecanismo é o da elipse ou substituição zero, onde se omite um item lexical ou um sintagma que podem ser recuperáveis pelo contexto.

O terceiro e último mecanismo e o da conjunção ou conexão que permite estabelecer relações significativas entre elementos ou orações do texto.

Partindo destes pressupostos, o trabalho objetiva analisar dois fragmentos do texto Humanidade de Darcy Ribeiro, tentando mostrar a importância do emprego dos elementos de coesão, através de uma análise mais sintática dos períodos, sem a pretensão de afirmar ou contestar as idéias do autor ou de ser objetivamente correta nas referidas suposições.

 

TEXTO A SER ANALISADO

A humanidade

(Fragmentos)

Humanidade é o conjunto de todos os povos que existem, ou seja, de todos os homens, mulheres e crianças que vivem neste mundo.

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Há quem diga que os europeus são brancos, os africanos pretos, os asiáticos amarelos e os índios cobreados. Mas não é bem assim: ninguém tem uma cor pura. Uns são mais claros, outros mais escuros, outros morenos. Todos são bonitos ou feios, porque isso de beleza não depende da cor. Nós, brasileiros, nos orgulhamos muito de ser um povo mestiço, na carne e no espírito. Fomos feitos pela fusão de gentes de todas as raças e pela mistura da sabedoria deles todos. Podemos, até dizer que somos mais humanos por termos mais humanidades misturadas em nós. (Ribeiro, 1995: 36)

 

MECANISMOS DE COESÃO

Referência endofórica

Primeiro parágrafo

1º período: “Humanidade é o conjunto de todos os povos / que existem, ou seja, de todos os homens, mulheres e crianças / que vivem neste mundo.”

No primeiro período aparece duas vezes a forma remissiva gramatical livre que (pronome relativo), fazendo a retomada da palavra povos. Há também a presença do indefinido todos, referenciando cataforicamente o enunciado homens, mulheres e crianças.

 

Segundo parágrafo.

1º período: “Há quem diga que os europeus são brancos, os africanos pretos, os asiáticos amarelos e os índios cobreados.”

O 1º período contém a presença do pronome indefinido substantivo quem, uma forma remissiva gramatical livre, que remete a alguém que representa o sujeito do verbo diga, mas representando uma referência exofórica, mais precisamente uma anáfora indireta.

2º período: “Mas não é bem assim: ninguém tem uma cor pura.”

Já aqui aparece a forma remissiva assim, que pode ser considerada dêitica, atuando cataforicamente, apontando para a oração apositiva “ninguém tem uma cor pura.

3º período: Uns são mais claros, outros mais escuros, outros morenos.”

Neste 3º período percebe-se a presença significativa dos indefinidos. A primeira forma é o artigo indefinido uns que, embora seja considerado forma remissiva gramatical presa, ele neste caso passa a ser um indefinido substantivo que remete de forma catafórica ao sujeito do período seguinte todos, tornando-o assim uma forma gramatical livre. Já com o pronome substantivo outros, não acontece esta variação, pois ele já é definido como forma gramatical livre, remetendo ao mesmo sujeito de uns.

4º período: Todos são bonitos ou feios, porque isso de beleza não depende da cor.”

O pronome indefinido todos, forma gramatical livre, já mencionado, também faz uma remissão anafórica aos sujeitos do 1º período (europeus, africanos, asiáticos e índios). E o pronome demonstrativo isso é um dêitico com valor resumitivo, remetendo a palavra beleza.

6º período: “Fomos feitos pela fusão de gentes de todas as raças e pela mistura da sabedoria deles todos.”

O pronome pessoal de 3ª pessoa ele contraído à preposição (de) fornece ao leitor introduzir a respeito do elemento de referência com o qual tal conexão deve ser estabelecida, aqui no caso, remete a gente e raças. Ainda neste período há o indefinido, já visto como remissivo livre todos que vem reafirmar a idéia global expressa pelo vocábulo deles.

 

Elipse

Segundo parágrafo

1º período: “Há quem diga que os europeus são brancos, os africanos [0] pretos, os asiáticos [0] amarelos e os índios [0] cobreados.”

Neste período nas 2ª, 3ª e 4ª orações há presença da elipse através da omissão do verbo de ligação ser, expresso na forma são na 1ª oração.

3º período: “Uns são mais claros, outros [0] mais escuros, outros [0] morenos”.

Este período possui a mesma construção do 1º período em relação à elipse, pois o termo omitido também é a forma verbal são.

5º período: [0]Nós, brasileiros, nos orgulhamos muito de ser um povo mestiço, na carne e no espírito”.

Neste período percebe-se a necessidade da presença da conjunção coordenativa aditiva e, no caso, elíptica, para que se possa dar continuidade ao período anterior. Desta forma, assim ficaria: Todos são bonitos ou feios, porque isso de beleza não depende da cor e nós, brasileiros, nos orgulhamos muito de ser um povo mestiço, na carne e no espírito.

7º período: [0] “Podemos, até, dizer que somos mais humanos por termos mais humanidades misturadas em nós.”

Já no último período, poder-se-ia admitir a elipse de um conector (portanto) ou a forma adverbial (desta forma) remetendo à idéia de conclusão das idéias expressas nos períodos anteriores e, até mesmo, retornando ao próprio título do texto Humanidade. Exemplificando:

Portanto / desta forma, podemos, até, dizer que somos mais humanos por temos mais humanidades misturadas em nós.

 

Conjunção ou conexão

Primeiro parágrafo

1º período: “Humanidade é o conjunto de todos os povos / que existem, ou seja, de todos os homens, mulheres e crianças / que vivem neste mundo.”

O período é composto por subordinação e é formado por 03 orações. A 1ª oração que define o vocábulo humanidade, segundo o autor, é classificada como oração principal. A 2ª oração introduzida pelo anafórico que (pronome relativo) retorna ao antecedente povos na oração principal, tornando a 2ª oração uma oração subordinada adjetiva explicativa. Ainda nesta segunda oração existe o elemento de coesão ou seja que aparece para introduzir mais alguns esclarecimentos à definição que foi citada na 1ª oração. A 3ª e última oração deste período também é classificada como oração subordinada adjetiva explicativa, porque possui a mesma estrutura da 2ª, exceto em relação ao termo ou seja que não é retomado.

 

Segundo parágrafo

1ª período: “ / quem diga / que os europeus são brancos, / os africanos pretos, / os asiáticos amarelos / e os índios cobreados.”

Este 1º período já começa levantando a questão do pronome interrogativo indefinido quem (que também pode introduzir uma subordinada substantiva), pois ele tem as funções de objeto direto do verbo impessoal da oração principal e sujeito do verbo diga da 2ª oração, que é classificada como subordinada substantiva objetiva direta e simultaneamente é principal da 3ª oração, que também é uma subordinada substantiva objetiva direta, só que introduzida pela conjunção integrante que. As 4ª, 5ª e 6ª orações, embora não tenham o verbo explícito, constituindo uma elipse , o sentido volta ao verbo são da oração anterior, ficando assim: os africanos são pretos. Analisando desta forma, são coordenadas assindéticas as 4ª e 5ª orações e coordenada sindética aditiva a 6ª oração, pois é iniciada pela conjunção e, dando uma idéia de soma ao que o autor definiu sobre as raças.

2º período: Mas não é bem assim: / ninguém tem uma cor pura.”

O 2º período é introduzido pelo conectivo adversativo mas que classifica esta 1ª oração como coordenada sindética adversativa, cujo sentido vem contrariar o que foi dito pelo autor no período anterior. Ela também serve de oração principal para a 2ª oração que é subordinada substantiva apositiva, acompanhada de dois pontos, formando uma oração justaposta, ou seja, aquela que não tem necessidade de um conectivo, que no caso seria expletivo, segundo Bechara.

3º período: “Uns são mais claros, / outros mais escuros, / outros morenos.”

O 3º período repete a quase que a mesma construção do 1º período. Ele é composto por 03 orações coordenadas assindéticas, havendo elipse do verbo são nas 2ª e 3ª orações. Todas possuem sujeitos formados por pronomes indefinidos substantivos e predicados nominais que vão ratificar a afirmação feita no 2º período “ninguém tem uma cor pura”.

4º período: “Todos são bonitos ou feios, / porque isso de beleza não depende da cor.”

O 4º período constituído de orações coordenadas, o autor faz uma afirmativa de exclusão. Na 1ª oração, ele emprega entre os termos a conjunção ou alternativa. A 2ª oração que é uma coordenada sindética explicativa introduzida pela conjunção porque, o autor fundamenta e explica a afirmação anterior. Nesta mesma oração há o emprego do pronome isso (demonstrativo) que retoma o sentido de beleza contido na oração.

5º período: “Nós, brasileiros, nos orgulhamos muito / de ser um povo mestiço, na carne e no espírito.”

O 5º período é composto por subordinação, onde a 1ª oração é considerada principal e a 2ª oração subordinada adverbial causal reduzida de infinitivo ser acompanhado pela preposição de que pode ser trocada pela preposição por, dando enfoque ao motivo pelo qual o autor se orgulha de ser brasileiro.

6º período: Fomos feitos pela fusão de gentes de todas as raças e pela mistura da sabedoria deles todos.”

Este período é formado por uma oração absoluta introduzida por uma locução verbal fomos feitos que retoma a idéia desenvolvida pelo autor no 5º período (povo mestiço) e possui o conectivo e (aditivo) que pode ser retomado à locução verbal citada formando uma nova oração.

7º período: Podemos, até , dizer / que somos mais humanos / por termos mais humanidades misturadas em nós.”

Já no último período, percebe-se que o mesmo é formado por subordinação, já que a 1ª oração é considerada principal, a 2ª oração introduzida pela conjunção integrante que é subordinada substantiva direta e a 3ª oração subordinada adverbial causal reduzida de infinitivo antecedido da preposição por, enfatizando a causa do povo brasileiro ser mais humano. Ainda na oração principal, entre os verbos, há uma palavra denotativa de inclusão até que reforça opinião do autor sobre a idéia que foi desenvolvida nas orações anteriores.

 

EXEMPLOS

Referência endofórica

1-“Mas não é bem assim: ninguém tem a cor pura.”

2- “Uns são mais claros, outros mais escuros, outros morenos.”

3-“... porque isso de beleza não depende da cor.”

4-“Fomos feitos pela fusão de gentes de todas as raças e pela mistura da sabedoria deles todos.

 

Elipse

1-“... que os europeus são brancos, os africanos [0] pretos, os asiáticos [0] amarelos e os índios [0] cobreados.”

2-“Uns são mais claros, outros [0] mais escuros, outros [0] morenos.”

3- “...porque isso de beleza não depende da cor. [0] = E Nós, brasileiros,, nos orgulhamos de ser um povo mestiço, na carne e no espírito.”

4-“Fomos feitos pela fusão de gentes de todas as raças e [0] pela mistura da sabedoria deles todos.”

5-Portanto [0] “Podemos, até, dizer que somos mais humanos por termos mais humanidades misturadas em nós.”

 

Conjunção ou conexão

1-“... povos que existem, ou seja, de todos os homens, mulheres e crianças que vivem neste mundo.”

(pronomes relativos)

2“Há quem diga que os europeu são brancos...”

(conjunção integrante)

3-“... e os índios cobreados.”

(conjunção coordenativa sindética aditiva)

4-“Mas não é bem assim...”

(conjunção coordenativa sindética adversativa)

5-“Todos são bonitos, porque isso de beleza...”

(conjunção coordenativa sindética explicativa)

6-“... e pela mistura da sabedoria deles todos.”

(conjunção coordenativa sindética aditiva)

7-“Podemos, até, dizer que somos mais humanos...”

(conjunção integrante)

 

CONCLUSÃO

A coesão textual, a partir da análise feita nos fragmentos do texto Humanidade de Darcy Ribeiro, reafirmou a importância dos mecanismos lingüísticos por meio dos quais se estabelecem, entre os segmentos dos textos (orações, enunciados, períodos e mesmo seqüências textuais), através da remissão, da retomada e da referência os vários tipos de relações sintático-semânticas que fazem a progressão do parágrafo e conseqüentemente, do texto como uma unidade significativa.

Concluindo e seguindo a definição de Weinrich, o texto é visto como uma estrutura cujas partes são interdependentes, sendo cada uma necessária para a compreensão das demais. E é através desta possibilidade da língua que se realça o valor de uma construção bem organizada e consistente.

Parafraseando Darcy em “Humanidade é o conjunto de todos os povos que existem, ou seja, de todos os homens, mulheres e crianças que vivem neste mundo.”, o texto é o conjunto de todos os elementos lingüísticos, isto é, de todas as relações lógico-semânticas que constituem uma língua.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2000.

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MACEDO, Walmírio. Análise sintática em nova dimensão. Rio de Janeiro: 1976.

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