ESTIGMAS DA MEMÓRIA
OS LAIS DE MARIE DE FRANCE

Cristina Maria Teixeira Martinho (USS)

 

Esquecimento é, pois, uma água de morte. Ninguém pode abordar o reino das sombras sem ter bebido nesta fonte, isto é, sem ter perdido a lembrança e a consciência. Ao contrário, a memória aparece como uma fonte de imortalidade. (Jean-Pierre Vernant)

 

O discurso narrativo é a obra secreta da lembrança, com seus infinitos inter-relacionamentos. As situações recordadas articulam uma tensão entre o individual e o social, resgatando-se, através de uma persona poética, elementos, estratégias e o dinamismo do sistema social. No que diz respeito à busca de identidade pelas mulheres, o processo se vê condicionado por imposições históricas de um centro identitário fálico, em torno do qual gravita excentricamente a identidade feminina. Pela negatividade e pela marginalidade, construiu-se, para a mulher uma identidade periférica, com base numa falsa alteridade, depreciativamente caracterizada à margem do núcleo identitário patriarcal.

Jeanne Marie Gagnebin (1997) indica-nos, em seus estudos sobre a obra de Walter Benjamin, que não podemos ignorar que o sujeito é sempre mobilizado por desejos, revoltas e desesperos coletivos que guardam em si marcas das condições de gênero, classe social, etnia, opção sexual. Quando falamos em identidade, devemos levar em conta que temos de compreendê-la através da presença errante e sinuosa do inconsciente, geradora de contradições dentro do próprio sujeito. E, por isso, a identidade não é inteiramente acabada, estando sempre em processo.

Compreender a memória histórico-cultural, as atitudes mentais e os processos de identidade que explicam o caráter tradicional da obra da escritora medieval francesa Marie de France, e dar-lhe um sentido (ou sentidos), constitui o primeiro objetivo a atingir neste trabalho, relembrando experiências, atitudes e histórias, contexto indispensável à leitura e a interpretação das narrativas, para penetrar o espesso véu da superfície textual que oculta, ao nosso olhar de indivíduos do século XXI, a dinâmica significante desses discursos poéticos oriundos do passado medieval. História e memória são duas palavras entrelaçadas, de acordo com o que se propaga pelo senso comum. A necessidade de uma é a necessidade da outra. A ativação de elementos da memória é importante na construção da identidade e do discurso feminino.

 

PRESSUPOSTOS DA MEMÓRIA

Segundo Luis Antônio Ferreira (2002), é em Aristóteles que encontramos pela primeira vez uma descrição da operacionalidade da memória humana, pois o pensador grego promove uma distinção entre a memória e outras faculdades da alma para traçar uma caracterização das relações existentes entre elas. Assim, distingue mnemê - a memória propriamente dita, mera faculdade de conservar o passado - de mannesi - a reminiscência, a faculdade de evocar voluntariamente esse passado. O processamento cognitivo das informações diferencia representações sociais relativas a saberes, desejos e crenças dos membros do grupo social, e representações individuais, decorrentes de experiências que o indivíduo tem com o mundo exterior.

Parece-me importante fazer uma breve reflexão a respeito da memória discursiva, que torna possível a circulação de saberes e prazeres. Segundo Foucault (1994) as eras históricas diferem não apenas no que se pensa, mas também no que é pensável. Em outra obra, (2001), o filósofo propõe que o poder está incluído nas práticas ou técnicas e têm suas próprias histórias. Traça as transformações históricas das técnicas de poder, e não apenas as vê como relações causais entre formas de poder e outras formas sociais.

Estas técnicas de poder são também formas de conhecimento. Daí, no período medieval, a prática monástica da confissão fabrica formas de conhecimento, como as variedades de pecados, ou a função dos asilos de confinar e segregar os enfermos mentais produz o conhecimento psiquiátrico. A memória discursiva separa e elege dentre os elementos constituídos numa determinada contingência histórica, aquilo que, numa outra conjuntura dada, pode emergir e ser atualizado, rejeitando o que não deve ser trazido à tona. Ela exerce, dessa forma, uma função ambígua na medida em que recupera o passado e, ao mesmo tempo, o elimina com os apagamentos que opera.

A memória continua a ser objeto de análise de vários pesquisadores em diversas fases da vida humana. No século XX, Henry Bergson (1990) revigora uma concepção espiritualista da memória, tematizando a relação entre cérebro e pensamento. A memória, ao recobrir com uma camada de lembranças, um fundo de percepção imediata, e contrair uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas. Sua função básica é evocar todas aquelas percepções passadas análogas ao momento presente, recordar o que as precedeu e o que as seguiu.

A memória de um ser vivo parece realmente medir, acima de tudo, seus poderes de ação sobre as coisas. Para falar a verdade, toda percepção já é memória. Nos somente podemos perceber praticamente o passado, pois o presente puro é o inapreensível avanço do passado a roer o futuro. (1990: 176)

No século XX, um novo olhar sobre o tempo e a memória então se instaura para sermos responsáveis pela tríade de percepção da existência – o presente, o passado e o futuro. A responsabilidade pelo que somos agora, pelo que percebemos que fomos no ontem e pelo que poderemos ser no amanhã, é exclusividade de cada um.

Os contos de Marie de France apresentam uma atmosfera mágica, similar à encontrada em contos mitológicos de fadas e fábulas. Aludem à memória e aos símbolos. Relembram que, em sociedades primitivas, sacerdotes e discípulos transmitem oralmente os mitos e ritos da tribo. Marie retoma estes “ritos”, escrevendo e burilando o seu texto à maneira de Santo Agostinho (383 d.C.), que diz ser o texto escrito ‘uma conversação posta no papel para que o parceiro ausente possa pronunciar as palavras destinadas a ele, sendo a palavra falada uma parte intrincada do próprio texto’. (apud Duby, 1993: 232). Maria testemunha este novo tempo em que a comunicação sem testemunhas entre o livro e o leitor não está sujeita a orientações ou esclarecimentos, à censura ou condenação do que lê.

Sua narrativa baseia-se no que ela ouviu e viveu do imaginário celta, com profundas raízes mitológicas, que pouco a pouco se fundem ao cristianismo emergente. Marie mostra-se obcecada com as capacidades performativas da literatura e com a sua própria consciência de sujeito ao interpretar o mundo real, através do imaginário. De acordo com Howard Bloch (2003), Marie desenvolve uma teologia da linguagem nos Lais, elaborando uma ética que, dentro do contexto da corte de Henry II, esquematiza e forma valores urbanos e instituições legais do mundo anglo-normando.

 

MEMÓRIAS DA IDADE MÉDIA

Hilário Franco Jr. (2001) ressalta que três fenômenos se mesclam para articular o imaginário oriundo da fusão de elementos pagãos e cristãos. Inicialmente, a reemergência e revalorização de um conjunto de elementos da cultura tradicional, como forma de estabelecer a identidade da média e da pequena aristocracia laica diante do clero, afastados, naquele contexto, de novos interesses políticos e econômicos. Não podemos nos esquecer que qualquer estudo válido sobre a Idade Média precisa ter em máxima conta a Igreja e a Religião.

A literatura cortesã, uma das expressões dessa reação folclórica, sofre certa cristianização (idealização do amor, dama comparada à Virgem, amor carnal sublimado, etc.), embora se mostre contrária ao processo eclesiástico de sacramentalização do matrimônio, preferindo combater o casamento e erotizar o amor. O século XII é o século da descoberta do amor; mas um amor sutil, paralelo, diferente e independente do amor conjugal, o amor cortês, um jogo, cujo mestre é o homem e a dama é peça fundamental. Apesar de não dispor livremente de si, pois pertence, primeiramente a seu pai, e depois ao esposo, e altamente vigiada, a mulher tem, no corpo, a honra do esposo. Georges Duby acentua o papel da mulher na nova relação do casamento:

Em muitas sociedades, e especialmente na sociedade da Alta Idade Média, o casamento é regido por dois poderes distintos, parcialmente conjugados, parcialmente concorrentes, por dois sistemas reguladores que nem sempre atuam em consonância, uma vez que um e outro pretendem aprisionar fortemente o casamento no direito e no cerimonial (Duby, 2001: 12)

Se a realidade demonstra a exploração e a submissão da mulher, até como uma maneira da igreja articular a dominação dos costumes, o amor cortês glorifica a figura feminina, transforma-a no bem supremo, e faz do homem um vassalo. A cortesia chega ao norte; os trovadores tentam incorporá-la às suas obras, influenciados pelos jograis e pressionados por suas protetoras. As regras do amor cortês, codificadas por André, o Capelão, (Apud Duby, 2001) pressupõem a necessidade de normalizar essa nova arte de amar. Na realidade, o amor cortês devolve à mulher seu aspecto ambíguo, no qual sagrado e profano não encontram limites.

Nos mitos e epopéias celtas, o amor-paixão é muito mais que um sentimento. Ele é o próprio destino do homem, do qual ninguém foge. O amor louco, a dádiva total de si mesmo, a oblação, os reinos do sonho, a sacralização do ser amado, tudo na cultura celta se encontra com riqueza de situações, temas, figuras e personagens. Nesta tradição, o amor está desvinculado da procriação e projeta os amantes, através da paixão, para uma realidade além do humano. O cristianismo tentou vencer esta fascinação erótica que o feminino concretiza nos rituais celtas e que conduz a uma verdadeira transcendência metafísica. O cristianismo tenta sustentar a idéia de ter sido a primeira religião a elevar a mulher, a arrancá-la da indignidade a que a tinha reduzido o paganismo. Apresenta como provas o culto mariano, a promoção do casamento a sacramento, o respeito devolvido às mães.

A literatura do maravilhoso, presente na matéria da Bretanha, ao narrar contatos humanos com o mundo sobrenatural, retorna e funde a apocalíptica judaico-cristã aos relatos celtas. O termo mirabilis é empregado nesta época de lenta alfabetização, de crença em milagres, entre a cultura erudita e o conhecimento popular. Toda sociedade segrega o maravilhoso, mas fascina-se com a memória dos mirabilia anteriores. O cristianismo criou pouco no domínio do maravilhoso, nos diz Jacques le Goff:

... porque havia essa presença e essa pressão de um maravilhoso anterior perante o qual o cristianismo devia pronunciar-se, tomar posição. O sobrenatural, o miraculoso, que são próprios do cristianismo, parecem-me de natureza e função diferentes das do maravilhoso mesmo tendo deixado a sua marca no maravilhoso cristão. Assim, o maravilhoso no cristianismo parece-me essencialmente encerrado nessas heranças - das quais encontramos elementos «maravilhosos» nas crenças, nos textos, na hagiografia. Na literatura, o maravilhoso é praticamente sempre de raízes pré-cristãs. (1994: 47)

A cultura cristã, a cultura popular, dominada pelo imaginário coletivo e as narrativas celtas importadas através da matéria da Bretanha, difundidas no norte e no sul da França, serão responsáveis pela explosão do maravilhoso, com a fusão dos três registros do sobrenatural: o pagão, mirabilis, com deuses e deusas, objetos mágicos, buscas e viagens ao Outro Mundo; o cristão, miraculosus, com ênfase nos milagres; o satânico, magicus, que engloba a magia e sua forma inferiorizada, a bruxaria. A mulher, nestas formas culturais, oscila entre a santa e a diabólica, visão de uma imagética que, infiltrada por séculos de crença, contamina laicos e religiosos. O encontro dessas culturas e o gosto pelo maravilhoso ensejam relatos fabulosos articulados com a presença de novos seres, as fadas. Termo derivado de fata, a fada corresponde à moira grega e às parcas romanas. Estas não possuem conotação erótica, mas a idéia de que são responsáveis pelo destino do homem vai ao encontro de memórias milenares. No século XII, o termo fada designa uma “divindade silvestre ligada a um culto da abundância e da fertilidade” (Franco Jr., 1995: 128).

Com a penetração da narrativa celta, proliferam histórias com mulheres fantásticas, belíssimas, que se apaixonam pelos mortais e para seduzi-los e dominá-los, utilizam poderes mágicos. Assim as descreve Maria Nazareth de Barros:

Eram figuras soberanas, encarnação das deusas, que envolviam os humanos através de seus charmes, seus jogos sensuais, seus filtros mágicos e os raptos que empreendiam para capturar o amado. (Barros, 2002: 279)

Figura mítica nova, nascida neste momento, embora estejamos lidando com mais uma das inúmeras hipóteses da memória ancestral ligada às imagens da Mãe-Terra, a fada dos lais lembra uma senhora feudal com sua corte e suas terras, mas sobretudo reconstitui miticamente uma ordem matriarcal arcaica, diante da patriarcal expressa pelos romances. Marie de France nos leva a um universo poético onde estes elementos maravilhosos se unem sem discordar do mundo aristocrático, meio natural de seus personagens. No momento de grande mudança histórica e cultural, a chamada renascença do século XII, Marie transgride valores culturais prevalecentes e funda novas idéias. Obcecada pela escrita, pela memória e pela tradição, Marie se apresenta consciente não somente de seu papel na preservação da memória cultural, mas também de sua atividade em transformar a escrita oriunda da tradição oral ao mesclar efeitos psicológicos, sociais e políticos. Os textos falam de histórias de amores, de solidão, de vingança. Maquinações, exílios forçados, afrontamentos se articulam em meio a um universo onde a mirabilia é a pedra de toque.

 

“MARIE AI NO SI SUI DE FRANCE
MEU NOME É MARIA E EU SOU DA FRANÇA”

Quase nada se sabe sobre a escritora francesa. Parece ter vivido na Inglaterra antes de se casar e morar na França. De qualquer maneira, os dois países assumem a sua pertença literária. Quanto a Marie, ela se apresenta “Marie ai no si sui de France”, o que significa dizer que meu nome é Maria e eu sou da França. Identificar sua linguagem tem sido uma tarefa desafiadora, uma vez que os manuscritos sobrevivem em diversos dialetos, tanto na Inglaterra quanto no Continente. O dialeto anglo-normando do francês antigo predomina nas classes superiores da Inglaterra de Henrique, embora o inglês permaneça a linguagem da população em geral. O inglês é conhecido por uma percentagem da aristocracia anglo-normanda na Inglaterra. Os novos contatos, o desenvolvimento da língua inglesa e da cultura, o amadurecimento do espírito nacional são dados importantes para permitir uma interpenetração de lendas, mitos, histórias e fábulas na França. Dessa maneira, desenvolve-se uma rica literatura nesses dois idiomas, produzida por escritores quase sempre nascidos na Inglaterra, mas que contribuem efetivamente no desenvolvimento das letras vernáculas nos períodos subseqüentes.

À Marie de France são atribuídas três obras, compostas entre 1160 e 1178: Fables, uma compilação de fábulas influenciadas pelos escritores clássicos, com a forma de um Ysopet, gênero bastante popular na época, O Espurgatoire Seint Patrice é uma tradução direta do latim, do Tractatus de Purgatorio Sancti Patricci, do monge cisterciense Henrique de Saltrey, e os Lais, pequenos contos.

Palavra de origem celta, o irlandês laid é um canto, uma composição curta para ser cantada ao som da rota, instrumento antigo de corda (Micha, 1994), e divulgadas por jograis oriundos da Bretanha. Com isso, Marie abre caminho para as narrativas escritas em ‘romance’, não mais em latim. Encontra as palavras adequadas, recolhendo com evidente maestria, o ambiente de fantasia e mistério, próprio das composições de origem e matéria bretãs, consentâneas com uma concepção amorosa geralmente baseada num idealismo de tipo quase religioso. Sabe opor os seus contos aos fabliaux realistas e cômicos que também aparecem no século XII. Narrando com clareza e paixão, combina o misticismo cristão com o mundo fantástico dos bretões, já por essa época povoado das aventuras de Tristão e Isolda, das reuniões em torno da Távola Redonda, da busca do Graal, da floresta de Brocéliande, da ilha de Avalon, do reino de Logres, de cavaleiros e reis, de fadas e gigantes. Enfim, toda uma ideologia de natureza cavalheiresca e cristã, que coincide com a intensificação do culto a Nossa Senhora e que se funde ao universo céltico das fadas, magos, aventuras fantásticas e rituais de fertilização das landes regionais.

Marie de France afirma sua consciência e vocação poética com coragem e entusiasmo no Prólogo, que atrai o interesse logo no início porque delineia uma teoria da criação literária no século XII, bem como a sua recepção.

Ki Deus ad duné escïence
E de parler bom eloquence
Ne s’em deit taisir ne celer,
Ainz se diet volunter mustrer

(Quem recebeu de Deus o conhecimento e o dom de falar com eloqüência não se deve calar nem se esconder; pelo contrário, deve estar pronto a aparecer). (Colasanti, 2002)

Com esses versos, Marie inicia o prólogo dos Lais, a obra por que é mais conhecida. Na realidade, ela não cria um gênero, mas o revitaliza, ao criar histórias em que as damas, quase sempre casadas com pessoas mais velhas, têm seus amantes, assistem missas e pedem a Deus pelos seus ‘amigos’; histórias onde aparece o cinto de castidade, como no Lais de “Guigemar”, que após anos encontra a sua bem-amada; a única que foi capaz de desfazer o nó da sua camisa e em quem encontrou o cinto de castidade que lhe havia posto ao se afastar para a guerra. Ou como em “Laüstic” (O Rouxinol), que deve ter inspirado o conto de Oscar Wilde quase setecentos anos depois: a mulher diz a seu marido que escuta o canto do rouxinol, quando na verdade fala com seu ‘amigo’. Ciumento, o marido mata o rouxinol e o entrega à mulher que, angustiada, envia o corpo do pássaro ao amado, que o guarda para sempre num cofre de ouro. Ou também como em ‘Eliduc’, em que a mulher do cavaleiro valoroso e cortês reanima a noiva que o seu marido trouxe de além-mar e se torna freira para lhe dar o lugar de esposa. São narrativas que expressam um poderoso amor pela vida, obras-primas da imaginação e da paixão em que a autora se impõe como mulher, de forma inteligente, sensível e às vezes, impiedosa. Seu trabalho consiste, pois, em pôr por escrito os lais já conhecidos oralmente.

Uma vez terminado o seu projeto, ela decide dedicá-lo ao rei Henrique II, o segundo marido de Alienor de Aquitaine, dando assim entrada, na literatura francesa, da tradição oral bretã, cantada pelos bardos e trovadores. Vivendo a sua infância na corte inglesa, Marie teve bastante contacto com estas lendas e histórias celtas, divulgadas oralmente, com características comuns ao folclore; dando polimento a essas narrativas e elevando estas criações populares espontâneas a um nível propriamente literário, ela inicia um novo gênero de narrativas poéticas. Na passagem da base folclórica para o nível de realização literária, a memória literária teve participação. É reconhecida a influência do Roman de Brut, do poeta Robert Wace (1155) e de exemplares do gênero ‘romances de Antigüidade’, adaptações medievais de obras clássicas, notadamente do “Romance de Enéas”.

Marie também mostra conhecer Ovídio no original e o cita explicitamente no lais “Guigemar”. O ‘Rouxinol’ e os ‘Dois Amantes’ revelam influência do episódio de Píramo e Tisbe, em que Ovídio, nas Metamorfoses [IV] narra como dois jovens, morando em casas vizinhas, se apaixonam e se comunicam através do muro divisório, embora lhes seja impossível o contato pessoal; quando morre o rapaz, segue-se a morte da jovem que não resiste à dor de encontrá-lo morto. Essa cena comovente também ocorre no final de histórias sobre Tristão e Isolda, reaparecendo no Romeu e Julieta de Shakespeare. Temas bíblicos também não faltam: “Equitain” faz lembrar o rei Davi atentando contra um súdito para tomar-lhe a mulher, e “Lanval” repete a acusação falsa da mulher de Putifar contra o servo do marido que não se deixara seduzir por ela. Ao rever a matéria da Bretanha com seu substrato pagão, Marie detém seu olhar sobre as estruturas mentais que definem a mulher celta, e sobre a proposta judaico-cristianizadora do comportamento feminino no cruzamento de caminhos da História.

Os lais de Marie estão codificados como um gênero literário e imortalizam o ato tradicional de contar histórias que formam a base dos Lais bretões medievais. Várias dessas histórias serão lidas por outros autores e adaptadas para diversas regiões inglesas no século XIV. A autora não somente explora assuntos sobre o comportamento cortês e as relações amorosas, mas também sobre a luta do individuo em realizar desejos pessoais quase sempre em conflito com as expectativas culturais. E Marie encontra dificuldades, escrevendo em pleno universo masculino caracterizador da época, uma vez que esta sociedade não aceita de bom grado que uma mulher penetre no domínio das letras. Sua decisão de escrever recebe críticas. Alexandre Micha (1994) aponta que por isso, Marie receia que se apoderem do seu trabalho e sempre repete expressamente o seu nome:

Il se pourrait que clercs plusiers
Prennet sur eux le mien labeur
oyez, Seigneurs qui dit Marie. (Guigemar)

Os doze Lais têm extensão variada, perfazendo um total de 5.876 versos. São eles “Guigemar”, “Equitain”, “Frene”, “Bisclavret”, “Lanval”, “Les deux amants”, “Yonec”, “Le laustic”, “Milon”, “Le chaitivel”, “Le chevrefeuille” e “Eliduc”. Marie apresenta um título às histórias, prática desconhecida na época. Dos doze lais, nove são nomeados a partir de seu personagem principal. E alguns são apresentados com o título em inglês e em linguagem celta. Título, época e verossimilhança são dados que ela se sente no dever de fornecer, a fim de garantir a veracidade de suas histórias em termos literários. Embora não tenha a intenção de moralizar, Marie transmite ensinamentos - la reisun:

D’un mut ancient lai bretun
La cunte etute la reisun
Vus dirai

Em seis dos lais, Marie esclarece que a ação se passa com bretões; isto quer dizer que, geograficamente, eles se situam na Grã-Bretanha, na Irlanda e na Armórica (Bretanha francesa). Em “Fresne” e “Deux Amants”, a ação decorre na Normandia, Saint-Malo e Nantes, numa região vizinha. São regiões cobertas de florestas e envolvidas em bruma, lugares assustadores e, ao mesmo tempo, atraentes. Uma atmosfera de mistério, de melancolia e de sonho invade o texto, convidando a imaginação a evadir-se para um mundo irreal, onde podemos entrever, por entre a bruma e o nevoeiro, castelos, capelas, planícies, colinas, florestas. Neste espaço, são articulados os personagens e seus conflitos, vivenciando profundamente sentimentos que os deixam a mercê da fatalidade, sempre dominante.

Quanto ao tempo, as aventuras mostram uma época imprecisa, antiga, igualmente propensa ao mistério, que segue a fórmula “era uma vez” dos contos infantis, dizendo de forma vaga: “li ancien Breton” - “ce fu costume as anciens”. Marie de France conta “maravilhas” que se passam num tempo e num espaço igualmente maravilhosos, épocas de fadas, monstros, espadas mágicas, criaturas sobrenaturais. É o tempo de jadis’, quando a magia oriunda dos celtas é uma prática fundamental e importante. Não devemos tomar a magia em seu sentido pejorativo dado pela tradição cristã. Buscando sua memória, sabemos que ela tem um sentido de uma arte ou ciência oculta que, através de ritos executados por pessoas de conhecimento, trazem benefícios ao homem. Este é o real sentido da magia que reside na compreensão e entendimento das forças da natureza; é uma ligação entre o visível e o invisível, parte de uma sabedoria antiga e mantida através dos iniciados.

Marie canta um amor obsessivo, dominador e fatal, bem diferente do amor provençal. Ora é feliz, ora infeliz. “Amour n’est bien s’il n’est égal”, diz Equitain. É principalmente, um amor total, do corpo e do espírito, a que tanto a mulher casada quanto a jovem solteira tem direito. Na realidade, é freqüente ser a mulher a primeira a propor a realização do amor, como em “Guigemar”, “Lanval” e “Eliduc”. Sempre que o marido é ciumento e maltrata a mulher, Marie admite o adultério; a “malmaridada”, tem direito a uma recompensa, como “Yonec” e “Laostic”.

O amor dos lais não é sempre cortês. A cortesia nórdica não corresponde à cortesia dos provençais. O amor celta é mais realista; aceita-se e vive-se sem complexos de culpabilidade, mesmo que se aceite o adultério. É uma fatalidade que se desenrola numa atmosfera de fantástico. Os apaixonados são vítimas de um destino e nada podem contra isto. Entre as narrações tendo o amor como tema, o lai ocupa uma posição intermediária entre a balada e o romance. O romance é uma composição ampla, cujo ponto de focalização é a transformação psicológica dos heróis, enquanto que a matéria narrativa é uma ficção do autor, mesmo se este parta de diversos dados mitológicos ou folclóricos. Em relação com o romance, os personagens dos lais não são suficientemente individualizados, e o interesse principal se dirige, como depois nos fabliaux e nas novelas, para a estranheza da aventura.

 

COMENTÁRIOS FINAIS

Os acontecimentos passados deixam dois tipos de rastros: uns, chamados 'mnésicos', na mente dos seres humanos; os outros no mundo, sob a forma de fatos materiais: uma marca, um vestígio, uma carta, um decreto (as palavras também são fatos). Esses diferentes rastros possuem vários traços em comum, não produto de uma decisão voluntária, mas do acaso ou de pulsões inconscientes na mente do indivíduo. Observadas as duas primeiras fases do trabalho de rememoração, impõe-se outra conclusão: a de que a memória não se opõe absolutamente ao esquecimento. Os dois termos que formam contraste são a supressão (o esquecimento) e a conservação; a memória é, sempre e necessariamente, uma interação dos dois.

Marie de France atualiza os dois sentidos da memória ao construir sua imortalidade como escritora; articula imagens, omite certos acontecimentos, retém outros, deformando ou acomodando outros ainda. Alimenta seu trabalho com vestígios materiais da cultura de seu tempo. Busca no passado recente, exemplos suscetíveis para legitimar sua época. Faz quase um trabalho histórico, quando reinstala memórias do passado, que coexistem com o seu próprio momento. Já que a memória é seleção, Marie encontra critérios para escolher entre as informações recebidas, as mais salientes e significativas na busca de sua verdade, e esses critérios, sejam ou não conscientes, também servirão, segundo toda verossimilhança, para orientar a utilização futura dos dados coletados por ela.

Mas, muito mais do que apenas rever o passado e reativar o presente, Marie utiliza a memória do maravilhoso, no que este traz aos homens de consolação. Nos contos maravilhosos, os pobres se tornam ricos, os infelizes acabam por conhecer a felicidade. O universo maravilhoso é uma compensação ao imaginário, como uma revanche contra as tristezas da realidade. Nos lais, tudo se torna possível, os sonhos se realizam, os obstáculos materiais se encontram magicamente suprimidos, os limites do espaço e do tempo são abolidos. Os limites da condição humana desaparecem.

Ao elevar o lais a gênero literário, Marie tem um lugar importante na divulgação da matéria de Bretanha. Os valores celtas, não somente incitam a força criadora, como fornecem um espírito novo, misto de maravilhosos e realismo que tempera a cortesia provençal requintada, fazendo surgir a cortesia romanesca. Seu principal mérito é dar à memória, à tradição, um sentido novo, abolindo barreiras entre o mundo celta e o mundo europeu, entre o mundo de sonho e um mundo de realidade. Maria ecoa sua voz das bordas limítrofes, falando da e pela mulher, fazendo suas escolhas, principalmente sobre a quem amar, sofrer por amor ou sentir prazer no amor porque esta é uma escolha própria da mulher com voz para atuar e ativar seu destino, seja viver o amor aqui neste mundo ou no outro.

O valor de Marie como poeta e escritora, mesmo com toda a tradição de marginalizar a mulher, é o fato de ela ter sido capaz de criar uma das mais significantes contribuições ao século XII, o discurso do desejo, contado e recontado, diversas vezes.

 

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