Lembranças de um intelectual:
imagens do feminino na obra de lima barreto

Natália Cruz Frickmann (UERJ)
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo (UERJ e UESO)

 

O caráter militante da literatura de Lima Barreto é, de certa forma, incontestável; não passa despercebida a função crítica de seus textos, assim como a preocupação em expor as muitas nuanças da realidade de seu tempo. Seus escritos autobiográficos não evidenciam propósito diverso, senão dialogam com toda a sua obra. No entanto, seus registros propõem antes imagens que uma narração linear dos fatos, rogando uma forma de articulação igualmente descontínua para uma melhor apreensão. Sob essa perspectiva, o presente estudo pretende resgatar aspectos da cultura brasileira apreendidos pelo intelectual artista pertinentes à identidade feminina, explorando as possibilidades de correlação oferecidas pelo dinamismo próprio do processo de rememoração.

Os escritos memorialísticos de Lima Barreto encontram-se na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, sob a forma de cadernos, tiras e folhas soltas, e neles estão reunidos esboços de romances, recortes de jornais e revistas, anotações pessoais e funcionais, e outras notas de cunho diverso. Publicados parcialmente sob o título de Diário Íntimo[1], tais registros se apresentam como fragmentos em diferentes âmbitos de análise. Se mesmo a forma material é tal, o conteúdo também o é, na medida em que as notas, em sua maioria, não permitem um encadeamento cronológico e/ou de narração contínua dos fatos, além de possuírem amplo alcance temático. Ademais, encontram-se trechos típicos do gênero autobiográfico em sua variedade, isto é, as notas caracterizam por vezes um diário íntimo, um journal, uma autobiografia, memórias, e mesmo crônicas, enquanto relatos de microcomportamentos. Logo se percebe ausente, no modo de criação, a preocupação com um arranjo seqüencial dos fatos. São Retalhos, como denominou o próprio autor. Como pequenos pedaços de um mosaico, as notas formam quadros expressivos, denunciando através de imagens a realidade do Brasil nas primeiras décadas do século XX.

No entanto, supor os Retalhos um conjunto de idéias reunidas ao acaso implica ignorar qualquer disposição que não seja aquela segundo os tradicionais critérios da sucessividade cronológica, das grandes narrativas. Ademais, o escritor expõe em sua obra, não somente uma vez, um hábito de pesquisa e observação crítica com método próprio:

“Ontem passei o dia em casa. Um dia bom. Folheei os meus livros, cortei os artigos dos jornais franceses e preguei-os de encontro à lídima prosa de rui Barbosa.” (Diário Íntimo, pp. 84)

“Domingo, passei-o em casa. Cortando artigos do Figaro do ano passado...” (Diário Íntimo, pp. 86)

“Mesmo nos jornais nada tenho lido que me provoque assinalar, mas como entretanto eu queria ter um registro de pequenas, grandes, mínimas idéias, vou cotinuá-lo diariamente.” (Diário Íntimo, pp. 99)

Trata-se, portanto, de um trabalho de seleção que, a partir da escolha do que lembrar, revela temas e idéias. Logo, os fragmentos se comunicam por meio de associações de similaridade ou contigüidade, obedecendo a um mecanismo que é próprio da memória. Como Ecléa Bosi explica Bergson (Bosi, 1987: 5-29), um único objeto de percepção suscita aspectos simultâneos no sujeito que lembra, de maneira que uma imagem inicial toca outras imagens, formando com elas vastos sistemas. A partir dessa associação ao processo de rememoração, os Retalhos apontam, de maneira análoga aos sistemas que se formam com a recordação, roteiros de leitura possíveis. Dessa forma, os fragmentos aproximam-se e se afastam, complementam-se e se confrontam, permitindo a reflexão.

A exemplo da questão da mulher, muitos são os retalhos que abordam essa temática. No entanto, é o diálogo entre as observações que viabilizam uma verdadeira leitura tanto do colecionador como da realidade por ele questionada. Isso porque, se tomados os registros singularmente, ou mesmo segundo o arranjo cronológico da obra publicada, impressões generalizantes ou mesmo equivocadas podem confundir o leitor. Considerando o exposto, as reflexões em relação à situação da mulher nas primeiras décadas de XX, tornam-se ainda mais instigantes, na medida em que a sutileza das observações convida à pesquisa.

Deparamo-nos com passagens quase imperceptíveis, como a seguinte: “Hoje observei uma mulata que parecia amigada a um português; viajavam no bonde separados.” (Lima Barreto, 1956: XIV: 47)

Em contrapartida, encontramos uma observação que se prolonga por cerca de 3 páginas, detalhando impressões que a prostituição lhe suscita por meio da doce Cecília:

Quando saio de sua casa, depois de sua ingenuidade, depois de sentir que a prostituição lhe roçou de leve, posso dizer(..): fico contente em ver que a nossa humanidade é melhor. Sinto por ela que há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa humana, e que raramente ele se desagrega, mesmo sob o império das mais baixas degradações por que possamos passar.

Essa rapariga, que viu bordéis, ladrões, estelionatários, rufiões e jogadores; que se meteu em orgias; que certamente se atirou a desvios da sexualidade, aparece-me cândida, ingênua e até piedosa. (Lima Barreto, 1956: XIV: 127)

Tais trechos evidenciam, como pontua Nicolau Sevcenko, “uma sensibilidade muito aguda” do escritor em relação ao fácil alvo que é a prostituição, percebendo “no interior da sociedade o variado conjunto de processos encadeados”, sempre tendentes a “constringir o pensamento dos homens, tolhendo-lhes os meios para um desenvolvimento equilibrado da personalidade e a justa inserção social.” (Sevcenko, 1985: 169) Sobretudo porque, à Primeira República, a prostituta era a “pecadora diabólica” (Rago, 1985: 82), criminosa, contraposta ao ideal burguês da “esposa-dona-de-casa-mãe-de-família”, à imagem da Virgem Maria.

Tal visão polarizada entre as figuras femininas da “moça de bem” e da “mulher pública”, bem exemplificam o discurso burguês predominante desde os meados do século XIX, que impunha um novo modelo normativo de mulher. A ela é designado um papel fundamental para o alcance do progresso, o tão desejado progresso, tornando-se a “vigilante do lar” (Rago, 1985: 63), toda abnegação em função do marido e filhos. Num país periférico como o Brasil, os valores da “família nuclear moderna” tomam formas intrigantes na realidade concreta. Para as mulheres de camada mais pobre, a imagem da mãe sacrifício, do sexo frágil, é adaptada às necessidades do dia-a-dia na luta pela sobrevivência.

Um conto que bem discute a questão da prostituição, enquanto conseqüência da miséria econômica aliada ao ideal feminino burguês é aquele de título “Na Janela”, no volume Histórias e Sonhos. De forma encantadora, Lima Barreto expõe, nesse conto, seres humanos, que possuem desejos, medos e falhas, escondidos pelo símbolo de monstruosidade que era atribuído a “mulher da vida”. O conto relata a conversa de duas mulheres públicas, à janela, revelando seus desejos e sonhos em relação ao amor, como simples moças que foram, e também suas lamentações quanto às suas escolhas erradas. O “cristal de pureza inalterável”, apontado pelo intelectual nos fragmentos do Diário Íntimo acima citados, a humanidade enfim, dessas pobres mulheres, e de tantas outras, é profundamente sentida por Lima Barreto, que assim finaliza o conto: “Nos elétricos que passavam, os passageiros que olhavam aquelas duas mulheres com olhares cheios de desejos não seriam capazes de adivinhar a inocência de sua conversa, na janela de uma casa suspeita.” (Lima Barreto, 1956: VI: 244)

Qual seria a história dessas duas mulheres que conversam à janela? Apontando alguns aspectos, e silenciando outros a permitir a reflexão, a personagem explica, questionando a sua “sorte”:

- Meu marido foi assim. No tempo de noivo, nem sabia falar quando estava perto de mim; olhava-me só e o seu olhar parecia que me vestia, que me beijava, que me ameigava... Meses depois de casada, deixou-me só, sem dinheiro, sem destino, sem parentes, nesta cidade tão grande... (Lima Barreto, 1956: VI: 242)

O abandono de mulheres por seus maridos seria discutido em muitos outros contos e crônicas do escritor, como em “Uma Conversa Vulgar”, ou ainda em “A Mulher do Anacleto”, por exemplo. Tratava-se de uma típica situação observada pelo artista, que denunciava as diferentes posturas de homem e mulher em relação ao casamento. A mulher, a quem era reservada a esfera privada da vida doméstica, aprendia a ser passiva, dócil e romântica, para realizar no casamento, fim certo da vida de uma moça, as suas atribuições naturais de mãe e esposa. O homem era naturalmente racional, desejoso de liberdade, capaz de tomar iniciativas; e, assim, não receava em abandonar mulher e filhos por uma nova união que lhe fosse mais lucrativa e respeitável. Afinal, a República era dos “cavadores”. De qualquer forma, o autor confronta, nesse simples aspecto, a idéia de que a prostituta, assim como os criminosos, eram anormais, discurso fundamentado pelo cientificismo, em seu ápice entre os então intelectuais brasileiros. Eis que, ao invés da conveniente figura da mulher preguiçosa e egoísta, que vive em função da satisfação de seus desejos libidinosos e devassos, surge a moça correta, apaixonada, que se casou (!), e foi abandonada.

A realidade de Mercedes, nome pelo qual responde tal personagem, é a mesma de todas as moças que não pertenciam à diminuta classe abastada da sociedade brasileira. Com padrões morais mais flexíveis, mas uma mesma função social imposta, a adequação da moça pobre ao estereótipo da “moça direita”, que deve casar-se e constituir família, não modificava a sua condição marginalizada, tampouco a afastava dos caminhos tortuosos da prostituição. As figuras antitéticas da meretriz, depravada e diabólica, e da esposa, honesta e casta, surgem próximas e confusas na realidade concreta dessas mulheres.

O modelo de feminilidade de então traduzia os valores modernos, burgueses e europeus ocidentais, reduzindo a condição feminina à situação da mulher de classe dominante, como se tal fosse comum à todas. E se às moças de famílias ricas, a escassa instrução oferecida era aquela voltada para a esfera privada do lar, ou para assegurar um bom casamento, as possibilidades das jovens de classe mais baixa eram ainda menores. O destino profissional era o de professora primária e enfermeira, no caso daquelas com acesso a alguma instrução, ou domésticas, operárias, costureiras, datilógrafas e telefonistas, no caso das camadas mais baixas. Ainda assim, o trabalho representava a antítese do lar; o discurso científico reforçava a representação simbólica feminina, que exaltava os valores burgueses da laboriosidade, da castidade e do esforço individual, apontando o instinto natural materno e sua responsabilidade na sociedade como justificativas naturais que a conduzem às tarefas domésticas no papel de “guardiã do lar”. Dessa forma, ao passo que o novo cenário urbano solicitava a presença da mulher na esfera pública do trabalho e da vida social, a sociedade burguesa condenava-a, incutindo-lhe o sentimento de culpa diante do abandono do lar.

A desqualificação profissional da mulher seria mais um aspecto a corroborar a idéia de dependência e submissão da mesma em relação ao homem, fortalecendo a relação paternalista de subordinação da mulher, em ambos espaços doméstico e profissional. Identificar-se com a própria condição feminina, significava reconhecer a necessidade da figura masculina protetora. Forja-se um modelo simbólico tão forte no imaginário da classe baixa, que mesmo aquelas que provinham o sustento da família, através de tarefas domésticas como as de lavadeiras ou engomadeiras, acreditam-se dependentes do marido. Assim é que, encarnando o papel que lhe é atribuído pela sociedade, as muitas “Mercedes” abandonadas por seus companheiros viam-se em situação irremediável, e rendiam-se à prostituição. No entanto, o saber médico e criminológico da época, como o de Parent-Duchâtelet e Cesare Lombroso, sustentava a idéia da mulher pública como símbolo da perdição e monstruosidade, classificando o meretrício tal qual o crime, como vício e anormalidade biologicamente determinados. Não somente o próprio modelo de feminilidade, como também a miséria e a educação deficiente, era ignorado em favor da conveniente autoridade científica.

Outro aspecto que o conto permite ponderar, através da segunda personagem feminina, é a contribuição da literatura romântica na realidade conflitante da mulher de classe baixa. Mesmo no imaginário das moças ricas, cujo destino certo era o casamento conforme os interesses de suas famílias, as histórias românticas de amores triunfantes incutiam idéias fantásticas, distantes da noção desejada do amor conseqüência da vida em comum. Como os padrões de moralidade eram mais flexíveis entre os menos abastados, os romances de desejos apaixonados e fervorosas declarações de amor tomam feições concretas e graves na realidade das moças mais pobres. É o que percebemos nas confidências dessa segunda personagem à Mercedes que, relatando os muitos namoros, confessa: “Não sabia resistir... Eles choravam, juravam... e eu namorava quase ao mesmo tempo.” (Lima Barreto, 1956: VI: 243)

As expectativas confusas de uma jovem que busca o amor sonhado e o marido necessário, desavisada dos perigos da sua realidade, tornaram-na presa fácil dos tortuosos caminhos da vida. A educação voltada para o casamento, para a vida doméstica, que tanto incomodava Lima Barreto, é também causa daquilo que condena, porque aliena. Se o escritor já contesta tal posicionamento através da questão do abandono do “lar”, novamente o questiona no relato da confidente de Mercedes. O silêncio de uma passagem sutil aborda uma conseqüência comum de tal educação alienante: “No outro ano, em dia de festa da mesma casa, já não pude ir lá mais; tinha vindo a tal encrenca... corpo de delicto... Você sabe... Não deu em nada; ou antes: deu “nisto”. (Lima Barreto, 1956: VI: 243)

O conto não esclarece a “encrenca” que a personagem menciona; talvez, porque nem necessário fosse. A gravidez indesejada, fruto da inocente ilusão de jovens que se entregavam a adoradores apaixonados, acreditando na promessa de casamento e de amor incondicional, não era fato excepcional – e ainda hoje, não é. Consternava o escritor perceber tal situação, que ele discute explicitamente em “Clara dos Anjos”, e tantas vezes aborda no “Diário Íntimo”. Considerando tais aspectos, pode-se supor que a menina alegou ser vítima de um estupro, ocasião em que se dava o humilhante exame de corpo de delito, ou ainda, tenha provocado um aborto, na esperança frustrada de não ser condenada socialmente – situação bem ilustrada pelo próprio escritor, em seu artigo “A Lei”, no volume Vida Urbana. No tempo presente do conto, é a mulher madura, castigada pela vida, que relembra as escolhas que a levaram até ali.

Se ponderada a postura das personagens, a reflexão aprofunda o questionamento. Ambas parecem se reconhecer como responsáveis pela própria sorte. Mercedes se culpa pelo casamento fracassado: “Bem fez você que não se casou!” (Lima Barreto, 1956: VI: 242), exclama. Sua companheira, por sua vez, conclui assertivamente: “Fui assim: pediam-me beijos, abraços, cabelos; e eu dava por pena, unicamente. Se eu tivesse sido mais sovina, não estava ‘nesta vida’...” (Lima Barreto, 1956: VI: 243)

A representação feminina burguesa, da esposa-dona-de-casa-mãe-de-família, revela-se de tal forma arraigada no imaginário da população, que as próprias mulheres se identificam e ratificam o modelo de comportamento. É interessante e apropriado citar um trecho do belo artigo “Os Uxoricidas e a Sociedade Brasileira”, do volume Bagatelas, de Lima Barreto. O artigo apresenta uma profunda e sensível reflexão sobre a questão dos “matadores de mulheres”, que muito preocupava o escritor. Cabe aqui, entre muitas passagens consideráveis, a seguinte:

Vão já muitos anos que eu, de calaçaria com Ari Foom, já falecido, fomos ao necrotério visitar o cadáver de uma rapariga do conhecimento daquele meu infeliz camarada, cujo maquereau, “por motivos de encontro de contas”, conforme se suspeitou, a tinha assassinado e se suicidado em seguida, no interior de uma casa da Rua de Sant’Ana.

O necrotério era no Largo da Batalha, e, ao redor, havia um poviléu de lavadeiras, cozinheiras, de desgraçadas raparigas na mais ínfima degradação social, etc.etc. Pois bem: dos grupos de raparigas dessa natureza, só se ouvia a condenação da rôdeuse assassinada que elas julgavam casada com o seu assassino, e isto em termos bem duros e crus, mas que eu posso pôr aqui em mais corteses: ‘Bem feito! Por que foi enganar o marido?’

Este fato muito me surpreendeu, a ponto de tomar dele notas mais desenvolvidas que ainda tenho nos meus papéis. (Lima Barreto, 1956: IX: 171)

Para além de críticas ao modelo feminino moderno e à educação dada as mulheres, o conto “Na Janela” questiona e denuncia o efeito concreto dessas convenções na realidade brasileira. Através de uma conversa inocente, estigmatizada por uma janela suspeita, o conto apresenta suas personagens antes como humanas que prostitutas. Pensar no ser humano e nas condições de vida à ele impostas, ao invés de julgar a criminosa nata, preguiçosa, egoísta e depravada, significa pensar o discurso normativo feminino, e logo perceber que esse se revela apenas mais um a forjar justificativas para uma realidade de exclusão social.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, E. Memória-sonho e memória-trabalho. In Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2ª ed. São Paulo: T. A. Queiroz; EDUSP, 1987, p. 5-29.

LIMA BARRETO, A. H. de. Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense, 1956.

RAGO, M. Do Cabaré ao Lar: a utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

SEVCENKO, N. Literatura Como Missão. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.

SOIHET, R. Condição Feminina e Formas de Violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

 


 


 

[1] Sob a organização de Francisco de Assis Barbosa, pela editora Brasiliense, em 1956.