MATTOS, MALTA OU MATTA?
O POLICIAL EM ALUÍSIO AZEVEDO

Patrícia Alves Carvalho (UERJ)

 

Embora o lugar reservado a Aluísio Azevedo nos quadros da literatura brasileira o reduza a autor exclusivamente naturalista, ele escreveu em várias direções, apresentando diferentes estéticas na sua produção literária. Além das obras que permanecem como marcos do Naturalismo literário – O mulato (1881), Casa de pensão (1884) e O cortiço (1890) – e configuram a vertente canônica de sua obra, escreveu também um romance romântico, Uma lágrima de mulher (1880), vários romances-folhetins, comédias, peças de teatro, operetas, crônicas, contos – dentre eles, um fantástico – e uma novela policial. Como se pode constatar, através de sua eclética produção, a condição de Aluísio é, sem dúvida, de escritor múltiplo, de habilidades e estilos plurais. Cabe-nos aqui destacar e discutir uma vertente estética da obra de Aluísio Azevedo relegada pela crítica e em geral pouco conhecida: a narrativa policial.

O autor tem em sua produção alguns romances escritos “ao correr da pena”, isto é, escritos dia a dia, para folhetins, que satisfaziam um público ávido por obras repletas de aventuras fantasiosas e sentimentais e lhe garantiam a sobrevivência, assegurando-lhe as necessidades de ordem econômica. Este espaço do jornal, reconhecidamente de liberdade e de desordem, onde o escritor se sentia livre de compromisso, também pode, por estas mesmas razões, representar o espaço da brincadeira, da escrita lúdica e da ficção “descompromissada”.

Dentre as obras que o próprio autor considera como compostas “ao correr da pena”, encontramos a labiríntica novela policial Mattos, Malta ou Matta? (1885). Inspirada em uma notícia de jornal envolvendo troca de cadáveres, que mobilizou a imprensa e a polícia carioca em fins de 1884, esta novela pode ser considerada a primeira narrativa policial da literatura brasileira. Assim, alguns folhetins de Aluísio Azevedo, como Memórias de um condenado e Mistérios da Tijuca[1], ambos de 1882, podem ser lidos como embriões do romance policial no Brasil (Cf. Goldberg, 2004). Não pretendemos com isso conceder importância demasiada às circunstâncias de produção desses textos, mas tão-somente destacar a presença dos elementos policias neles. É curioso e surpreendente constatar que um escritor visto como essencialmente realista/naturalista tenha produzido literatura policial e que esta produção tenha sido negligenciada pela crítica, por tanto tempo.

Nos folhetins Memórias de um condenado e Mistérios da Tijuca, temos o pastiche dos romances açucarados, frutos da obrigatoriedade de se vender jornal e da expectativa de um público que ansiava pela confirmação dos valores da sociedade vigente. Inflacionados de clichês, os folhetins se servem do recurso epistolar, reiterando velhas fórmulas repletas de vinganças, punhais, estados febris, acentuados por uma pontuação expressiva (reticências, pontos de interrogação, etc.) e expressões exageradas. Destacam-se também os títulos dos capítulos, que aumentam o suspense, bem como os recursos teatrais e a presença de elementos que evocam o mistério. Nesses folhetins, assim como em Mattos, Malta ou Matta?, os ingredientes propriamente folhetinescos se mesclam a caracteres comuns das narrativas policias.

Faremos agora breves considerações sobre Memórias de um condenado e Mistérios da Tijuca, procurando ressaltar o surgimento dos primeiros traços da narrativa policial, para em seguida discutir o caráter policial de Mattos, Malta ou Matta?.

Memórias de um condenado foi editado em livro pela Garnier, em 1886, mas sua primeira publicação se deu no rodapé de A Gazetinha, em 1882. Nesse primeiro folhetim de Aluísio Azevedo, assim como observamos em Mattos, Malta ou Matta,?, o narrador, também personagem da trama, é um romancista. Gabriel, um homem condenado, envia uma carta acompanhada de um manuscrito que registra suas peripécias para o narrador/autor, solicitando que sua história seja romanceada. O romancista, então, dá início à narrativa da vida de Gabriel. Como se sabe, a vítima, o criminoso e o detetive constituem-se como os elementos fundamentais da narrativa policial (Boileau & Narcejac, 1991). Todavia, além da presença desses elementos, é preciso uma determinada forma de articular a narrativa, de construir a relação do detetive com o crime e com a narração. Como num jogo de xadrez, essas peças podem ser colocadas de modo diferente sobre o tabuleiro, permitindo múltiplas combinações. Em Memórias de um condenado, temos a vítima (condessa Vésper) e o criminoso (Gabriel), reservando-se para o próprio o leitor, como freqüentemente observamos na modernidade, a função de detetive da trama. No início do romance, o leitor já é informado de que houve um crime, tomando conhecimento da identidade da vítima e do assassino, bem como do motivo para o crime: "Sei que sou criminoso e mereço castigo — matei e não me arrependo de haver matado; matei porque amava loucamente, porque sacrifiquei alma, coração e riqueza a uma mulher indigna e má” (Azevedo, 2005: 1139). A busca incessante do elo entre as histórias de Gabriel e da condessa Vésper, da verdade dos fatos, ou seja, da resolução do enigma caracteriza o embate típico do romance, policial entre a razão e o mistério.

Ainda em 1882, Aluísio publica no jornal Folha Nova o folhetim Mistérios da Tijuca (clara alusão ao folhetim francês Os Mistérios de Paris, de Eugène Sue, que fizera enorme sucesso no Brasil), editado em livro ainda no mesmo ano. Aqui os artifícios folhetinescos melodramáticos são evidentes e, novamente, se misturam aos elementos da narrativa policial. Gregório, noivo de Clorinda, desaparece misteriosamente no dia do seu casamento e passa a ser o principal suspeito de um crime. Os três elementos básicos da narrativa policial também se apresentam em Mistérios da Tijuca: há um crime, do qual o protagonista é o suspeito imediato, uma vítima e um detetive, o chefe de polícia. O leitor, diferentemente do que se observa em Memórias de um condenado, sabe mais que o Dr. Ludgero, o detetive do caso, pois é previamente informado pelo narrador de que Gregório não é o responsável pelo crime e que, na verdade, ele havia sido raptado pelo tio, que acreditava que o casamento selaria um incesto. O enigma sobre a identidade do verdadeiro assassino permeia toda narrativa, até que, no final, tudo se esclarece. Vítima de grande humilhação, Gregório se suicida, mas não sem antes ter provado sua inocência e descobrir que Clorinda não era sua irmã. Como em Memórias de um condenado, a busca da verdade norteia o romance.

A ficção policial pode ter sido para Aluísio uma forma de preparar o público para os romances realistas/naturalistas. Parece-nos pertinente ressaltar que a reprodução objetiva e fiel da realidade, a busca da verdade absoluta é um dos pressupostos do Naturalismo literário, do qual Aluísio foi o cultor no Brasil, como é bem sabido. Em evidência no século XIX, o Positivismo não só influenciou fortemente a literatura naturalista, como também desempenhou importante papel na difusão do romance policial, sendo decisivo, por exemplo, na proposta literária de Edgar Allan Poe e na criação do detetive Dupin, prodigiosa máquina de pensar.

Em Casa de Pensão, publicado no jornal Folha Nova, em 1883, Aluísio se serve, como veremos em Mattos, Malta ou Matta?, de um conhecido fait divers[2] da época. Trata-se do “Caso Capistrano”, que ocupou as notícias de jornal nos anos de 1886 e 1887. Neste evento real, Capistrano, hóspede de uma casa de pensão, é acusado de violentar Júlia, a filha da dona do estabelecimento, com quem mantinha acalorada ligação amorosa. Diante da obrigação de se casar, Capistrano foge. A família abre um processo criminal; o rapaz, contudo, é declarado inocente. A fim de vingar a honra da irmã, Antônio assassina Capistrano com cinco tiros. Novo processo é aberto e o vingador é igualmente inocentado. Como claramente se observa, é inegável a semelhança do fait divers com o romance naturalista de Aluísio. Assim como em Mattos, Malta ou Matta?, a notícia de um crime é tomada como matéria ficcional. Lembramos que tal procedimento era freqüentemente adotado pelos escritores franceses. Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert, e Le Rouge et le Noir (1830), de Stendhal, são exemplos de romances elaborados a partir de famosos fait divers.

Trataremos, então, de Mattos, Malta ou Matta?, conhecendo primeiramente o fato jornalístico que deu origem ao romance. Em 18 de novembro de 1884, o Jornal do Comércio publica a notícia da prisão de conhecidos desordeiros da Praça da Constituição: “Desordeiros – foram presos anteontem, por perturbarem o sossego público, os seguintes indivíduos, João Alves Castro Malta e Antônio Andrade” (Doyle, 1985: 15). O fato corriqueiro teria passado despercebido, se alguns dias depois os jornais diários não tivessem quase todos publicado, na secção de obituários, a notícia sobre o sepultamento de João Alves Castro Mattos, no cemitério de São Francisco Xavier, no dia vinte do mesmo mês. A ambigüidade da identidade dos indivíduos envolvidos gerou suspeita, dando início à querela entre a polícia e a imprensa do Rio de Janeiro, que por mais de um mês preencheu as páginas dos jornais locais, culminando com a demissão do chefe de polícia da corte.

Em 26 de novembro do mesmo ano, O País, de Quintino Bocaiúva (que entra em cena na narrativa de Mattos, Malta ou Matta? como personagem real), publicou na primeira página um post-scriptum, onde um jornalista, questionando o destino dado a João Alves Castro Malta pela polícia, exigia a exumação do cadáver. Amigos de Castro Malta acreditavam que o homem morto e enterrado como Castro Mattos fosse, na verdade, Castro Malta. O nome teria sido trocado para encobrir o crime cometido pela polícia. Nos trechos que seguem, de História da Polícia no Rio de Janeiro, encontramos registros de tal episódio.

[...] O médico legista declarou que Malta tinha falecido de uma congestão hepática. No dia seguinte, os jornais publicavam no obituário o falecimento de João Alves de Costa Mattos, engano de quem registrou o óbito, que devia ter escrito João Alves de Castro Malta. Nasceu deste engano todo o barulho.

Os jornais disseram que aquilo não tinha sido engano e sim fato propositado para esconder a culpabilidade da polícia, que tinha no xadrez morto a pauladas o pobre homem. (Barreto & Lima apud Mérian, 1988:411).

Os grandes jornais cariocas, como o Jornal do Comércio, a Gazeta de notícias, a Gazeta da Tarde, O Brazil, a Pátria, O Apóstolo, a Gazeta Universal, exigiam, junto com O País, a exumação do corpo. A polícia terminou por realizar a exumação, mas o corpo de Castro Malta, sepultado na cova rasa número 143, não foi encontrado. As covas 142 e 144 também foram abertas, sendo trinta e um cadáveres, no total, exumados. O macabro episódio, acompanhado por grande público, perdurou por todo o dia, adentrando a noite. Depois de muitas horas, o médico legista, doutor Autran, que assinou o óbito, reconheceu o corpo de Malta. Concluída a autópsia, os peritos reconheceram que aquele corpo era de um homem de quarenta anos (Malta teria 30 anos), que havia morrido de uma pleurisia supurada. A polêmica sobre o paradeiro do corpo de Castro Malta parecia não ter fim, a ponto de a Academia Imperial de Medicina nomear uma comissão de seus ilustres membros para estudar o caso.

A situação piorou quando a Santa Casa da Misericórdia informou que atendera, havia dez anos, um homem vítima de uma fratura do úmero que se chamava Castro Malta. Trinta e três dias depois do sepultamento, nova exumação foi ordenada. O povo, sob o forte sol de dezembro, assistia curioso e inquieto à nova diligência. As autoridades constataram que a terra estava fofa e desagregada, “dando mostras de ter sido violada recentemente, uma vez que já se passara muito tempo da primeira diligência; lavrou-se um auto de constatação desse fato” (Doyle, 1985: 24). A Comissão responsável pelo caso expôs, nas vitrines da Casa Lammert, na Rua do Ouvidor, vários ossos serrados (úmeros) da possível vítima, como prova de sua apuração. Depois de muitas especulações, o chefe de polícia, que por irônica coincidência chamava-se Tito Mattos, foi demitido, e o caso, por falta de provas, foi arquivado, permanecendo sem solução. A identidade do morto não foi revelada e seu cadáver nunca foi encontrado.

O episódio inspirou a novela policial Mattos, Malta ou Matta?, produção literária autenticamente carioca, que tem como cenário o Rio de Janeiro imperial, e parece refletir o cotidiano da cidade.

Em 3 de janeiro de 1885, em seu número inaugural, a revista literária A Semana, fundada por Valentim Magalhães, publica a primeira de uma série de nove cartas sob o título de Mattos, Malta ou Matta?, de autoria de um suposto leitor, cujo nome, por delicadeza, não seria revelado. Após a nona carta, o recurso epistolar, típico do folhetim, é posto de lado, e a publicação, no capítulo X, ainda sem oferecer nenhuma pista sobre a autoria, ganha o título de Romance ao correr da pena.

De um cavalheiro cujo nome ocultamos, não só a seu pedido, como porque seria imprudente e talvez mesmo perigoso revelá-lo, recebemos uma importantíssima carta, a que damos publicidade porque o seu assunto se prende intimamente à gravíssima questão – Castro Malta (Azevedo, 2005: 907).

Embora a intenção fosse convencer o público da veracidade do informante, na verdade “as cartas redigidas à redação não podiam enganar senão um leitor muito ingênuo, de tal forma era transparente o tom humorístico” (Eulálio, 1885: 162).

Na leitura da primeira carta, a mistura entre elementos de referência externa e notadamente ficcionais promove a carnavalização do escândalo e faz com que o leitor coloque em questão a natureza do texto que tem diante de si. Ainda que desconcertados, deixamo-nos seduzir pelo enredo labiríntico, que mescla a intriga familiar do suposto leitor traído – que acredita que Matta era amante de Margarida, sua esposa – com o famoso caso Malta. O título do romance aponta previamente para a ambigüidade de identidades e do próprio fait-divers. A narrativa de teor caricatural e caráter cômico estabelece a incerteza como tema. Até pouco tempo, a dúvida, como veremos adiante, também se estendia à própria autoria do romance. Os elementos básicos da narrativa policial estão presentes, no entanto, também estão permeados de dúvida: há um morto, uma vítima, mas sua identidade é incerta: seria Mattos, Malta ou Matta? Policiais são possíveis criminosos, mas não há provas. Nem mesmo o cadáver é encontrado.

Ao contrário do que se verifica nas narrativas policiais de Edgar Allan Poe, Conan Doyle, Agatha Cristie, Simenon, Chandler e Dashiel Hammet, onde o detetive é uma “máquina de pensar”, como Dupin e Sherlock, ou tem perfil mais humanizado, em Mattos, Malta ou Matta?, o detetive não é emblemático. A função detetivesca cabe novamente ao leitor, que, confundido propositadamente pelo jogo farsesco da narrativa, tenta compreender os acontecimentos. O texto fugidio ludibria o leitor, que, envolvido pela metanarrativa, se vê impotente diante de tamanho labirinto textual. À mercê das divagações e construções do narrador, sentimos as ações narradas escaparem entre nossos dedos, sem conseguir detê-las. A alucinante desordem narrativa, promovida pela mistura de enfoques, que freqüentemente deixam a ação em suspenso, dificulta, propositalmente, a tarefa detetivesca do leitor. A todo instante, surgem “falsas pistas e falsos recomeços” (Batalha, 2004: 216) que, concomitantemente, confundem o leitor/detetive e parodiam as dificuldades da polícia para solucionar o caso real. O enigma do fait divers não foi decifrado, uma vez que a identidade do morto e do responsável pelo crime nunca foi desvendada. A enigmática trama tem, todavia, ao final do romance, seu mistério revelado. O narrador, que é o leitor-autor das cartas que abrem a novela policial, se declara romancista, revelando que sua única intenção era a de oferecer um prêmio aos assinantes de A Semana. O romancista seria, então, “um inventor de mentiras, silenciado pelo jornalista ‘comentador de verdades’” (Eulálio, 1985: 164).

- Este senhor – acrescentou, voltando-se para mim. – Este senhor não é mais que um simples romancista.

- Como? – disse Eu.

- Sim, não é mais do que um simples romancista. A sua intenção dele era somente fazer um romance, um romance para A Semana e, na falta de melhor assunto, agarrou o meu.

- O seu?

- Sim, o meu, a minha questão, o meu Castro Malta.

- Como é lá isso? Perguntei.

- Pois não – respondeu-me Quintino. – Pois não! O senhor entendeu fazer um romance de uma questão séria, que levantei pelO Paiz e começou a escrever cartas disparatadas e tolas para A Semana.

Eu ? – interroguei.

- Sim, sim, o senhor! – bradou o chefe da redação dO Paiz agarrando-me pelo braço. O senhor! Que, sem o menor escrúpulo quis fazer de um assunto sério um pretexto para novela de mau gosto.

(...)

- E, dizendo isto, dei por acabado este livro, que não é um romance, nem um tratado científico, nem um catecismo, nem tão pouco um livro de memórias; mas apenas simplesmente um prêmio para os assinantes de A Semana (Azevedo, 1885: 160).

Edgar Allan Poe, abordando o mistério, o crime e a revelação, no conto “O homem da multidão”, expôs claramente os elementos que fundamentam o romance policial. Suas narrativas policias são autênticos exercícios de decifração, onde o detetive, a partir da observação analítica, desvenda todo e qualquer enigma. Curiosamente, O Mistério de Marie Rogêt, de Poe, publicado em 1843, também foi baseado em um episódio real, que acontecera em Nova York, dois anos antes. O desaparecimento de uma jovem, seguido de assassinato, promoveu grande especulação nos jornais da época; foi, então, que Poe decidiu contestar no conto as suposições apresentadas pelos jornais. Através de depoimentos publicados e de diversas reportagens, Poe, sem sair de seu gabinete, reconstituiu as circunstâncias exatas do crime, indicando no conto o provável criminoso. Ao contrário de Poe, Aluísio, em Mattos, Malta ou Matta?, não busca a resolução do mistério, mas apenas assume o fait divers como matéria ficcional, parodiando-o.

O aparecimento de uma civilização urbana, a origem da polícia no século XIX, tal como a entendemos hoje, assim como o surgimento do Poder Judiciário que instala a noção de periculosidade, a partir do qual o criminoso passa a ser visto como inimigo da sociedade (contrapondo-se ao policial, novo tipo social), ao lado da criação dos jornais populares de grande tiragem e da conseqüente formação de um novo público, que agora vive no espaço da cidade industrial, são algumas condições que tornaram propícia a invenção do gênero policial (Reimão, 1983).

É da formação das massas urbanas que, reitera Benjamim (Apud Cardoso, 1992: 144) tem origem o romance policial. No aglomerado urbano, qualquer um – os jornalistas, os folhetinistas, o poeta – pode, enquanto flâneur, representar o papel de detetive. Assim, “a variedade de desdobramentos de caso Castro Malta, na imprensa carioca, evidencia, além da tentativa atabalhoada de estruturar-se um espaço público, a tendência de seu discurso por um gênero – o policial” (Cardoso, 1992: 144).

Em Mattos, Malta ou Matta?, a cidade se torna objeto da ficção. Os labirintos textuais do folhetim de Aluísio podem representar, metaforicamente, a cidade, que se torna, então, espaço do imprevisível, do imponderável. Vejamos uma observação sobre a Paris de Mistérios de Paris, famoso folhetim de Eugène Sue, pode ser aplicada ao Rio de Janeiro de Mattos, Malta ou Matta?:

(...) Realidade e ficção envolveram a cidade e, ao torná-la substância de uma narrativa ou ao dela fazer a principal via por onde passava o destino de sua população, transformam a cidade num enigma. Um denso e vigoroso objeto a ser decifrado, seja à luz da narrativa ficcional, seja à lógica dos saberes cultos de então (Pechman, 2002: 227).

Povoada por uma multidão de desconhecidos, a cidade configura-se como um mistério para os seus membros. A ausência de identidade, promovida pela cidade, é, segundo Benjamim, o móvel do romance policial: “o conteúdo social primitivo do romance policial é a supressão dos vestígios do indivíduo na cidade grande”(Benjamin apud Pechman, 2002: 262). É no romance policial pois que a dimensão misteriosa da cidade ganha destaque. O mistério que se apresenta é o da identidade, o do reconhecimento de si mesmo e do outro. O enigma da novela policial de Aluísio está exatamente na ausência de uma identidade, na não identificação de um cadáver, que acaba por promover durante alguns meses uma desarmonia social, constituindo-se como uma ameaça à ordem local. O folhetim, um dos gêneros da literatura urbana do século XIX, é o lugar por excelência de reflexão sobre os mistérios que circundam a cidade: “a sociedade se apresenta como enigma, a cidade se exibe como esfinge, uma aura fantasmagórica que a tudo recobre” (Pechmam, 2002: 229).

Desse modo, Mattos, Malta ou Matta? traduz, em termos ficcionais, os mistérios da cidade, chegando a ponto de dificultar a distinção entre realidade e ficção. Nesse folhetim, a ficção confunde-se com o fait divers, com a própria realidade. Em Mattos, Malta ou Matta?, o caminho para o desvendamento do enigma se faz e desfaz. Não há, como sabemos, romance policial sem que haja algo a ser descoberto, sem que um enigma seja decifrado, pois a base do gênero é inquestionavelmente o mistério.

A autoria de Mattos, Malta ou Matta? durante certo tempo também foi um enigma, como já antecipamos. Esse folhetim permaneceu durante muito tempo sendo considerado de autor desconhecido, visto que só recentemente pesquisadores da obra de Aluísio Azevedo descobriram ser ele o autor do romance. Isso explica o fato de o texto ter sido publicado pela primeira vez em livro só em 1985, um século depois de sua primeira publicação, portanto. Para os pesquisadores, alguns fatos confirmam a autoria de Aluísio Azevedo. A revista literária A Semana iniciou, em 1886, a publicação de uma nova secção na qual um escritor elogiava o outro, enumerando sua bibliografia e dando pequenas informações da sua biografia. Em 27 de outubro de 1886, Emilio Rouède escreveu sobre Aluísio, atribuindo ao amigo a autoria da novela policial. Na semana seguinte, foi a vez de Aluísio escrever sobre Rouède, sem fazer nenhuma objeção à inclusão do romance na sua bibliografia, o que levou os pesquisadores a concluírem pela autoria de Aluísio. O francês Jean Yves Mérian, autor da biografia de Aluísio, embora dedique poucas páginas de seu alentado volume à novela em questão, transcrevendo um comentário publicado em A Vespa, jornal que tinha Aluísio entre seus colaboradores, o indica como provável autor da novela policial: “No Mattos, Malta ou Matta? estão patentes todas as qualidades de estilo e de observação de Aluísio Azevedo. Não nos parece de outra origem o curioso romance de A Semana.” (Mérian, 1988: 411). Segundo Mérian, o fato de A Semana, no seu número seguinte, não trazer nenhum comentário sobre o que fora publicado contribui para fortalecer a idéia de que Aluísio é realmente o autor da novela. Nenhuma das edições anteriores das obras completas do autor em questão incluíra o texto de Mattos, Malta ou Matta?. Somente a novíssima edição de sua Ficção Completa, publicada em julho de 2005, com organização de Orna Messer Levin, da Unicamp, inclui Mattos, Malta ou Matta? na produção literária de Aluísio Azevedo.

Uma carta de Valentim Magalhães, fundador de A Semana, ao amigo Lúcio Mendonça, de 14 de janeiro de 1884, ou seja, de um ano antes da estréia da revista, indica que o folhetim deveria ser a princípio uma obra coletiva, nos moldes da Peteca no ar. Ao que tudo indica, diante do que acima expusemos, a colaboração dos outros escritores falhou, o que levou Aluísio a escrever sozinho não só a abertura do texto, como todos os capítulos subseqüentes.

Sabe-se que, no século XIX, a experiência folhetinesca policial de Aluísio é única, pois só no século XX, mais precisamente nos anos 30, quando as editoras publicaram as primeiras coleções policiais com os clássicos de Edgar Allan Poe, Conan Doyle, Agatha Christie e Dashiel Hammet, o leitor brasileiro pôde conhecer o romance policial. É também do início do século XX a publicação de O mistério (1920), obra coletiva de Coelho Neto, Afrânio Peixoto, Viriato Correia e Medeiros e Albuquerque, considerada pelos historiadores da literatura, que excluem de nossa historiografia literária Mattos, Malta ou Matta?, como nossa primeira narrativa policial. Nossa proposta concentrou-se na análise dos primeiros sinais do gênero policial, nos folhetins de Aluísio Azevedo, sobretudo em Mattos, Malta ou Matta?, como a primeira manifestação do romance de traços policiais na literatura brasileira. Coube-nos, aqui, destacar a similaridade dos temas folhetinescos – como os crimes passionais, as traições, os raptos, as cartas reveladoras, a atmosfera de mistério – com ingredientes típicos da narrativa policial.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Aluísio. Ficção completa. Organização de Orna Messer Levin. São Paulo: Nova Aguilar, 2005.

BATALHA, Maria Cristina. Mattos, Malta ou Matta? un roman au fil de la plume? In: Revista do CREPAL (Centre de Recherches sur les Pays Lusophones), n° 11. Paris: Presses Sorbonne Nouvelle, 2004. p. 213-223.

BOILEAU, Pierre & NARCEJAC, Thomas. O romance policial. Tradução de Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991.

BORGES, Jorge Luis. O conto policial. In: Borges oral. Tradução de Rafael Gomes Filipe. Lisboa: Veja, s.d.

CARDOSO, Marília Rothier. Moda da crônica: frívola e cruel. In: A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Organização do Setor de filologia da JCRB. São Paulo: Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

CARNEIRO, Flávio. Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no século XX. In: –––. No país do presente ficção brasileira do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

DOYLE, Plínio. Antes do romance. In: AZEVEDO, Aluísio. Mattos,Malta ou Matta?. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Casa de Rui Barbosa, 1985.

EULÁLIO, Alexandre. Depois do romance. In: AZEVEDO, Aluísio. Mattos, Malta ou Matta?. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Casa de Rui Barbosa, 1985.

FIGUEREDO, Vera Lúcia Follain. O assassino é o leitor. In: Matraga – Revista do Instituto de Letras da UERJ. Rio de Janeiro: UERJ, jan-ago, 1988. V. 2, n.4-5.

GOLDBERG, Aline. Noir à brasileira no cardápio do mercado: as origens do gênero policial no Brasil e sua manifestação na contemporaneidade. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: Instituto de Letras da UERJ, 2004.

MÉRIAN, Jean Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913); o verdadeiro Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.

MEYER, Marlyse. O folhetim no Brasil. In: Folhetim uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

PIGLIA, Ricardo. Sobre o gênero policial. In: O laboratório do escritor. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.

POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Tradução de Breno Silveira e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

––––––. O homem na multidão. Tradução de Dorothée de Bruchard. Porto Alegre: Paraula, 1993.

REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983.

––––––. Literatura policial brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

––––––. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1979.

 


 


 

[1] A editora Garnier publicou, em 1901, o folhetim Memórias de um condenado, com o título de A Condessa Vésper, e em 1900, Mistérios da tijuca, com o título de Girândola dos amores.

[2] “Fato diverso” (fait divers): seção do jornal, onde se encontravam dramas individuais, via de regra banais, ou então crimes raros e aparentemente inexplicáveis.