O declínio do pai no jogo da autoria:
algumas reflexões sobre
Breve história do espírito, de Sérgio Sant´Anna

Maria Isaura Rodrigues Pinto (UERJ e UNIPLI)

 

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras, libertando um sentido único, de certo modo teológico (que seria a mensagem de um Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escritas variadas, nenhuma das quais é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura. (Roland Barthes)

 

Diálogo com outras realizações artísticas e com seu contexto de produção, discurso sobre discursos, a escritura de Sérgio Sant’Anna se tece na confluência entre o erudito e o midiático, patenteando processos de desierarquização da arte. Recortes da memória cultural de diferentes procedências e formas discursivas do presente constroem o seu corpo polifônico, em que, pela via lúdica da intertextualidade, desenha-se uma integração de diferentes níveis: o da escritura, o dos resíduos recuperados e o do contexto de produção. Essa prática constitui um tipo de narrativa, em que a linguagem cruza, em sua rede de significantes, fios de referências variadas, mesmo as tradicionalmente incompatíveis. Vista sob esse ângulo, acompanha e ilustra o conceito barthesiano de texto:

Texto quer dizer tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado por trás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a idéia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido — nessa textura — o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolve a si própria nas secreções construtivas de suas teias (Barthes, 1977 b,: 112).

Seguindo o pensamento de Barthes, o que se observa é que nas malhas do texto o sujeito empírico se dissemina, dando lugar ao sujeito da escritura que, pela ação do simbólico, do fantasmático, é corporificado. Na ficção em estudo, o autor que aí se lê é, por conseguinte, um leitor/aranha, que constrói seus textos com os fios de leituras dispersas que segrega de si mesmo. Desconstrução e descentramento são os princípios postos em ação na feitura de sua teia. Para tecê-la, recorre ao cinema mental da imaginação, o grande catalisador do ilimitado de suas práticas de leitura. O texto-leitura, como uma “reduplicação“ da fantasia visiva do autor (Calvino, 1990: 107), exibe em sua materialidade uma concepção de escritura distanciada dos mitos de extração clássica: o da expressividade plena do sujeito autoral que pressupõe o recurso à exterioridade referencial e o recurso metafísico à verdade transcendental de um significado. A escritura é assumida como produção cênica, preparada por um artista/encenador que se empenha na montagem de um espetáculo, no qual o centro do palco é ocupado pela linguagem, que aí exibe seu próprio jogo. Nesse espaço lúdico, o sentido se realiza de forma teatral. O presente trabalho, com base em pressupostos teóricos de Roland Barthes, pretende examinar, em relação ao sujeito autoral, a perda de seu componente metafísico na contemporaneidade, quando o texto insurge como tecido formado por fios de referências múltiplas saídos da cultura, o que invalida a noção de texto “originário”.

Inserindo-se numa linha de ficção que, no dizer de Luiz Alberto F. Brandão Santos, trabalha com a consciência de que aquele “fundo” do texto que se escorava na autoria é substituído pelo “sem-fundo” da sua recepção (Brandão, 1990: 295), a narrativa de Sant’Anna instaura , sob disfarces vários do narrador, uma técnica compositiva complexa e problematizadora do lugar de onde se fala e da questão da autoria. Em Breve História do espírito, por exemplo, na seqüência de abertura, o sujeito que narra faz uso de um recurso essencial à forma de composição dos antigos poemas épicos da Grécia: a invocação, pedido de inspiração a seres sobrenaturais. Na Ilíada e Odisséia, de Homero, são inúmeras as invocações feitas às Musas, divindades inspiradoras. O canto I da Ilíada assim se abre:

Canta-me a cólera — ó deusa! — funesta de Aquiles Pelida, causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para os Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados e como pastos das aves (Homero, s/d, 43).

Essa tradicional maneira de iniciar um relato, transposta para a pauta do romancista, soa estranha ao contexto heteróclito de referências desordenadas e flutuantes que o discurso ficcional agencia: elementos do estilo romântico — visto como kitsch, logo dessacralizado e banalizado — justapõem-se a dados fragmentados de um cotidiano prosaico e lascivo, desprovido de qualquer resquício de grandiosidade e de moral heróica. O recurso ecoa como um arremedo do modelo, como uma máscara perversa, plena de ilegitimidades:

Invocação do Demo pelo contista da província

Desesperado no botequim sórdido, o contista de Ouro Preto invocou do fundo de si mesmo as forças demoníacas:

Ditem-me... ainda que um único e último texto, que contenha a atmosfera desta noite envolta em neblina, em que vagueiam espectros do passado: cavalos com narinas fumegantes a resvalar seus cascos nas pedras dessas ladeiras plenas de curvas e surpresas e...

No interior da carruagem, a dama com seu vestido farfalhante, por quem morreria por um sorriso furtivo atrás de um leque o poeta a espiar por uma nesga da janela, ditem-me...

O amor de tal poeta: pura sombra, invenção de quem crê que assim deve amar e assim ama? Ou falta tão sentida que o fez esfregar seu corpo insone contra a cama, gemer e estrebuchar, passar à noite pelo cemitério, sonhando com violações e pactos de morte: uma sede tão ardida quanto a do escravo no pelourinho, ditem-me... (Sant’Anna, 1997: 501).

Na elaboração da seqüência, os recortes discursivos utilizados são dispostos de forma descontínua, o que faz com que a inserção dos mesmos no conjunto textual produza um efeito de montagem que patenteia uma visão anárquica e absurda. Neste caso, o artifício vanguardista da montagem funciona como estratégia para burlar o estereotipado. Ao texto, que se apresenta como ressonância falsificada do outro, o que interessa não é a moldura a reconstituir, mas os cortes, as fissuras, as rupturas, as descontinuidades do modelo, a justaposição de fragmentos, que escapam a uma ordenação lógico-discursiva, deixando livre o trânsito do sentidos. O que se tem diante dos olhos é um mosaico, em cujas fendas se mostra uma repetição na diferença.

Quanto à revisita ao repertório de convenções românticas, observa-se que a passagem faz alusão a ambientes lúgubres, escuros, misteriosos, propícios a rituais demoníacos e ponderações sobre a morte. São freqüentes, em textos ultra-românticos, a presença do demoníaco e a referência ao inferno, que é visto como uma extensão do sofrimento e das orgias do mundo. Esses elementos tipificados se inscrevem ironicamente na invocação que o pseudo-autor, o contista da província, faz ao Demo. Dessa forma, o secular gesto de invocação às Musas, tão caro à tradição épica, ressurge transmutado, contraditório (porque feito ao Demo), desestabilizado, numa cadeia de similitudes e diferenças que não passa apenas por fatos mitológicos transmitidos pela literatura grega e latina, mas também por outros imaginários, sobremaneira, o dos escritores românticos impregnados de antigüidades. A propósito, veja-se, nos versos iniciais de Suspiros poéticos e saudades, de Domingos José Gonçalves de Magalhães, como se configura a invocação à Musa que, neste caso, toma a forma de um anjo que habita o interior do eu-lírico:

Invocação
ao anjo da poesia
a voz da minha alma

Sim, esta voz do meu peito se exala!
Esta voz é minha alma que se espraia,
Ë minha alma que geme, e que murmura,
Como um órgão no templo solitário;
Minha alma, que o infinito só procura,
E em suspiros de amor a Deus se ala. (Magalhães, 1986: 39)

Como mostra o fragmento, a poesia romântica, entre outras características, prima por apresentar conteúdos espirituais explícitos, em que avultam aspectos expressivos ligados à esfera psicológica do sujeito “criador” e à intuição poética, que remonta a uma tradição mítica herdada da antigüidade clássica.

A base da literatura grega, com seu ciclo de poesias épicas, tem em Homero e Hesíodo seus principais expoentes. Jean-Pierre Vernant, ao ocupar-se de pesquisas sobre a divinização da memória e sua relação com a poesia da Grécia antiga, salienta que a concepção mítico-poética de Homero vincula-se a uma função genealógica, delimitadora da origem dos deuses e reis, além de seus poemas veicularem lendas correntes na época. Em Hesíodo, essa pesquisa das origens, revestida de um caráter religioso, relaciona-se com a busca de uma verdade essencial cujo desvelamento cabe ao poeta que, inspirado pelas Musas, consegue recuperar a memória das realidades primordiais (Vernant, 1990: 112).

A deusa que personifica a memória Mnemósine é a mãe das Musas e com elas freqüentemente estabelece identidade. Hesíodo, ao referir-se à origem dos deuses na Teogonia, esclarece que da união de Mnemósine com Zeus foram geradas nove musas que dirigem a criação poética, conferindo ao poeta a revelação cósmica. O poeta imbuído de poder divinatório torna-se, por analogia com a divindade Zeus, o pai de seu canto (texto). A história do fazer literário no ocidente é perpassada pela concepção mítico-metafórica de paternidade artística, herança do espírito clássico. A imagem do poeta inspirado, pai do texto, passou a ser presença constante no universo literário. Admite-se, no caso, que a obra é resultado de um ato criador, já que é fruto de uma experiência espiritual, cuja realização se vincula, no plano da representação estética, a uma perfeição intrínseca. O apelo às Musas traduz, nesse contexto, uma relação hierárquica que assegura ao poeta a posição paterna (a origem), o poder da palavra centralizadora que funda um significado transcendental. Esse substrato mítico-religioso toma na revolução modernista um caráter escatológico, já que o imperativo categórico das vanguardas era o alcance de uma originalidade extrema. Assim, no modernismo, a prática autoral, conservando resíduos de um “comportamento mítico”, estaria ligada à função cósmica do gênio-demiurgo que, a partir do nada, cria um objeto estético uno e irrepetível.

Na contemporaneidade, o império do sujeito autoral se vê irremediavelmente abalado, o que provoca o esvaziamento da idéia de criação. O culto à obra original fenece à medida que, com o avanço crescente da tecnologia midiática, a valorização do indivíduo se enfraquece, já que o sujeito passa a ser visto como parte da massa, tendendo os discursos a se tornarem desindividualizados. Tendo sido destituído da sua posição de fundador, apresenta-se como princípio funcional de inserção no discurso de um sujeito fantasmático (filho de sua própria obra) que, pela prática da assimilação intertextual, resgata modos de dizer já formulados. O deus-demiurgo se transforma num operador de linguagens, num manipulador da alteridade. Deixa-se, assim, a noção de autoridade do sujeito diante do discurso, para aceitar-se a idéia de reciclagem que abre caminho para o imbricamento indiscriminado de discursos. Consolida-se, portanto, o esgarçamento das fronteiras sagradas da arte.

Vista sob esse ângulo, a seqüência de invocação, em Breve história do espírito, é um território textual instigante que vem questionar o ato da criação poética como lugar de mitologias originárias e fundamentalistas. O narrador, ao recuperar pela via de estereótipos românticos, paradigmas literários de uma antigüidade de versão grega, vai ocupar lugares já textualizados, já percorridos pela tradição literária. Contar uma história, invocando seres sobrenaturais, seria a posição do narrador da tradição; no entanto, a sintaxe do texto inverte a relação da feitura clássica e acaba por caracterizar uma viragem, evidenciando, com o uso da máscara do elemento arcaico, a crise da noção de paternidade autoral na literatura contemporânea.

O que o discurso de Sant’Anna atualiza com sua mascarada não é o mistério, a verdade de um modelo de ordem transcendental que afirma a natureza imperativa do autor, mas apenas a atividade pela qual toda a obra do escritor se pauta: a prática de leitura produtiva, definidora do trabalho de composição. Nesse caso, graças ao movimento de adesão e distância promovido pela linguagem para engendrar a (des)continuidade literária, o texto surge como tecido de muitos fios, estabelecendo o que Barthes chama de intertexto: Em suma, o que está sendo representado é a própria cultura, ou como se diz atualmente, o intertexto, que consiste na presença de textos anteriores (ou contemporâneos) na mente (ou na mão) do artista (Barthes, 1990: 172).

 

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

––––––. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.

BRANDÃO, Luiz Alberto Ferreira. Mais um olhar: para uma literatura pós-moderna, um crítica pós-moderna? In: Literatura e memória cultural. Anais da ABRALIC, vol. II, 1990.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

MAGALHÃES, Domingos José Gonçalves de. Suspiros poéticos e saudades. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986.

SANT’ANNA, Sérgio. Breve história do espírito. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990.