A EDIÇÃO DE FOLHETINS OITOCENTISTAS CARIOCAS:
O CASO FRANÇA JUNIOR

Alexandre Xavier Lima (UFRJ)

 

Introdução

O Projeto Tradições Discursivas e Mudanças Lingüísticas na România Nova: do rascunho colonial à construção da identidade brasileira (Barbosa, 2003) vem se dedicando ao aprofundamento dos estudos diacrônicos da Língua Portuguesa no Brasil. Parte dessa dedicação está voltada ao século XIX, período decisivo para a constituição de um público leitor efetivo e da construção da identidade brasileira.

Grandes acontecimentos históricos tornaram possível a constituição de um público leitor no Brasil oitocentista. Dentre eles, a Transferência da Família Real para o Brasil (1808) talvez seja o fato histórico mais significativo para os nossos estudos, pois houve uma série de medidas administrativas para adaptar o Brasil, sobretudo o Rio de Janeiro, e assim, melhor acolher a Corte Portuguesa. Dentre as principais medidas, estava a liberação da imprensa brasileira.

Em pouco tempo, surgiram inúmeros periódicos pelo país, alcançando o público mais variado através de leituras pessoais e leituras em saraus. No final da década de 1870, jornais, como, por exemplo, a Gazeta de Noticias, que tinha uma tiragem de 16 mil cópias, certamente ampliavam seu poder de divulgação através dos saraus, leituras realizadas em encontros da sociedade. Inclusive, diga-se de passagem, a escritora Júlia Lopes de Almeida, em sua infância, costumava ouvir de seu pai o Jornal do Commercio (Faria & Lima (2005/1)).

O Projeto estuda, de maneira específica, os modelos de escrita considerada culta em sincronias passadas. Portanto, o que nos interessa é saber se os periódicos oitocentistas serviriam, ou não, como modelo de norma culta objetiva para os redatores de manuscritos pessoais. Entendemos por norma culta objetiva como sendo aquela não ensinada na escola, mas aquela efetivamente praticada na sociedade (Barbosa, 2005).

Construímos corpora, atualmente disponíveis na internet (www.letras.ufrj.br/~folhetim), contendo textos literários, especificamente o Folhetim e não-literários, notícias publicadas nos mesmos dias do folhetim.

 

Os Corpora

Os folhetins transcritos de periódicos cariocas brasileiros foram: A Flor das Favas (por Withelm Tenint), O Ultimo dia de Frascati (por Mary), Inês de Las Sierras (Ch. Nodier) e A filha do Povo (por Jose Ferreiro y Peralta).

O fato de estudarmos textos folhetinescos nos obrigou a analisar a aplicação do rótulo Folhetim. O termo surgiu no jornal francês La Presse com Émille de Girardin. No Brasil, era comum encontrar textos no rodapé baseados em 3 concepções diferentes: na concepção de miscelâneas, na concepção de livros publicados em folhetim, ou ainda como romances feitos para o folhetim. Essa última em menor freqüência até a década de 50, pois, as obras que predominavam eram de autores consagrados da Europa (Cf. Faria & Lima, 2005/1).

O fato de os autores serem estrangeiros não trouxe problemas para essa etapa da pesquisa, pois os textos eram traduzidos por redatores brasileiros, ou seja, mesmo que a tradução introduzisse usos espelhados em outra língua (como o castelhano), o modelo de escrita não poderia ser outro senão a do leitor (ou redator).

Além de analisarmos o tipo de texto, utilizamos os corpora para análise lingüística. Estudamos a posição do Adjetivo no Sintagma Nominal (Diniz, Faria, Ferreira & Lima, 2003 e Faria & Lima, 2004) e a Latinização da Grafia (Diniz, Faria, Mothé & Lima, 2004 e Faria & Lima, 2005/2), procurando sempre descrever a norma culta em usos padrões quantitativos específicos da época.

Tanto os jornais, quanto os dicionários do século XIX devem ter servido, ao lado dos modelos objetivos, de auxílio para que se constatasse o uso da grafia latinizada como padrão de correção para os textos da época. Através desses modelos subjetivos e objetivos, observamos que a cultura escrita portuguesa oitocentista exacerba a valorização da grafia latinizada, um valor de erudição para o século XIX (Barbosa, 2004).

No trabalho apresentado na Jornada de Iniciação Científica da UFRJ (Faria & Lima (2005/2), os dados de latinização nos ajudaram a ver que não havia, pelo ao menos nesse fenômeno, uma oposição significativa entre textos literários e não-literários. Assim, se os resultados dos textos não-literários estavam muito próximos dos textos literários, podemos inferir que os tradutores dos folhetins, ou os revisores dos jornais, seguiram o mesmo modelo de norma ortográfica. Veja a proximidade dos resultados:

Taxa de acerto nos textos não-literários:      93,81%

Taxa de acerto no folhetim:                            91,95%

Quadro 1: Taxas de acerto

 

Ampliação dos Corpora
os folhetins de França Junior

E quanto a outros fenômenos lingüísticos? O fato dos textos transcritos serem traduções traria problemas para os resultados de outras pesquisas? Tudo indica que não, mas como a questão do nosso trabalho, referente à norma culta objetiva oitocentista, é respondida à medida que ampliamos os corpora, resolvemos ampliá-los, dando preferência à transcrição de textos de autores brasileiros, sobretudo os cariocas.

Assim, iniciamos um levantamento através do Banco de Dados informatizado da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro com a intenção de localizar autores cariocas de Folhetins, que não fossem tão “visados” como Machado de Assis e José de Alencar. Numa primeira busca, dentre algumas antologias mais significativas (e uma bibliografia) sobre o assunto, encontramos os trabalhos Tinhorão (1994) e de Serra (1997).

Tinhorão divide seu texto em seis partes. Começa apresentando o que chama de “espírito do romance romântico”. A seguir, contextualiza esse tipo de romance no Brasil. Explica o início do romance e a contribuição dos folhetins que, através de sua popularidade, contribuiu para a divulgação do romance brasileiro. Destaca a trajetória dos folhetins até a televisão e apresenta partes de alguns textos folhetinescos.

Serra dedica-se mais à reedição de alguns folhetins. Divide as produções em precursores e autores propriamente folhetinescos. Para ela, o folhetim é um espaço onde se publica variados gêneros.

Contudo, essa busca que fizemos ainda não era o suficiente. Recorremos, então, aos Catálogos Dicionários[1]. Procuramos, num primeiro momento, pelo assunto, Folhetim, e encontramos algumas referências, dentre elas a do autor França Junior.

Joaquim José da França Junior nasceu no Rio de Janeiro em 18 de março de 1838 e faleceu em Poços de Calda – MG no dia 27 de setembro de 1890. Além de patrono da cadeira n. 12 da Academia brasileira de Letras, exerceu funções públicas: promotor público e curador da vara de órfãos no Rio de Janeiro e secretário do governo da província da Bahia. Colaborou em vários jornais. É mais conhecido como autor de peças de teatro (Cafezeiro, 1980), pois escreveu inúmeras peças, como, por exemplo, Caiu o Ministério (1882). Pelo o que observamos a seu respeito, seu histórico atendia ao perfil sócio-cultural de uma pessoa considerada erudita, o que nos interessa, uma vez que investigamos a norma culta objetiva da época.

Investigamos, no acervo da Biblioteca Nacional a bibliografia, desse autor. Dela, selecionamos o livro Folhetins (França Junior, 1878). Esse livro é uma antologia de folhetins que foram publicados em jornais.

O livro reúne folhetins de França Junior publicados na Gazeta de Noticias. Os textos foram organizados por Alfredo Mariano de Oliveira. A primeira coisa que fizemos foi observar a ordem, os títulos dos folhetins e procurar os correspondentes na Gazeta de Notícias. Desse levantamento construímos a tabela que segue:

 

 

Título

1

A Rua do Ouvidor

2

Massantes

3

Bailes

4

Jantares

5

Visitas

6

Mudanças

7

Enterros

8

O Namoro

9

Crianças

10

Pretendentes

11

Encommendas

12

Vizinhos

13

Feijoadas

14

Luminarias

15

Bonds

16

A Missa do gallo

17

A Republica

18

Casamentos

19

Organisações Ministeriaes

20

Friburgo e Petropolis

21

O Cantor de Serenatas

22

Dilettanti[2]

23

Os Recitativos

Quadro 2: Títutos dos folhetins de França Junior

Os números da primeira coluna apresentam a ordem em que foram publicados em Folhetins (1878) e a segunda coluna traz os títulos dos folhetins. Os textos em sua maioria eram publicados às Quartas-feiras, de sete em sete dias. A ordem da publicação em livro não era exatamente cronológica.

 

Comparação das edições

A comparação das edições consiste em confrontar as edições, observando a regularidade e, principalmente, as diferenças, como observaremos na seqüência. Comparamos o folhetim A Rua do Ouvidor com a edição em livro de 1878. Nesse folhetim, o autor apresenta a cidade do Rio de Janeiro a partir da rua do Ouvidor, segundo ele, lugar onde se encontravam os principais tipos do Brasil daquela época.

Ao comparar as duas edições, encontramos 17 diferenças, as quais dividimos em diferenças simples e diferenças substantivas. As diferenças simples subdividem-se em: grupo 1 (acentuação), grupo 2 (emprego de diferentes letras), grupo 3 (pontuação) e grupo 4 (erros de composição gráfica). As diferenças substantivas compreendem ao grupo 5 (variação substantiva). A divisão tem como pólos as diferenças simples e a variação substantiva. As diferenças simples não alteram o conteúdo, mas ajudam à identificação futura de caminhos distintos de edição do mesmo texto. Nesse caso, entram as diferenças de acentuação gráfica. Veja quadro 3:

Grupo 1: Acentuação Gráfica

Gazeta de Notícias (1877-78)

Folhetins (1878)

1

esta pacifica cidade onde tive a ventura de ver a luz, [col. 1]

esta pacifica cidade, onde tivemos a ventura de vêr a luz.

2

tém por causa [col. 5]

têm por causa

3

tem que ver [col. 5]

tem que vêr

4

se expor [col. 6]

se expôr

5

Já não se vêm [col. 8]

Já não se vèm

Quadro 3

Na primeira coluna, temos as realizações de acentuação gráfica da edição da Gazeta de Notícias que diferem da segunda coluna, referente à edição em livro. Como podemos observar, a alteração de pontuação, por exemplo, de verèvêr (1), não modifica o conteúdo, mas pode indicar qual foi o modelo adotado por uma edição posterior.

O grupo 2 apresenta a distinção das duas edições através da seleção diferentes de letras. A escolha por empresa ou empreza (6) depende do modelo de grafia que o redator possui. Esse modelo pode ser mais fonético, mais etimológico, ou ainda marcado por outras línguas (como a francesa). Veja o quadro 4:

Grupo 2: Emprego de diferentes letras

Gazeta de Notícias (1877-78)

Folhetins (1878)

6

empresa Gary [col. 3]

empreza Gary

7

forro do Gibris [col. 4]

forro do Gibus

8

da cretin [col.5]

da creten

Quadro 4

No grupo 3, temos casos de pontuação diferente entre as edições. Diferenças essas que podem levar a uma reinterpretação das frases:

Grupo 3: Pontuação

Gazeta de Notícias (1877-78)

Folhetins (1878)

9

esta pacifica cidade onde tive a ventura de ver a luz, [col. 1]

esta pacifica cidade, onde tivemos a ventura de vêr a luz.

10

a loja do Bernardo, [col. 6]

a loja do Bernardo

11

a loja do Godinho , sortir-se [col. 7]

a loja do Godinho sortir-se

Quadro 5

Já o grupo 4 não se trata de uma diferença de escolha baseada em um modelo, mas de um problema de composição dos tipos de imprensa, que, geralmente, numa edição seguinte é revisada, como podemos observar no quadro 6:

Grupo 4: Erros de composição gráfica

Gazeta de Notícias (1877-78)

Folhetins (1878)

12

celibatarios , o [sic] inimigos [col. 2]

celibatarios e inimigos

13

Sigamos a nossa de rota [col. 4]

Sigamos a nossa derrota

Quadro 6

Se, de um lado, temos diferenças simples, do outro, temos diferenças que modificam significativamente o conteúdo. O grupo 5 é uma amostra disso. Por exemplo, a recuperação anafórica de (14) é diferente nas edições. Enquanto a primeira recupera a palavra mentira, a outra recupera dito maligno. Ou ainda, casos em que se muda a regência como em (16).

Grupo 5: Variação substantiva (regência e recuperção anafórica)

Gazeta de Notícias (1877-78)

Folhetins (1878)

14

a fazer que transmittil-a [mentira] [col. 6]

a fazer que transmittil-o [dito maligno]

15

Fronteiro do Castellões [col. 6]

Fronteiro ao Castellões

16

abalasse todo o Rio de Janeiro [col. 7]

abalasse o Rio de Janeiro

17

a cantora que estreia [col. 4]

a cantora que se estreia

Quadro 7


 

Conclusão

O folhetim para França Junior e, por conseguinte, para Gazeta de Notícias, como Serra também observa, é um espaço que empresta a estrutura de outros gêneros. No caso dos folhetins de França Junior, o que temos é um hibridismo de gêneros, há uma mistura entre crônica e conto. O autor, ao descrever a sociedade carioca da segunda metade do século XIX, parece caracterizar os personagens para atuarem numa Peça (conto) em seu texto – questões como essa e outras poderão ser aprofundadas com o desenvolver do trabalho.

Paralelo a nossa primeira tarefa, continuamos com o levantamento da obra de França Junior, verificando a fortuna crítica do autor e se há manuscritos. A respeito disso, já sabemos que, na Academia Brasileira de Letras, há alguns documentos do autor, no Arquivo Geral dos Imortais.

 

Referências Bibliográficas

CAMARA JR., Mattoso J. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.

BARBOSA, Afrânio Gonçalves. In: LOPES, Célia Regina dos Santos. A Norma Brasileira em Construção: Fatos Lingüísticos em cartas pessoais do século 19. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2005.

MOLLICA, M. C. de M. (org.). Introdução à Sociolingüística Variacionista. Rio de Janeiro. Cadernos Didáticos da UFRJ/Faculdade de Letras/UFRJ, 1992.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

––––––. As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 1988.

NARO, A. J. Idade. In: MOLLICA, M. C. de M. (org.). Introdução à Sociolingüística Variacionista. Rio de Janeiro. Cadernos Didáticos da UFRJ/Faculdade de Letras/UFRJ, 1992.

––––––. Modelos Quantitativos e Tratamento Estatístico. In: MOLLICA, M. C. de M. (org.). Introdução à Sociolingüística Variacionista. Rio de Janeiro. Cadernos Didáticos da UFRJ/Faculdade de Letras/UFRJ, 1992.

SCHERRE, Maria Marta Pereira. Levantamento, codificação, digitação e quantificação dos dados. In: MOLLICA, M. C. de M. (org.). Introdução à Sociolingüística Variacionista. Rio de Janeiro. Cadernos Didáticos da UFRJ/Faculdade de Letras/UFRJ, 1992.

FRANÇA JUNIOR, Joaquim José da. Folhetins. Rio de Janeiro: Typ. Da Gazeta, 1878.

SERRA, Tânia Rebelo Costa (org.). Antologia do romance-folhetim (1839 a 1870). Brasília: UnB, 1997.

SODRÉ, Muniz. Teoria da Literatura de Massa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

SODRÉ, Nelson Werneck. A história da Imprensa no Brasil. Rio de Janeiro, 1966.

TINHORÃO, José Ramos. Os Romances em folhetins no Brasil: 1830 a atualidade. São Paulo: Duas Cidades, 1994.


 


 

[1] São fichas de referências bibliográficas e de localização das obras na BNRJ não informatizadas e anteriores a 1982.

[2] Não foi até o momento encontrado na Gazeta de Notícias