A FILOLOGIA TEXTUAL E A LINGÜÍSTICA

Rosa Borges dos Santos (UNEB/ UFBA)

 

A RELAÇÃO FILOLOGIA E LINGÜÍSTICA

Filologia, do gr. φιλoλoγία, composto de um radical vinculado ao verbo φιλειν, “amar”, e de um radical relacionado ao substantivo λόγoς “palavra”, etimologicamente pode ter interpretações como ‘amor à ciência’, o culto da erudição, em especial, o culto da ciência da linguagem. Em sentido amplo, a Filologia estuda a língua, a literatura e a cultura representadas através de documentos e textos legados por uma determinada civilização, privilegiando a língua escrita e literária como fonte de estudos, explorando os mais variados aspectos de um texto: lingüístico, literário, filológico, sócio-histórico, entre outros. Desse modo, a Filologia cumpriria seu exercício por meio de diferentes tarefas, a saber: recuperação do patrimônio cultural escrito, exame da tradição textual e seu processo de transmissão, classificação dos textos e edições, fidedignas ou críticas, no campo da Filologia textual; estudo de história da língua e ainda estudo de civilizações, no terreno da Lingüística Histórica. Estas últimas tarefas da Filologia se realizariam a partir de textos editados pela Filologia Textual.

A Lingüística, por sua vez, define-se como o estudo científico da linguagem humana considerada na base de sua manifestação como língua. Interessa-se por todas as línguas em todos os seus níveis e modalidades. Os estudos lingüísticos tomaram por base, inicialmente, os textos antigos e, desse modo, a gramática histórica se pôde desenvolver. Depois, a Lingüística centrou-se no exame da língua corrente, enquanto a Filologia ocupou-se do estudo da língua através de textos, “tanto os textos de uso único, pragmáti­cos, como também os textos de uso repetido, literários” (Lausberg, 1974: 21). Desse modo, distinguem-se, a partir do século XIX, dois campos do saber: o da Lingüística, sincrônica e descritiva, e o da Filologia, desdobrando-se em Lingüística Histórica, diacrônica, e Crítica Textual ou Filologia Textual, ocupando-se da edição de textos.

Essa separação entre Filologia e Lingüística não é tão rígida, principalmente no que tange ao ofício do filólogo, pois, como se sabe, todo filólogo é lingüista, ele precisa compreender a língua do texto que edita para não incorrer em afirmações equivocadas. O contrário, porém, não é verdadeiro. Um lingüista não tem de ser necessariamente um filólogo. Filologia e Lingüística são, portanto, disciplinas independentes, mas que se inter-relacionam, sobretudo, na prática filológica.

Para a Filologia Textual, o texto é o testemunho de um povo, de uma época, de um autor etc., e deverá ser reconstituído em sua forma genuína para que sirva de fonte segura para estudos vários. Ressaltemos, porém, que os editores, na prática de seu trabalho, não alcançam o “verdadeiro texto”, mas sim aquele que dele mais se aproxima. Para a Lingüística, no entanto, o texto é o suporte para seus estudos, é o lugar onde as mudanças nos distintos níveis da língua se revelam, é uma unidade de comunicação e expressão em um período concreto da história da língua no qual diferentes valores são construídos. Deve-se, portanto, conjugando essas diferentes perspectivas, analisar o texto considerando todos os tipos possíveis de estudos histórico-lingüísticos.

Vê-se, então, que a Filologia e a Lingüística têm mantido ao longo do tempo uma relação de complementariedade, ou seja, a Filologia Textual, através do resgate e edição de textos, serve à Lingüística fornecendo dados que melhor permitam caracterizar a língua atestada em tais textos, enquanto a Lingüística proporciona à Filologia, entendida como análise reconstrutiva de textos, as referências que ajudam a datar e diferenciar manuscritos, apresentar arquétipos, associá-los às zonas geográficas ou a âmbitos culturais, entre outros aspectos, sobretudo partindo do exame das variantes, valendo-se de um método lingüístico. Assim, como afirma Telles (2003: 21), a Filologia utiliza a Lingüística para estudar os textos e a Lingüística usa os textos para descrever a língua.

Passemos, então, ao estudo de duas situações que expressam com clareza essa relação da Filologia com a Lingüística, a saber: a primeira dá mostras do trabalho da Lingüística a partir do texto editado; a segunda, a Filologia Textual se vale de um método lingüístico para a análise e interpretação das variantes.


 

UM ESTUDO LINGÜÍSTICO ATRAVÉS DO TEXTO EDITADO

Para caracterizar a situação de um estudo lingüístico através do texto editado, consideremos a Tese “Negros e escrita no Brasil do século do século XIX; sócio-história, edição filológica de documentos e estudo lingüístico”, desenvolvida por Klebson Oliveira (2006), trabalho de grande relevância para o ambiente acadêmico e científico que traz contribuições substanciais para o estudo da história da língua portuguesa no Brasil. Nela, o autor realiza a edição semidiplomática de documentos produzidos pela mão de negros, analisa as condições de produção dos textos, trazendo os aspectos sócio-históricos, a partir de uma descrição dos sujeitos-scriptores, identificando, com maestria, o sujeito e seu lugar no discurso. A seguir, estuda os valores grafemático-fonéticos dessa scripta.

Especificamente, o estudo lingüístico acha-se desenvolvido no capítulo terceiro da referida Tese. Trata-se de análise minuciosa, feita com bastante rigor, tomando-se 9406 registros, extraídos de 290 documentos provenientes das mãos de 30 sujeitos-scriptores. Por meio desses registros, fez-se uma avaliação dos problemas grafemático-fonéticos apresentados na scripta de africanos e brasileiros, na Bahia do século XIX, ilustrando com tabelas, quadros e gráficos que mostram os dados analisados. Foram estudados os seguintes aspectos: segmentação gráfica, aspecto da aquisição da escrita – grafias para sílabas complexas, fenômenos gráficos e marcas da oralidade no nível fonético-fonológico, todos carentes de atenção em perspectiva histórica.

Quanto aos fenômenos gráficos, quantitativamente, flagraram-se, os seguintes números: inversões de grafemas, 14 ocorrências; omissões de grafemas, 239; substituições de grafemas, 370 e acréscimos de grafemas, 118. Em se tratando das marcas da oralidade na escrita, destacam-se duas (02) ocorrências em que se revela a assimilação de -nd- para -n-: dezejano por desejando e Espínola por Espíndola; e mais duas (02) em que se verifica a dissimilação de uma consoante nasal: Lumiado por nomeado e Lomiou por nomeou. Outros traços são relevantes nos documentos editados: a elevação de vogais médias em pré-tônicas, a elevação de vogais médias em monossílabos e a redução de ditongos; principalmente, próteses, paragoges e posteriorizações de vogais. Ressalte-se que a elevação de vogais médias, sobretudo em sílabas pré-tônicas e em monossílabos, as apócopes, principalmente do /R/, o abaixamento de vogais altas, as reduções de ditongos e as ditongações experimentaram índices muitos altos nos documentos analisados. Observou-se ainda que muitos dos fenômenos fônicos que se assinalam no português brasileiro atual já contavam com representantes nos oitocentos. E a comparação com trabalhos sincrônicos da contemporaneidade manifestou que, às vezes, até encontram réplicas quanto aos contextos lingüístico-estruturais.[1]

Aqui, a Lingüística, em função do estudo desenvolvido, nos moldes do estruturalismo, põe em relevo um corpus de trabalho que poderá incluir, numa história sobre o português brasileiro, a escrita dos ‘invisíveis’, os africanos e seus descendentes, afirma o autor (Oliveira, 2006).

 

UM MÉTODO LINGÜÍSTICO
PARA A ANÁLISE DAS VARIANTES

Tomemos agora outro exemplo, desta vez, o trabalho filológico se fez, levando-se em conta o uso de um método lingüístico para a análise das variantes, lições divergentes em ralação ao texto de base, que se registram no aparato de uma edição crítica. Trabalho realizado em minha Tese intitulada Poemas do Mar de Arthur de Salles: edição crítico-genética e estudos (Carvalho, 2002). Passemos à caracterização deste método que se define a partir do exame das variantes.

Consideramos os autógrafos e neles observamos que se distinguiam vários momentos de escrita, reescrita, correção, recorreção. De posse desse material, procuramos encontrar um processo de classificação de manuscritos, a partir de suas características lingüísticas, o uso que o autor faz dos signos léxicos, dos signos gramaticais, dos sintagmas e dos indicadores de suprassegmentalidade – os sinais de pontuação, de modo que fosse possível determinar o grau de aperfeiçoamento estilístico, bem como contribuir para a definição de estratégias editoriais, tendo-se em conta que se procura conhecer melhor o poeta e sua obra através das marcas de correção introduzidas pelo autor no seu manuscrito.

As marcas de reelaboração parecem constituir-se em objeto privilegiado para que sejam feitas observações relacionadas à modalidade de língua escrita que se põe em evidência em diferentes momentos e pelas razões mais variadas. Essas marcas revelam a tomada de decisão do autor em determinados momentos e caracterizam o uso que o autor faz do sistema lingüístico, buscando adaptar-se às normas da língua em que escreve. Diante desse quadro, procuramos identificar e interpretar, de forma sistemática, essas marcas, tanto em um testemunho genético da obra como em seu conjunto.

A análise desses manuscritos, que tem como objetivo a gênese dos textos, parte da análise de estágios intermediários de escrita e, na procura do que foi abandonado pelo autor, intentou-se depreender como ele constrói seu texto, de quais instrumentos se utiliza, e quais são os seus hábitos, para, enfim, reconstruir a gramática do texto, a gramática estilística do autor.

Para o estudo genético das transformações textuais, fez-se a opção pelo método lingüístico aplicado por Luiz Fagundes Duarte aos autógrafos de A Capital!, de Eça de Queiroz, fazendo-lhe os ajustes necessários de acordo com as características dos autógrafos do poeta que trabalhamos na tese, Arthur de Salles. Este método constitui-se das seguintes etapas: constituição de uma amostra representativa do corpus, abarcando todos os testemunhos disponíveis; marcação dos níveis e momentos de todas as transformações textuais; classificação por classes gramaticais e por estruturas lingüísticas dos materiais envolvidos em cada transformação; elaboração de cálculos estatísticos acerca da distribuição de cada classe em termos topográficos; elaboração de cálculos de probabilidade; matriz de probabilidade de ocorrências. (Duarte, 1993: 98-99).

A definição de uma matriz estilística do autor poderá auxiliar o editor a fundamentar uma decisão editorial, pelo menos como uma probabilidade. Na prática, trata-se de uma maneira de tornar menos empírico o método da conjectura; é preferível agir de acordo com os hábitos do autor. O estudo que conduz à construção dessa matriz tem de ser acompanhado da definição da diacronia dos materiais que constituem o autógrafo. Antes disso, é necessário saber qual é a relação cronológica existente entre os testemunhos para classificar lingüisticamente os materiais envolvidos no processo de transformação interna a cada um deles.

Relacionamos os testemunhos genéticos da obra Poemas do Mar de Arthur de Salles, para estudar-lhes as particularidades, a partir do exame dos lugares de variação genética, desprezando-se os lugares problemáticos e ilegíveis. O corpus selecionado constituiu-se de 9 manuscritos completos, 7 fragmentos, 8 rascunhos, aos quais o método foi aplicado, passo a passo, testemunho a testemunho, e entre os diversos testemunhos de um poema, para, no final, fazer-se o cruzamento dos resultados obtidos, com a finalidade de extrair uma matriz estilística, embora parcial, do processo de criação de Arthur de Salles.

Os poemas foram apresentados em ordem cronológica, datados e de datação reconstituída, enquanto os não datados estão dispostos em ordem alfabética. Acham-se organizados conforme classificação que se procurou obedecer: 1) Textos passados a limpo (TPL) – completos e 1.1) Textos passados a limpo – fragmentos (TPL (Frag)); 2) Rascunhos ®. Quanto aos poemas completos, dispõem-se, primeiro, os inéditos, depois, os éditos.

Identificados e marcados os lugares de transformação textual, testemunho a testemunho, obtivemos a lista dos materiais implicados, classificados por níveis[2] e momentos genéticos[3] (A1, A2), por tipo e topografia das correções (<.... > [­...], substituição na entrelinha superior), e por classes gramaticais, estruturas lingüísticas, sinais de pontuação, conforme a gramática tradicional. Os níveis genéticos foram marcados por letras do alfabeto e os momentos, pelos números arábicos, indicados por uma designação que conjuga o nível e o momento, por exemplo, A1, nível A, momento 1. Comentou-se, poema por poema, para, somente depois, estabelecer uma matriz estilística. A transcrição dos versos que trazem alterações foi feita, valendo-se de um conjunto de símbolos que procura dar conta de todas as transformações autorais, legíveis ou não.

Registramos, em cada testemunho e no conjunto deles, a freqüência quanto ao tipo de correção (se em cada testemunho, sete tipos: Substituição à frente (SF); Substituição na entrelinha ou à margem (SE/M); Substituição por sobreposição (SS); Acrescentamento na entrelinha, à margem (Ac); Supressão (S); Adiamento (Ad); Deslocamento (D); se no conjunto dos testemunhos, quatro tipos: substituição, acréscimo, supressão e deslocamento), à classe gramatical, tomando-se os signos léxicos (substantivo, adjetivo, verbo e o advérbio) e os signos gramaticais (preposição, conjunção, pronome, artigo), à estrutura sintática, levando-se em conta o sintagma nominal (SN), o sintagma adjetival (Sadj.), o sintagma verbal (SV), o sintagma adverbial (Sadv.), o sintagma preposicional (SP), a frase (F), o verso, o fragmento de frase (Ffrag.), parte do verso, e a estrofe (Estr.). Ressalte-se também ser importante, para o confronto entre testemunhos autógrafos, os traços de suprassegmentalidade – os sinais de pontuação (Spt).

Desse modo, pretendíamos alcançar, por meio de uma orientação estatística, determinando-se os percentuais, o comportamento do autor face ao seu processo de criação, considerando-se a freqüência e distribuição das variantes autorais em relação às classes gramaticais, à estrutura sintática e aos sinais de pontuação, e em relação aos fenômenos de substituição, acréscimo, supressão e deslocamento.

Desprezaram-se as substituições que envolvem letras, parte de palavras, palavras ilegíveis, aspectos relacionados à sintaxe, tais como concordância, pluralização, diminutização, as estruturas complexas (de difícil classificação segundo as normas da gramática). Para distinguirem-se as partes de versos dos sintagmas, optou-se por considerar parte do verso, o verso geralmente abandonado, ou para o qual não foi possível estabelecer as rubricas correspondentes aos sintagmas (nominal, verbal, adjetival, preposicional, adverbial).

Como dissemos, esse método foi aplicado aos manuscritos autógrafos de Arthur de Salles com a intenção de estudar seu processo de criação. Selecionamos, aqui, um dos poemas para exemplificar o método e a seguir passaremos às conclusões gerais a que chegamos com a aplicação do referido método aos autógrafos de Salles.

 

Um exemplo para aplicação do método
[AS CANOAS APONTAM PARA ALLEM DA ENSEADA]

Descrição física do material

Testemunho 0036

SALLES, Arthur de. [As canoas apontam para além da enseada].[S.l., s.d.]. 1 f°.[4]

Manuscrito autógrafo em papel de carta, pardacento, medindo 266mm X 202mm. Escrito em tinta preta, esmaecida pelo tempo. Consta de 18 linhas. Papel vincado ao meio. À margem esquerda, há marcas deixadas pelo fogo, manchas, rasgões e dobras. Trechos riscados pelo poeta às linhas: 6, 7, 8, 9, 11, 14 e 15. Furos no papel: margem direita, entre as linhas 1 e 2, e na parte inferior. As bordas do papel estão dobradas e rasgadas. Manchas de tinta atingem as palavras estão, L. 2, e vozes, L. 17. Mancha escrita medindo, aproximadamente, 159mm X 146mm.

Tipos de correção

I. Substituição por sobreposição

1 - 2. S©ismam. < † > / E\u ella tem a(l)ma. < a > /A\ lma (sic) brancas e †               (L. 5)

3 – 4. < †> / C\ riam alma teu <s> /g es\ tos, † e voz(e)s        (L. 17)

 

II. Supressão

1. < Almas † >                                                                                     (L. 6)

(SN)

2. < Pelos (?) juramentos (?) da alma dos. >                                 (L.7)

(Ffrag.)

3. < Irmãs dos tejupares das conchas (?) e pedro(u)ças (?). >   (L. 8)

(F) (verso)

4. < Quasi † dos homens (?). irmans dos tejupares >                   (L. 9)

(F)

5. < Ver que. >                                                                                  (L.11)

(Ffrag.)

6. < † >                                                                                               (L. 14)

7. < Irmans dos teju(pa)res >                                                         (L. 15)

(SN)

 

Gênese do poema: etapas da escritura

Texto marcado pelas hesitações do autor, daí o grande número de supressões (riscados), além das palavras que aparecem faltando letras, outras ilegíveis, fatos que refletem a velocidade da escrita (palavras ilegíveis, L. 8, 9, 13, 14); construção sem sentido, L. 5; falta de letras ou sílabas: S©ismam, L. 5; Alma(s), L. 5; a(l)ma, L. 7; teju(pa)res, L. 15; teu(s) gestos, L. 17. O autor abandonou vários versos, inclusive o último. Pode notar-se, então, que as transformações textuais manifestaram-se no nível da escrita. São dois momentos interligados e sobrepostos de intervenção autógrafa, que acontecem simultaneamente, ou seja, à medida que o autor escreve seu texto, vai fazendo-lhe os ajustes, buscando a forma mais expressiva: A1. O texto, porém, fica inacabado.

Em fevereiro de 1917, o autor procurava pelo “borrão” desses versos, que continuou nas mãos de Durval, pois esse documento se encontrava com o Sr. Julival de Moraes, filho de Durval de Moraes. Além disso, não se tem notícia da publicação deste poema. Segue trecho da carta:

(...)

Assim tambem uns versos começados que te mostrei / na ultima (não corta o t) viagem. Não sei se os levaste ou se per- /di ou deixamos lá na casa, em S. José... / São do Mar - sobre uma canôa. Versos alexandrinos. / O borrão destes versos está illegivel agora e mesmo / sem as correcçoes. <creio> Estão em estado <do> amorpho. / Deus permitta que em tuas mãos estejam. / Do Mar nada quero perder. [5]

A Tabela 1 permite observar que 100 % das mudanças realizaram-se no curso da escrita, sendo 63,6% de supressões e 36,4% de substituição por sobreposição.

 

TABELA 1 – Ocorrência e freqüência dos tipos de correção em

[As canoas apontam ...]

POEMA

TIPOS DE CORREÇÃO

Total

(níveis e

momentos)

%

[AS CANOAS APONTAM...]

SF

SS

S

Ad

SE/M

Ac

D

N° de doc.

0036

N/M

A1

 

 

 

4

 

7

 

 

 

 

 

11

100

(tipos de correção)

%

 

 

36,4

 

63,6

 

 

 

 

 

100

                   

Como se trata de uma tentativa de dar forma aos versos que vêm à mente do poeta, as transformações textuais aqui realizadas dizem respeito ao nível da estrutura sintática (SN (2), F (2), verso, Ffrag. (2), parte de verso).


 

Considerações acerca do processo de construção do texto poético
por Arthur de Salles

Partindo-se do registro das variantes autorais, bem como de sua localização em relação a sua distribuição nos textos, rascunhos ou cópias limpas, no interior de cada testemunho ou no conjunto deles, procedeu-se à análise lingüístico-estilística para alguns casos que resultou nas observações que se seguem.

O tipo de correção mais encontrado foi o da supressão, para os rascunhos, e o da substituição, para os textos passados a limpo. No conjunto dos manuscritos reunidos, constata-se a supremacia da supressão. A substituição, entretanto, é o tipo de correção comum às duas situações estudadas - no interior de testemunho e no conjunto dos testemunhos de um poema - sendo mais representativa no segundo momento, quando o autor tem a possibilidade de escolher, seja no nível sintagmático ou paradigmático, dentro de um sistema lingüístico, por uma peculiaridade determinada que se ajusta ao pensamento que deseja transmitir. O deslocamento, por sua vez, embora com uma freqüência baixa, é de grande importância no processo de criação, visto que a ordem dos termos na frase determina o ritmo e valoriza as idéias e os sentimentos, proporcionando efeitos variados. A inversão na ordem das palavras dentro do verso tem procurado atender à imposição da métrica, da rima ou da sonoridade, além da intenção de ênfase voltada para o adjetivo, substantivo ou verbo.

Dentre os signos léxicos, predominam as palavras que têm função básica nas frases (substantivos, adjetivos e verbos), certamente porque essas palavras constituem um inventário aberto que permite várias possibilidades associativas de combinação. O manuseio dessas palavras, principalmente dos adjetivos e dos verbos, pelo autor, revela um equilíbrio entre dois aspectos característicos da produção poética de Arthur de Salles, o descritivo e o narrativo. As substituições envolvem, sobretudo, palavras que pertencem à mesma classe gramatical e, muitas vezes, que têm o mesmo valor referencial. Nesses casos, a modificação prima pela concisão, pela expressão concentrada em função da imagem e da metáfora que o poeta deseja construir, valorizando as diferenças entre os sinônimos. Muitas vezes, o autor serve-se de termos habituais, da linguagem cotidiana dos pescadores, em lugar dos termos literários, desprezados. Outras vezes, procura desfazer algumas incoerências. Em qualquer situação, impõe-se o respeito à métrica, à rima e ao conteúdo.

Entre os signos gramaticais, pode-se assegurar que o autor manipula, com maior freqüência, as conjunções, os pronomes e as preposições. O pronome é, geralmente, substituído por outro, atentando-se para o grau de distância em relação à pessoa que fala. A conjunção e a preposição são classes conectivas que estabelecem, entre outras classes, relações de lugar, de tempo, de causa, entre outras. A preposição foi, em muitos casos, substituída por outra, buscando-se respeitar à regência de alguns verbos, quando alterados, e que exigiam, portanto, outra preposição, e ao valor mais apropriado naquele contexto. A conjunção foi muitas vezes suprimida, outras, acrescentada, fato que nos confunde quanto ao seu emprego estilístico. As conjunções mais freqüentes são e, quando e que, todas elas marcam, no discurso, a oralidade, a história que é contada, daí talvez a dúvida do poeta quanto à ação de mantê-las ou suprimi-las.

As alterações concernentes à distribuição dos elementos de natureza sintática revelam-se, no interior de cada testemunho autógrafo, despretensiosas, trata-se de várias tentativas para escrever o verso, na maioria dos casos; enquanto, de um testemunho a outro, nota-se, geralmente, uma preocupação estilística, na busca do sentido mais preciso, no respeito à estrutura melódica da frase, substituindo um verso por outro, preservando-se a idéia principal, acrescentando novos versos, suprimindo outros. O que o autor busca é mesmo a frase perfeita, dentro da forma apurada, construída com todos os seus ingredientes léxicos, gramaticais e rítmicos.

Quando o poeta retorna ao texto ou o reescreve, muda a pontuação. As modificações concernentes à pontuação traduzem o comportamento do autor em duas direções, uma que se revela na ansiedade do primeiro momento de escrita, e, por isso, despropositada, ainda frouxa, mais espontânea; e aquela que resulta de um momento de reflexão, mais racional, quando a pontuação é feita de forma consciente, atendendo-se, em alguns momentos, às normas da gramática, e, em outros, permitindo-se transgredi-la, pontuando de acordo com a emoção do autor.

Da análise do material lingüístico envolvido nessas transformações genéticas, procurou-se caracterizar, ainda que superficialmente, através do ajuste vocabular dos textos, a luta que o autor travou para alcançar o resultado desejado, buscando conciliar as qualidades que as palavras apresentam com sua intenção de comunicar por meio de sua poesia. Os signos léxicos e gramaticais, a estrutura sintática, e os sinais de pontuação revelam que o autor submeteu seus textos a um novo processo de reordenação gramatical, com ênfase para a expressividade poética.

Desse modo, pode-se constatar que, uma vez obtido um discurso eminentemente estruturado, com base nas regras da Gramática da Língua Portuguesa (Glp), o autor passa a ocupar-se de aspectos de ordem estilística, ou seja, reavalia o léxico-base, reordena esse léxico em novas estruturas sintáticas, interfere no sistema gramatical, procede à distribuição e redistribuição dos sinais gráficos de pontuação, construindo conteúdos que vão além dos aspectos semânticos já veiculados pelos signos léxicos, de onde emerge uma gramática individual, estilística, a gramática de Arthur de Salles (Gas).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De tudo que aqui expomos, buscamos caracterizar os papéis assumidos pela Filologia, ciência muito antiga, que teve seu escopo modificado ao longo do tempo, manifestando uma tendência à especialização, que é uma das características da atividade científica contemporânea. Assim, do ponto de vista filológico, cabe ao crítico textual a pesquisa e publicação de textos, enquanto ao lingüista, o estudo dos múltiplos aspectos da história das línguas, sua evolução, as influências externas que receberam, a fragmentação dialetal, bem como todos os fenômenos concernentes aos níveis fonético-fonológico, morfossintático e léxico-semântico. Ambas as ciências, a Filologia e a Lingüística, mantêm uma relação interdisciplinar, apresentam o mesmo objeto material, porém sob perspectivas diferentes.

Essa aproximação da Filologia com a Lingüística tem se mostrado bastante fértil ao longo do tempo, principalmente a partir de meados da década de 80, quando novos critérios foram estabelecidos para estudar as variantes de autor, trata-se da “crítica das variantes” da escola italiana de Gianfranco Contini. Com isso, duas áreas estimularam a atividade editorial: a Lingüística Histórica, com a retomada dos estudos diacrônicos, que tem uma abordagem mais conservadora, justificada pela necessidade de edições adequadas ao estudo lingüístico; e a Crítica Genética, que se ocupa da gênese dos textos literários com base na documentação deixada pelos autores.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Rosa Borges Santos. Poemas do Mar de Arthur de Salles: edição crítico-genética e estudo. 2002. xxxvi + 809 + 56 il. 2v. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

DUARTE, Luiz Fagundes. A fábrica dos textos: ensaios de Crítica Textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993. 144 p.

LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Trad. de Marion Ehrhardt e Maria Luísa Schemann. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1974.

OLIVEIRA, Klebson. Negros e escrita no Brasil do século XIX: sócio-história, edição filológica de documentos e estudo lingüístico. Salvador: UFBA/PPGELL, 2006. 3v. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador.

TELLES, Célia Marques. Que textos são oferecidos aos estudantes?. Revista do GELNE, João Pessoa, ano 5. n. 1 e 2, p. 21-28, 2003.


 


 

[1] Para maiores informações a respeito desse estudo lingüístico, consultar a Tese de Doutorado de Klebson Oliveira, desenvolvida no PPGLL na UFBA.

[2] Fase do processo genético.

[3] Estado do texto num determinado testemunho do processo genético. De acordo com o método de trabalho do autor, certas operações (lingüísticas ou estilísticas) tendem a ocorrer num momento específico do processo (Duarte, Crítica Textual, Glossário, p. 83).

[4] Cf. doc. PO-IS-OM-003:0036-NX:01. Original pertencente ao Acervo do Setor de Filologia Românica da UFBA.

[5] Cf. doc. PR-EP-CO-OM-066: 0324 -XE: 01-02/ JM, fº 2rº, L.1-8. A carta traz local e data: Villa 25-2-917.