As estratégias de cortesia
no Rio de Janeiro Setecentista
as cartas do Marquês do Lavradio

Leonardo Lennertz Marcotulio (UFRJ)

 

Apresentação

O presente trabalho orienta-se para o estudo das formas nominais e pronominais de tratamento encontradas em cartas pessoais escritas pelo Marquês do Lavradio, no Rio de Janeiro, de 1769 a 1776, e a posterior comparação dos resultados encontrados com as formas de tratamento encontradas nas cartas da Bahia, de 1768 a 1769.

D. Luís de Almeida Portugal Soares Alarcão Eça Melo Silva e Mascarenhas, militar e administrador colonial português, 11° Vice-Rei do Brasil, 3° com residência no Rio de Janeiro, 2° Marquês do Lavradio e 5° Conde de Avintes, nasceu em Ribaldeira em 27 de junho de 1729 e faleceu em Lisboa em 2 de maio de 1790, três anos após o seu regresso a Portugal.

Tinha o posto de Brigadeiro do exército português ao ser nomeado Governador e Capitão-General da Bahia, cargo que empossou em 19 de abril de 1768, passando a Vice-Rei e Capitão-General de Mar e Terra do Estado do Brasil, com residência no Rio de Janeiro, onde dá início as suas funções administrativas.

As cartas de amizade do Marquês do Lavradio constituem uma rica correspondência sobre assuntos administrativos e pessoais. Na correspondência particular para o Reino, queixa-se muito de mazelas e as atribui à terra em que se instala.

Parte-se de uma análise quantitativa de natureza variacionista (Labov, 1994) e qualitativa de natureza sócio-pragmática (Bravo & Briz, 2004) na tentativa de controlar as situações interativas interpessoais entre remetente e destinatários. Alguns princípios funcionais sobre o fenômeno da gramaticalização discutidos por Hopper (1991) serão levados em conta para explicar o processo evolutivo de Vossa Mercê para você. Pretende-se ainda:

a) identificar os contextos lingüísticos e extralingüísticos que condicionam os usos das formas de tratamento;

b) verificar se as estratégias de tratamento utilizadas nas cartas são as mesmas localizadas em corpora diversificados dos séculos XVIII e XIX (peças de teatro popular brasileiras e portuguesas e cartas oficiais e não-oficiais escritas), segundo os trabalhos de Lopes & Duarte (2003), Silvia & Barcia (2002) e Machado (2003) demonstraram;

c) evidenciar se o sincretismo entre a segunda e a terceira pessoas, que acaba por se estabelecer em português, já ocorria nas cartas setecentistas escritas por um português residente no Rio de Janeiro, como observado por Machado (2003) para uma amostra de cartas do século XIX.

 

Análise dos resultados

Foram identificadas diferentes formas nominais e pronominais de tratamento nas cartas do Marquês do Lavradio que constituem o corpus de análise. A tabela I apresenta a distribuição dos dados totais segundo as estratégias mais freqüentes de se dirigir ao interlocutor.

Formas de tratamento

Tu

Você

Vós

V. Mcê

V. Sª

V. Exª

Total

 

Número de ocorrências - Freqüência

Bahia

47-24%

36-19%

4-2%

-

-

105-55%

192-100%

Rio de Janeiro

51-31%

28-17%

6-4%

1-1%

1-1%

75-46%

162-100%

Total

98-28%

64-18%

10-3%

1-0%

1-0%

180-51%

354-100%

Tabela I: Formas nominais e pronominais de tratamento utilizadas nas cartas do Marquês do Lavradio: todos os dados

Observa-se, a partir da análise da tabela I, que há um emprego significativo de Vossa Excelência, tanto na Bahia (55%), como no Rio de Janeiro (46%), forma de tratamento cortês, que se opõe a outras formas de tratamento. Em um primeiro momento, parece não haver variação significativa entre as duas localidades investigadas. Observem-se alguns exemplos das diferentes estratégias localizadas nas cartas:

(1) Meu irmão, amigo e senhor do meu coração ainda que já estarás enfadado de tantas cartas minhas, tem paciência, que eu não devo deixar de partir dêste pôrto sem que por eles faça chegar à tua presença, esta prova mais da minha amizade.

(Carta 53, ao irmão, Conde de São
Vicente, em 8 de março de 1769.)

(2) Meu irmão, e senhor do meu coração, sem embargo de não ter ainda recebido carta nenhuma de você depois que me acho neste Governo que fazem já oito meses que não quero deixar de segurar a você o meu amor e a minha saudade. Estimarei que você tenha sempre passado como eu lhe desejo, e que já costumado aos rigores da Província não tenha nela continuado a experimentar nenhuma moléstia.

(Carta 229, escrita para o irmão, Dom
Martinho de Almeida, em 23 de junho de 1770.)

(3) Eu teria interrompido o vosso sossego mais vêzes com as minhas cartas se não temesse o incomodar-vos, agora que vós animais êstes meus desejos, não deixarei de ir à vossa presença sempre que me fôr possível a protestar-vos o meu profundo respeito.

(Carta 77, dirigida ao tio, Conde
de Resende, em 1º de maio de 1769.)

(4) Estimo que V. Mcê continue a passar tão bem como eu lhe desejo, e que a inconstância das estações que houve o ano passado em Europa em nada prejudicasse a boa saúde e disposição de V. Exª.

(Carta 174, escrita para o tio, Sr. Principal
de Almeida, em 20 de fevereiro de 1770.)

(5) A tua carta que recebi por estes navios foi a primeira que me chegou tua às minhas mãos depois que vim para América, nas cartas de nosso amado Prado sempre lhe fazia mil recomendações para os meus amigos, com vocês ajustei que quando escrevesse a um os outros todos tomassem também aquela por sua; é certo que as respostas do Prado me puseram em bastante desconfiança sobre a sua amizade de vocês para comigo, porque sendo as minhas cartas para ele muito compridas para que pudesse caber a cada um quatro ou cinco regras, no caso de quererem brigar pela repartição, vi ir diminuindo as suas respostas de tal forma, que imaginei assim me sucedia com os meus amigos, e como a política de Prado me não queria mostrar quais eram os que de mim se não lembravam, me não resolvi a escrever que aqueles que pelas suas cartas me mostravam que de mim se não esqueciam; tudo isso são umas justificações tão forte que a respeitável prudência de V. Sª não deixará de atende-las com a mais terna piedade.

(Carta 181, destinada ao primo Conde de
São Paio, em 20 de fevereiro de 1770.)

Verificou-se também a presença de formas nominais de tratamento, como Senhor e Senhora. Entretanto, tais formas somente são utilizadas com função vocativa e introdutória das cartas, não apresentando nenhum condicionamento social, visto que se referem a diferentes tipos de destinatários, pertencentes a diferentes posições na hierarquia social familiar e que apresentam diferentes graus de parentesco com o remetente. Essas estratégias evidenciam tais usos como tão somente tradições discursivas relativas aos textos epistolares do Marquês do Lavradio.

Em relação à distribuição das formas de tratamento segundo um destinatário específico, têm-se:

Destinatário

Parentesco estabe-lecido

Bahia

Rio de Janeiro

Carta

Forma(s) de tratamento

Carta

Forma(s) de tratamento

Condessa de São Vicente

mãe

50

V. Exª

383

V. Exª

Principal de Almeida

tio

28

V. Exª

174

V. Exª / V. Mcê

Conde de Azambuja

tio

22

V. Exª

214

V. Exª

Conde de Resende

tio

77

V. Exª / Vós / Tu

268

Vós / Tu

Conde de São Vicente

irmão

53

Você / Tu

485

Tu

74

V. Exª / Tu

230

Tu

Dom Martinho

irmão

31

Você / Tu

229

Você

Antão de Almada

primo

2

Tu

165

Tu

Conde de Valadares

primo

47

V. Exª

140

V. Exª

Conde de Povolide

primo

7

V. Exª

442

V. Exª

Conde do Prado

primo

42

Você / Tu

180

Tu

Marquês de Penalva

primo

29

V. Exª

373

V. Exª

Conde de São Paio

primo

61

Tu

181

V. Sª/Você/Tu

82

Você / Tu

421

Você / Tu

Marquês de Angeja

primo

81

V. Exª

419

V. Exª

Conde de Tarouca

filho

30

V. Exª

517

Você / Tu

Conde de Vila Verde

filho

56

V. Exª / Você

518

Você

Tabela II: Formas nominais e pronominais de tratamento
utilizadas em relação a um destinatário específico

 

As diferentes estratégias
em função das relações interpessoais estabelecidas

A tabela a seguir evidencia as freqüências de uso das formas de tratamento em função do destinatário da carta:

 

 

Destina-tário

Local

Formas de tratamento

Total de ocorrên-cias

Tu

Você

Vós

V. Mcê

V. Sª

V. Exª

Mãe

BA

-

-

-

-

-

17-100%

29

RJ

-

-

-

-

-

12-100%

Total

-

-

-

-

-

29-100%

Tios

BA

1-4%

-

4-16%

-

-

20-80%

55

RJ

1-3%

-

6-20%

1-3%

-

22-74%

Total

2-4%

-

10-18%

1-2%

-

42-76%

Primos

BA

21-26%

9-11%

-

-

-

50-63%

167

RJ

39-45%

6-7%

-

-

1-1%

41-47%

Total

60-36%

15-9%

-

-

1-1%

91-54%

Irmãos

BA

25-63%

12-30%

-

-

-

3-7%

57

RJ

10-59%

7-41%

-

-

-

-

Total

35-62%

19-33%

-

-

-

3-5%

Filhos

BA

-

15-50%

-

-

-

15-50%

46

RJ

1-6%

15-94%

-

-

-

-

Total

1-2%

30-65%

-

-

-

15-33%

Tabela III: Uso das formas de tratamento em função do destinatário da carta

Observa-se na tabela III que, embora as cartas sejam de caráter pessoal, são utilizadas formas de tratamento diferenciadas entre si a depender do tipo de relação estabelecida entre o emissor e o destinatário.

Nas cartas destinadas à mãe e aos tios, em que há uma relação interpessoal assimétrica ascendente, a forma nominal de tratamento Vossa Excelência apresenta-se como a estratégia mais produtiva, tanto na Bahia, quanto no Rio de Janeiro, ao passo que nos documentos destinados aos filhos, constituindo assim uma relação assimétrica descendente, você apresenta-se como a forma mais produtiva no Rio de Janeiro (94%). É interessante observar que na Bahia há uma situação de equilíbrio, com metade das ocorrências de você e os demais 50% de V. Exª. Isso pode ser explicado pelo fato de o Marquês do Lavradio ter acertado o casamento de uma de suas filhas com um oficial da corte portuguesa. Até o momento da decisão do matrimônio, o Marquês se dirigia ao filho, que na verdade era seu genro, por V. Exª. Após a contração do matrimônio, passa a tratar-lhe de você, como podemos ver no seguinte fragmento:

(6) Meu querido filho e senhor do meu coração, a verdadeira amizade que V. Exª há tanto tempo me devia, deve fazer a V. Exª mais um argumento do lugar que terá na minha estimação esta nova aliança, a grande qualidade de V. Exª, as suas nobilíssimas circunstâncias bastariam para o nôvo parentesco com V. Exª, e com a sua Ilma Casa me ser sumamente estimável junte V. Exª a estas razões (que só por si sobejavam) as da amizade, e carinho de que V. Exª já me era devedor; finalmente meu filho eu estou cheio da maior consolação, e maior gôsto com êle lhe dou a você e os recebo também muitos, e muitos parabéns, e não sofrendo já o meu contentamento que eu deixe de tratar a você com aquele carinhoso tratamento do nosso nôvo parentesco, eu me sirvo já dele não só para lhe mostrar o meu amor, mas porque como estas notícias as recebo já a tempo de você ter tido mais liberdade com minha filha, posso tê-la também de o tratar com menos cumprimento.

(Carta 56, escrita para o “filho” Conde de
Vila Verde, em 8 de março de 1769.)

Consoante Santos (2002), o casamento era imprescindível para o funcionamento do mecanismo de formação de alianças, cujo objetivo era aumentar o prestígio político de uma Casa sempre em função de sua sobrevivência e reprodução. Não poderia ser diferente na constituição da rede de interlocutores do Marquês do Lavradio. O entendimento do casamento, como forma de constituição de alianças, deve derivar da aceitação de sua prática como ato eminentemente político. O casamento, visto como uma forma de manutenção do poder político, permaneceu como um negócio familiar, um contrato que construía redes de aliança e solidariedade econômicas, políticas ou sociais entre famílias. Era um acordo legalizado entre famílias, mais do que entre indivíduos. O casamento legal era condição fundamental para a estabilidade econômica, busca de “status”, ascensão social e obtenção, em muitos casos, de posições administrativas.

Nas cartas dirigidas aos irmãos e primos – relações simétricas – há uma maior variação quanto à distribuição das formas, predominando o uso de tu forma de tratamento íntimo – nas relações entre irmãos (BA, 63% e RJ, 59%), e o uso de V. Exª – tratamento de respeito – nas relações entre primos (BA, 63%, RJ, 47%). Vale destacar que as cartas destinadas aos primos apresentam a presença mais notória e significativa de diferentes formas de tratamento, prevalecendo a forma nominal Vossa excelência sobre as formas consideradas mais informais você/tu.

Observa-se apenas um dado de Vossa Mercê, numa carta para um tio, e um dado de Vossa Senhoria, numa carta dirigida a um primo. Verifica-se, também, que as ocorrências de vós são registradas unicamente nas cartas destinadas a um dos tios, apresentando-se como uma forma não-predominante (16% na BA e 20% no RJ). Pode-se dizer, que nas cartas analisadas, a forma vós ainda carregava uma carga de cortesia/respeito, como no seguinte exemplo:

(7) Meu Tio, meu Amigo e meu Senhor. Uma e mil vezes vos agradeço a generosa compaixão com que me favoreceis, permitindo-me a fortuna e honra de cartas vossas com as quais tenho a gostosa satisfação de saber da vossa boa saúde que não só vo-la desejo sempre, mas igualmente que com ela tenhais na vossa Exmª casa as maiores felicidades (...)

(...) Perdoai-me meu Senhor o ter sido tão extenso e permiti-me em toda a parte as vossas ordens, que executarei sempre com a mais respeitosa amizade.

Deus vos guarde muitos anos.

(Carta 268, escrita para o tio, Conde de
Resende, em 18 de novembro de 1770.)

A tabela IV, por sua vez, sintetiza a distribuição das formas de tratamento por níveis de relações pessoais:

Tipo de
relação
entre os
informantes

Local

Formas de tratamento

Total de
ocorrências

Tu

Você

Vós

V. Mcê

V. Sª

V. Exª

De superior
para inferior

BA

-

15-50%

-

-

-

15-50%

46

RJ

1-6%

15-94%

-

-

-

-

Total

1-2%

30-65%

-

-

-

15-33%

Deinferior
para superior

BA

1-2%

-

4-10%

-

-

37-88%

84

RJ

1-2%

-

6-14%

1-3%

-

34-81%

Total

2-2%

-

10-12%

1-1%

-

71-85%

Entre
membros
do mesmo
grupo social

BA

46-38%

21-18%

-

-

-

53-44%

224

RJ

49-47%

13-13%

-

-

1-1%

41-39%

Total

95-42%

34-15%

-

-

1-1%

94-42%

Tabela IV: Uso das formas de tratamento
em função das relações hierárquicas emissor-destinatário

Os resultados apresentados na tabela IV mostram um uso mais freqüente da forma nominal Vossa Excelência nas relações hierárquicas assimétricas ascendentes, ou seja, de inferior para superior, evidenciando a manutenção de um caráter de distanciamento e cortesia nas formas nominais de tratamento.

Observa-se também o predomínio da forma você marcando relações assimétricas descendentes, ou seja, de superior para inferior. Isso fica mais claro nas cartas do Rio de Janeiro do que nas cartas da Bahia, pelo motivo da formação das alianças matrimoniais anteriormente exposto. Nas relações simétricas, entre membros de um mesmo grupo social, detectou-se uma ampla diversidade de estratégias, com produtividade significativa para a forma pronominal tu no Rio de Janeiro (47%) e para a forma V. Exª na Bahia (44%).

 

Os indícios da inserção de você no sistema pronominal

Conforme discutido em Rumeu (2004), a forma você, em vias de gramaticalização, apresenta um comportamento híbrido em cartas dos séculos XVIII e XIX, ou seja, pode-se observar a persistência de traços nominais no pronome que está “nascendo”. Em outras palavras, a forma você estaria se gramaticalizando. Esse processo ocorre quando um item lexical torna-se gramatical, sofrendo umdesbotamento semântico e erosão fonética, podendo chegar a perder sua variabilidade sintagmática.

Examinando os dados à luz dos princípios da gramaticalização discutidos por Hopper (1991), utiliza-se, particularmente, o princípio da decategorização, no qual algumas marcas morfológicas e propriedades sintáticas da categoria original (a forma nominal Vossa Mercê) são neutralizadas ou perdidas, assumindo os atributos da categoria-destino (pronome de 2ª pessoa).

Através desse princípio, pode-se analisar o fenômeno do sincretismo entre formas de 2ª e 3ª pessoas, isto é, a possibilidade de a forma você se combinar com formas de 2ª pessoa, como te/teu/tua, uma vez que deixa de ser exclusivamente um nome e passa a se comportar, de certo modo, como uma forma pronominal.

Machado (2003), estudando esse mesmo fenômeno, verifica a presença desse tipo de combinação em uma amostra de cartas brasileiras da segunda metade do século XIX. Marcotulio (2005), analisando uma amostra de cartas do Marquês do Lavradio escritas no Rio de Janeiro, não detectou a combinação de formas de 2ª pessoa com a forma em gramaticalização você. Entretanto, neste trabalho, com a seleção de outras cartas escritas no Rio de Janeiro e de cartas da Bahia, pôde-se observar, ainda que em pequeno número (quatro dados no total) a presença do sincretismo entre P2 e P3. Sabemos que não se podem fazer generalizações a respeito do assunto, mas já dispomos de indícios, e dessa vez, comprovados por meio de exemplos, que o fenômeno já ocorria na segunda metade do século XVIII, como mostra a tabela abaixo e os exemplos que a seguem:

Local

Carta

Parentesco

Forma de
tratamento

Possessivo

Complemento

P2

P3

P2 (te)

P3 (o/lhe)

BA

42

primo (Conde do Prado)

Tu

3

 -

7

 -

Você

1

 -

 1

1

31

irmão (Dom Martinho)

Você

 -

3

2

2

Tabela V: Sincretismo entre P2 e P3

(8) De tôda a minha comitiva aceite você mil recomendações, e de mim a grandíssima vontade com que sempre te darei gosto. Deus te guarde muitos anos.

(Carta 31, destinada ao irmão, Dom Martinho,
em 15 de dezembro de 1768.)

(9) Meu primo, e senhor de todo o meu coração quando tu te enganas comigo, entendeste que eu não daria às tuas cartas, tôda aquela veneração e respeito que devo, e por essa razão me escreveste em figura de relíquia pela pequeneza dela, pois não senhor, pode você escrevê-las compridas e quanto maiores forem, mais indulgências trarão; regule-se você pelo tamanho das minhas cartas que tem recebido, exceto esta e satisfaço-me, que sejam como metade das minhas, e se a você lhe custa tanto escrever de mão própria como a mim, o nosso amigo Gouvea a quem muito me recomendo poderá continuar o seu antigo e sempre memorável exercício; em uma palavra Senhor Conde, eu quero muitas, e tôdas boas novas de você e de tôda tua Exma. Casa pelo verdadeiro interêsse com que sempre te professo a mais pura amizade.

Eu meu Prado vou passando, suando custando-me, e gemendo mais que o nosso Compadre verdade verdade cada vez me parece isto mais insuportável, e se tu visas a vida a que estou reduzido te pareceria impossível o eu resistir, e sujeitar-me a ela.

(Carta 42, destinada ao primo Conde de
Prado, em 1º de fevereiro de 1769.)

A carta que constitui o exemplo (8) é destinada a Dom Martinho de Almeida, irmão do Marquês do Lavradio. Observa-se que durante toda a carta, o Marquês o trata de você, como sinal de proximidade e confiança. Entretanto, no último parágrafo, verifica-se a presença da forma te relativa à segunda pessoa do singular.

O fragmento (9), relativo à carta escrita ao primo Conde de Prado, verifica-se exatamente o oposto. A forma de tratamento tu apresenta-se como a estratégia mais produtiva nessa missiva e coexiste com a forma você, presente em menor quantidade.

É interessante notar, nesta carta, que o remetente começa tratando o destinatário de tu, como mencionado, de modo a estabelecer um ambiente de proximidade e confiança. De repente, o marquês do Lavradio muda o tom que antes utilizava e passa a ser um pouco mais formal, tratando o seu destinatário de você. Se observarmos o trecho em itálico dentro do fragmento (9), rapidamente chegamos à conclusão de que a troca de tu por você não é gratuita ou inconsciente como ocorre em (8), mas pelo contrário, observa-se uma motivação pragmática que justifica a troca de tratamento, de modo a representar um maior distanciamento, ameaça, cobrança e até mesmo, repreensão. Passado o momento de “bronca” e “queixa”, o Marquês volta a utilizar a forma tu.

Essa “mistura” de formas de tratamento apresenta-se em um contexto mais marcado em (9) e em um contexto menos marcado em (8), o que nos leva a concluir que o contexto (8) representa um contexto mais inovador, ao passo que (9) seria um contexto mais conservador, visto que é necessária uma motivação para que a mescla de paradigmas ocorra.

Esses dados, ainda que poucos, nos levam a considerar que se em meados do século XVIII existia um contexto mais inovador, é porque esse mesmo contexto foi caracterizado como conservador antes, isto é, para que um falante pudesse utilizar formas de segunda e terceira pessoas para um mesmo destinatário, sem consciência e / ou motivação pragmática (como no exemplo 8), significa que, diacronicamente, houve a necessidade de um contexto mais marcado para essa situação, dado que contextos mais inovadores foram conservadores algum dia. Esses indícios de sincretismo de P2 e P3 são evidências que essa “mistura” de tratamentos acontecia bem antes de meados do século XVIII, recorte temporal utilizado nessa investigação.

Através dos resultados obtidos, pode-se demonstrar, com o intuito de entender, discutir e desmistificar o preconceito lingüístico que se construiu ao redor do tema, que apesar de ainda ser condenada pelo ensino tradicional, a combinação de você com formas de 2ª pessoa era comum no início do seu processo de pronominalização.

Dessa forma, observemos a tabela a seguir que ilustra os dois casos de sincretismo encontrados no corpus de análise:

carta

destinatário

parentesco

forma de
tratamento
predominante

forma de
tratamento
 alternante

contexto

motivação
 pragmá-tica

31

Dom Martinho de Almeida

irmão

você

tu

[+ inovador]
[- marcado]

 -

42

Conde do Prado

primo

tu

você

[+ conservador]
[+ marcado]

ameaça,
cobrança, repreensão

Tabela VI: tipo de contexto e motivação pragmática
por carta com sincretismo entre P2 e P3

Em síntese, observa-se que na carta destinada ao irmão ocorre a combinação da forma você com formas de 2ª pessoa em contexto não marcado, sem a presença de nenhum tipo de motivação pragmática por parte do emissor. Por outro lado, na carta destinada ao primo, a alternância de tu com você e a conseqüente combinação de você com formas de P2 é marcada por um tom de ameaça, cobrança e/ou repreensão.

 

Considerações finais

Verificou-se que as formas nominais e pronominais de tratamento identificadas nas cartas particulares escritas na Bahia e no Rio de Janeiro, no século XVIII, são as mesmas que se localizam nas peças teatrais portuguesas e brasileiras dos séculos XVIII e XIX e nas cartas oficiais e não-oficiais do mesmo período (Silva & Barcia, 2002, Lopes & Duarte, 2003, Machado, 2003) e nas próprias cartas do marquês do Lavradio escritas no Rio de Janeiro (Marcotulio, 2005).

Nas relações assimétricas ascendentes, a forma nominal de tratamento cerimonioso V. Exª. apresenta-se como a estratégia mais produtiva nos laços de família em que se identifica certo distanciamento e cortesia entre o remetente e destinatário.

Nas relações simétricas e assimétricas descendentes, a abrangência e coexistência de diferentes formas tratamentais – você, tu, V. Sª. e V. Exª.—pode estar determinada por fatores que extrapolem os laços familiares.

Há o predomínio da forma você nas relações assimétricas descendentes, isto é, de superior para inferior, o que confirma o seu status de variante em processo de gramaticalização. nas relações simétricas, entre membros do mesmo grupo social, detectou-se uma ampla diversidade de estratégias, com produtividade significativa para a forma pronominal tu, no Rio de Janeiro e para a forma V. Exª., na Bahia.

Em suma, observou-se que a escolha por determinadas formas de tratamento pode estar condicionada pela hierarquia social (estrutura familiar estabelecida entre remetente e destinatário das cartas). Essa categoria conta das relações assimétricas ascendentes e descendentes de família. Entretanto, somente a estrutura familiar e as relações de parentesco não são suficientes para o condicionamento nas relações simétricas. Nesse caso, a hierarquia de títulos, diferença de idades, o cargo ocupado pelo destinatário e as intenções comunicativas determinaram as escolhas lingüísticas.

Verificou-se também, nas cartas da Bahia, a presença de sincretismo de formas de P2 e P3, não verificada nas cartas do Rio de Janeiro (cf. Marcotulio, 2005). Devido ao pequeno número de dados, não podemos fazer generalizações a respeito de todas as cartas escritas pelo Marquês. Entretanto, pode-se concluir que a “mistura de tratamento existia, ainda que de uma formatímida em cartas do século XVIII. Observou-se sincretismo em dois contextos específicos: em um mais inovador, no qual não havia motivação pragmática para a mescla; e um contexto mais conservador, no qual a alternância de formas era feita de forma consciente, através de uma motivação pragmática por parte do emissor da mensagem, de modo a causar / obter algum efeito desejado no receptor.

Para concluir, fica o convite a novos aventureiros que queiram se enveredar pelo estudo da história da língua portuguesa no Brasil, para que se possa desmistificar alguns (pré)conceitos que acabaram virando normas, rígidas e severas, ditadas pelo ensino tradicional.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOPPER, P. On some principles of grammaticization. In: TRAUGOTT, Elizabeth Closs & HEINE, Bernd. (eds.). Approaches to grammaticalization, volume I, Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins Company, 1991.

LABOV, W. Principles of Linguistic Change: Internal Factors. Oxford: Blackwell, 1994.

LAVRADIO, M. Cartas do Rio de Janeiro (1769-1776). Rio de Janeiro: Instituto Estadual do Livro, 1978.

––––––. Cartas da Bahia (1768-1769). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972.

LOPES & DUARTE, Maria Eugênia Lamoglia. Notícias sobre o tratamento em cartas escritas no Brasil dos séculos XVIII e XIX. Rio de Janeiro, 2003 [mimeo].

MACHADO, Ana Carolina Morito. A variação entre você e tu no século XIX: o comportamento inovador das mulheres. São Paulo, Versão preliminar do trabalho apresentado no LI GEL, [no prelo].

MARCOTULIO, L. L. A estrutura familiar e a interação social no condicionamento das formas de tratamento: textos epistolares escritos no Rio de Janeiro do séc. XVIII. In: SANTOS, Deize V. dos (org.). Inicia – Revista da Graduação em Letras da UFRJ. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2005.

SANTOS, Fabiano Vilaça dos. Trajetória política e ação colonizadora: a revitalização do Império Colonial Português na administração do Marquês do Lavradio. Dissertação de Mestrado em História – Programa de Pós-graduação em História. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ, 2002.

SILVA, Andreza & BARCIA, Lucia Rosado. Formas nominais e pronominais de tratamento nos séculos XVIII e XIX. Trabalho apresentado na XXIII Jornada de Iniciação Científica e XIII Jornada de Iniciação Artística e Cultural. Rio de Janeiro, 2002.