AS INTERFERÊNCIAS DA CENSURA
EM TEXTOS TEATRAIS BAIANOS

Ludmila Antunes de Jesus (UFBA)
Rosa Borges dos Santos (UFBA e UNEB)

 

INTRODUÇÃO

Na década de setenta a institucionalização da censura em nome da “Segurança Nacional” , do “combate ao comunismo”, “da moral e dos bons costumes”, levou o Brasil a um clima de medo, insegurança e intranqüilidade. O país vivia o momento mais duro da ditadura militar: suspensões dos direitos constitucionais, perseguições, prisões, torturas aos estudantes, professores, militantes, escritores e artistas.

No meio artístico-intelectual, cinema, televisão, música e teatro, a censura interferia em produções que sugeriam a reprodução de uma realidade simbólica brasileira indissociável da função política, social e moral. O teatro, assim como todas as outras formas de expressões artísticas, era visto como ameaça ao regime ditatorial, pois tinha também o poder de despertar o público para a reflexão política e social do país, como afirma Yan Michalski em depoimento a Sonia Salomão Khéde:

Os ventos de uma tomada de consciência nacionalista, de uma recusa das influências colonizadoras, da busca de uma maior justiça social, de uma melhor distribuição de renda. [...]. Em muitos poucos anos, esses pontos de vista se tornaram absolutamente predominantes e quase que monopolizaram a temática do melhor teatro brasileiro [...]. Então, com os acontecimentos de 64 [...] o teatro já vinha a priori com uma imagem de suspeito de ser um grande aliado da situação que tinha acabado de ser derrubado. [...] em função dessa aliança implícita entre o teatro e a situação derrubada pelo golpe de 64 é que o teatro foi colocado imediatamente sob suspeita [...] uma espécie de inimigo público [...] (Khéde, 1981: 116)

Nesse período alguns textos teatrais eram destinados a produções apenas comerciais e poucos autores ousavam escrever qualquer proposta que colocasse a peça em risco de não passar pelos censores. Outros usavam alternativas diversificadas como o uso da metáfora na linguagem cênica, para burlar a censura e escreviam o que era “proibido”.

Na Bahia, pode-se resgatar a memória das interferências da censura aos textos teatrais no Acervo do Espaço Xisto Bahia, em Salvador, sob a responsabilidade de Edvalter Lima. São mais de mil textos de teatro adulto e infantil que estão marcados pela censura seja do Departamento da Polícia Federal (D.P.F.) seja da Sociedade Baiana de Teatro (SBAT). É necessário esclarecer que as peças teatrais deste acervo são textos produzidos na Bahia, ou seja, muitas peças são adaptações e outras são textos teatrais de autores baianos.

Figura 01- Espaço Xisto Bahia: textos

Figura 02 - Espaço Xisto Bahia: fotos de peças teatrais
organizados em pastas encenadas na Bahia


 

Para a elaboração deste trabalho que aborda as interferências da censura ao texto do autor, foram selecionados apenas os textos censurados e cortados, compreendendo um corpus de 44 peças. Durante a leitura e descrição dos testemunhos notou-se que os textos teatrais traziam diversidade quanto ao número e tipo de testemunhos e quanto as marcas do censor.

Quanto aos testemunhos, vê-se que Em A flor da pele de Consuelo de Castro, por exemplo, encontram-se três testemunhos: o original doado por Reinaldo Nunes, em 25/01/86, o original da 3ª via enviada ao Departamento e a Xérox da publicação na Revista de Teatro, em julho-agosto de 1971. Em A terceira revelação de Jaime Oliveira só há um testemunho; o original da 3ª via enviado ao Departamento da Censura. Assim, têm-se, neste acervo, textos originais, textos de segunda ou terceira via enviadas ao Departamento de Divisão de Censura de Diversões Públicas da Bahia e cópias dos textos teatrais publicados na Revista de Teatro.

Além da heterogeneidade da classificação dos testemunhos, há também uma diversidade quanto à documentação enviada ao Departamento da censura Federal. Em alguns textos como Check-up de Paulo Pontes há o certificado do Departamento da Censura de diversões Pública (D.C.D.P.) indicando os números dos fólios que sofreram cortes.

Figura 03: fac-símile do certificado da censura
na peça Check-up de Paulo Pontes

Em outros textos como Eu quero é fazer Blup Blup com você de Criação Coletiva, nota-se outros tipos de documentos: no primeiro fólio tem-se o do Pedido de Lúcia Maria Dias dos Santos, produtora da peça, para a apresentação do espetáculo musical, com pauta marcada no Teatro Castro Alves e no terceiro fólio da mesma peça, há um pedido, datado de 03/04/1972, de Lúcia Santos ao chefe da censura da polícia federal, solicitando o especial obséquio de mandar submeter à censura a Revista intitulada Eu quero é fazer Blup Blup com você para ser encenada.

Vale ressaltar que o certificado do Departamento de Censura e os pedido de submissão da peça são documentos que aparecem em poucos textos teatrais.

Quanto a diversificação das marcas do censor nota-se que a presença de riscos, carimbos, e anotações à margem inferior, superior, esquerda ou direita dos textos. Além disso, podem-se encontrar também anotações distintas do(s) censor (es): uma do corte da palavra e a outra após a avaliação do ensaio geral.

Figura 04: Marcas do censor deixadas nos textos teatrais


 

ANÁLISE DOS CORTES: UMA BREVE AMOSTRAGEM

O trabalho em estudo faz parte do Projeto de Pesquisa “Edição e estudo de textos literários e não literários baianos”, coordenado pelas Professoras Rosa Borges (UNEB/UFBA) e Maria da Conceição Reis Teixeira (UNEB), que tem como objetivo resgatar a memória cultural da Bahia através da edição de textos.

A memória da ação da censura nos textos teatrais baianos está marcada por cortes no texto do autor, de cunho moral, social e político. Na análise dos cortes morais estão compreendidos as interferências da censura no texto do autor em palavras como: porra, puta, filho da puta entre outros. Na análise dos cortes socias e políticos têm-se interferências em discursos ideológicos que representavam críticas à sociedade ou a política da época.

Dos corte a conteúdos morais pode-se analisar o texto do grupo Folclórico Viva Bahia que caiu nas malhas da censura mesmo mostrando um espetáculo lúdico, musical, em que trazia ao palco a cultura do negro antes de se tornar escravo. O texto não foi perdoado seja na especificação dos vestuários:

Ode ao dois de julho” - As caboclas levarão tangas de penas, com o peito nu. Os homens levarão tangas.

(Dez anos de Viva Bahia, f.7, L.5-6)

ou seja na descrição da música:

Mulata de peito duro
É duro de natureza
Quem dera ser criança
Pra mamar nestas belezas (Dez anos de Viva Bahia, f.12, L.1-4)

No texto de Jurandyr Ferreira, O homem que morreu por causa da Bahia a temática gira em torno de uma partida de futebol, na fonte Nova, entre os times Bahia e Vitória. Os cortes da censura neste texto incidiam nas seguintes palavras:

Vinte e um  [...] Mas vá você acreditar no amigo e quando precisa também, mais tarde, do amigo (JESTO COM AS MÃOS) <se fode!> Se campa! Amigo <uma porra> [...] (FERREIRA, Jurandyr. O homem que morreu por causa da Bahia, p.12, L..31-33)

Em Feliz aniversário de José Niraldo de Faria, um texto que mostra o fluxo de consciência da personagem Helena nos dias que antecedem o seu aniversário, o poder da censura agiu sobre o seguinte parágrafo:

<As Helenas começam a todar-lhes com suas mãos e suas risadas transformam-se pouco a pouco em gemidos de prazer. Helena começa a sentir-se erotizada como quem se masturba.> (FARIA, José Niraldo de. Feliz Aniversário, p. 2, L.21-24)

Assim, com relação a conteúdos morais, a censura nos textos teatrais baianos agia sobre palavra ou parágrafos que se referiam à nudez, nomes considerados imorais ou chulos e a qualquer referencia ao ato sexual.

Quanto aos cortes sociais e políticos, as maiores interferências da censura incidiram em referências ao sistema da ditadura militar como em:

Mulher 2 - <Fale baixo. Tem um guarda ali na porta . Faz meia hora que levaram um rapaz que estava reclamando.> (João Augusto Azevedo. As artes do crioulo doido, f.7, L.21-22)

<E me contaram que o Presidente chamou o cara e disse:

Olha aqui, fulano, eu vou te dar o cargo de ministro por causa de nossos inúmeros amigos comuns, mais uma coisa você tem que prometer não vai roubar no cargo. “E o cara respondeu: Perdão senhor Presidente, eu fico muito agradecido com a deferência , mas ou eu tenho carta branca ou não aceito”> (Millôr Fernades, Computa, computador, computa f.13 L. 7-13)

Os dois trechos acima revelam que há, de forma explicita, uma alusão ao momento histórico da época como a falta de liberdade de expressão e a falta de caráter dos políticos. O discurso ideológico sócio-político era difundido até em textos de cunho religioso como o de Jaime Oliveira A terceira revelação, que construiu o seu texto baseado em trechos dos livros de Allan Kardec e da bíblia:

<Côro- guerra guerra
          Fome Fome Fome
5- Quero pensar mais não posso
    Quero respirar não consigo
    Quero a liberdade não encontro
    Desejo a paz sou oprimido
    Se digo a verdade sou fuzilado
    Quero amar mas sou proibido>
                           (Jaime Oliveira, A terceira revelação f.5 L.815)

Vê-se que neste texto, a doutrina espírita é apenas pano de fundo para a difusão do discurso social e político do autor.

Assim, verificando os textos e sinalizando que tipo de conteúdo foi cortado pela censura, chegou-se a seguinte conclusão: 44 textos analisados, 63,6% sofreram interferências da censura no que concerne aos conteúdos morais e 52,2% aos sociais e políticos.

Figura 05: Análise dos tipos de interferências da censura em textos teatrais baianos


 

 

TEXTOS TEATRAIS BAIANOS

 

CONTEÚDOS

DOS CORTES

 

Datas

Morais

Sócio-políticos

1-   AZEVEDO, João Augusto ; As artes do Crioulo Doido

1977

 

x

2-   AZEVEDO, João Augusto ; Cordel 5

s/d

x

 

3-   AZEVEDO, João Azevedo; As bagaceiras do amor

1974

x

 

4-   BAHIA, Viva; Dez anos de Viva Bahia

1973

x

 

5-   BRECHT, Bertold (Adaptação de Millor Fernandes); O sr. Puntila e seu criado Matti

1977

x

 

6-   CÂMARA, Isabel; As moças: o beijo final

1976

x

 

7-   CARDOSO, Haroldo ; Tem tem baiano balagandã

1974

x

x

8-   CASTRO, Consuelo ; A flor da pele

1974

x

x

9-   CHECCUCCI, Deolindo; A roupa nova do rei

1977

 

x

10- CRIAÇÃO COLETIVA, ; Eu quero é fazer Blup Blup com você

1984

 

x

11- CRIAÇÃO COLETIVA; Vigarice no país das armadilhas

1972

x

x

12- DINIZ, Luciano; Surra

s/d

x

 

13- DRAGUN, Osvaldo; Os da mesa Dez

s/d

[?1974]

 

x

14- EMANUEL, Paulo; Tentação

1982

 

x

15- FARIA, José Niraldo de; Feliz aniversário

s/d

x

 

16- FERNANDES, Millôr; Computa, computador, Computa

s/d

 

x

17- FERREIRA, Jurandyr; O homem que morreu por causa da Bahia

1974

x

 

18- FRANCO, Aninha ; A rainha

1975

x

 

19- GRIMM, Walter Dultra ; Paradise

s/d

x

 

20- GUARNIERI, Gianfrancesco; Botequim ou céu sobre chuva

s/d

x

 

21- JOCKYMAN, Sérgio ;

s/d

 

x

22- LINHARES, Adelmar Cardoso ; Rafa de sol a sol

s/d

 

 

23- LINHARES, Haydil; O pique dos Índios e ou A Espingarda de Caramuru

s/d

x

x

24- LINS, Osman; Romance dos dois soldados de Herodes

s/d

x

 

25- MATOS, Ariovaldo; Irani ou Interrogação

1976

x

x

26- MEIRELES, Ari; Bastidores

s/d

x

 

27- MELO, Fernando; Greta Garbo, quem diria acabou no Irajá

s/d

x

x

28- MENDES, Antônio; Contas de Senzala

1977

x

 

29- MENDES, Cleide; O bom cabrito berra

s/d

 

x

30- MENDONÇA, Jair Oliveira Pinto de ; Ladrões de Pensamentos

1972

x

 

31- MILLER, Arthur; Depois da queda

s/d

 

x

32- NASCIMENTO, Luciano Palmas; O Rei e a sua corte

s/d

 

x

33- NETO RIBEIRO, Francisco; Em tempo no palco

1978

 

x

34- OLIVEIRA, Jaime; A terceira revelação

s/d

 

x

35- PONTES, Paulo; Check-up

1977

 

x

36- PRATA, Mário; O cordão Umbilical

s/d

x

x

37- RIBEIRO, João Ubaldo; O detetive Bezerra (adaptação)

s/d

x

 

38- SILWAN, Jô Ray; Ottawy- Fábrica de homens

1975

x

x

39- SODRÉ, Alberto e LUTERO, Maurício; Sanitário

s/d

x

 

40- SOUZA, Vitorino Almeida ; Bahia zero hora

s/d

x

 

41- TARSO, Paulo de; A dança da cruz

1974

 

x

42- WHRBBI, Timochenco; A dama das Copas e o Rei de Cuba

s/d

x

 

43- WILLIAMS, Tennessee; Caça as feiticeiras

s/d

x

 

44- YEATS, W.B.; A peregrina

s/d

 

x

Quadro 02- Análise dos cortes nos textos teatrais baianos


 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise feita mostra apenas uma abordagem exploratória das interferências da censura nos textos teatrais baianos, mas que nos levam à algumas considerações. Na Bahia, durante a ditadura militar, houve uma grande produção de textos teatrais de temáticas diversas. Dentre essas temáticas, dos 44 textos analisados, os cortes da censura em conteúdos morais foram mais constantes do que em conteúdos sócio-políticos. Além disso, a leitura e descrição dos testemunhos das peças mostrou que embora o acervo esteja organizado, alguns textos teatrais estão escritos em diferentes tipos de papel que não retém a tinta por muito tempo estando, pois, em processo de apagamento. Assim, cabe ao pesquisador restituir a forma genuína destes textos, evitando o apagamento da memória dos textos teatrais baianos censurados na época da ditadura.

Figura 06: Estrago do tempo no texto de Timochenco Whrbbi;
A dama das Copas e o Rei de Cuba

 


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACERVO DO ESPAÇO XISTO BAHIA. Textos teatrais baianos.

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ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70: teatro. Rio de Janeiro: Europa. 1979-1980.

BENTLEY, Eric. E experiência viva do teatro. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar. 1967.

BENTLEY, Eric. O teatro engajado. trad. Yan Michalski. Rio de Janeiro: Zahar. 1969

FREITAS FILHO, Armando; HOLLANDA, Heloísa Buarque de; GONÇALVES, Marcos Augusto. Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980.

GUINSBURG, J.; COELHO NETTO, J.Teixeira; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988.

KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri. 1981.

MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática. 3ª ed. 1986.

RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro comtemporâneo. Trad. Andréa Stahel M. da Silva. São Paulo: Martins Fontes. 1998.

SANTIAGO, Silviano. Errata In: SANTIAGO, Silviano. 1982. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982.

SANTIAGO, Silviano. Repressão e censura no campo das artes na década de 70. In: SANTIAGO, Silviano. 1982. Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982.