CRÍTICA GENÉTICA:
A INTERFACE COM A ANÁLISE DO DISCURSO

Maria Antonia da Costa Lobo (ABRAFIL)

Para conhecer as coisas, é preciso
buscar-lhes as origens. (Lobo, 1997)

 

Introdução

Antes de se tornar ato discursivo, passa o processo de produção textual por uma criação que supõe a adoção de ritos escriturais de controle do escritor/autor.

Na captação desse trabalho, pela análise de rascunhos, está, de fato, o gesto constituinte da existência da obra, na respectiva textura, onde estão presentes ainda ritos genéticos – a busca da energeia da produção no produto considerado, então, acabado.

Analisar o pensamento estruturado é considerar um conjunto de suportes, as relações entre estes, a rede existente sob a mensagem – um material em ato de discurso, constituinte de um corpus textual.

 

Analisando antecedentes textuais

A prática de um ato desse gênero permite comprovar pegadas deixadas por um escritor/autor (no caso, o memorialista Pedro Nava), na caminhada por ele empreendida, para rememorar a época em que fora aluno do Colégio Pedro II, Internato. Essas pegadas vão dos cadernos, das fichas à obra editada, passando, intermediariamente, pelos originais datilografados ou dactiloscritos, como afirmara o escritor.

Consoante Almuth Grésillon:

Os esboços são precisamente (...) do mais alto interesse, porque permitem que se assista ao milagre da execução; neles se vê o espírito passar inteiramente pela mão que(...) produz tudo o que está no espírito do artista.

Em verdade, os rascunhos revelam uma escritura em ato, ocupada completamente com ela mesma e com a relação do que é por ela nomeado.

No corpus que serviu de base para a análise – no caso, uma obra autobiográfica intitulada Chão de Ferro – os rascunhos permitiram a seleção e o controle da linguagem pelo autor/escritor. Este fragmentou fatos, dados e coisas, recorrendo a acréscimos, substituições, supressões e deslocamentos.

É fundamental ressaltar que a língua, uma vez colocada no papel e em uma situação de narração, forçou acomodações e levou ao deslocamento de elementos, tanto ao nível sintagmático, quanto paradigmático, em um nítido confronto entre o mundo da mente e o mundo da linguagem.

Pesquisando-se as situações transitórias que precederam a obra e contribuíram para a preparação dos rascunhos e para as sucessivas redações, pelas quais o sentido do apresentado nela foi paulatinamente extraído, considerou-se o bloco textual de Chão de Ferro sob o ângulo da produção e como resultado de um métier de (re)escritura agitada, paciente, mas ajustada.

Até que essa obra se mostrasse como ela é, múltiplos espaços brotaram entre a mente do escritor e ela, refletidos no próprio ato de escrever. Houve nele uma intenção e um desejo – interligado ao inconsciente – presentes e manifestos na obra. Estes refletiram-se nos rastros acumulados uns após os outros e que foram por ele deixados.

Tratou-se de uma busca às fontes – fichas e dactiloscritos – originárias dos constituintes textuais, nascidos de uma seleção enquadrada e moldada em um contexto estilístico até o dia em que Pedro Nava julgou Chão de Ferro concluída.

Para isso, não se abandonou o fato de os originais serem, simultaneamente, um produto acabado e um material bruto, um conjunto (inédito, no caso), destinado a várias e múltiplas explorações.

Nesse percurso, passou-se pelas rasuras e pelas conseqüentes opções navianas, constatando-se a execução de seu empreendimento e o encaminhamento de (re)escritura, através da busca (para o autor/escritor) de um texto mais satisfatório – ao menos no instante do nascimento do mesmo – a fim de que se desse o encontro da forma definitiva de Chão de Ferro.


 

O processo de criação em Chão deFferro
– situações de ocorrência

Os originais refletem uma síntese das intenções de Pedro Nava, indicam uma evolução, além de sugerirem o sentido de um projeto, por colocarem em evidência reorientações, a maneira pela qual pareceu necessário ou preferível retificar um itinerário – a busca mais conveniente do texto (pelo menos para Nava). É a informação sobre o que a obra representou e/ou simbolizou para o autor/escritor.

Para a confecção desses originais, Nava utilizou-se de folhas duplas, não pautadas, datilografou-as sempre nas páginas à esquerda, ficando o lado direito das mesmas (extensa margem) reservado a anotações complementares à caneta e/ou à lápis – espécies de acréscimos e de inserções posteriores – fronteiras do escrito e do escrever. E nelas ainda desenhou, fez observações e redigiu notas.

A margem ainda permitiu que o enunciado fosse dividido em dois: com e sem inclusão. Toda a disposição da mesma funcionou como uma relação de idéias brotadas no (in)consciente de Nava.

Às vezes, cobriu de adições essas margens. À medida que o texto foi sendo trabalhado por ele, as adições se tornaram numerosas e mais consideráveis – Nava se expressou diretamente na lingua(gem) que se forjou, recorrendo, às vezes, a outros idiomas: francês, latim, inglês, espanhol, alemão e italiano.

Em um exame feito nas fichas (material anterior aos dactiloscritos) foi possível depreender as minúcias e os maneirismos do autor/escritor.

Para a confecção delas, Pedro Nava se valeu de documentos, de cópias de documentos, de receitas antigas, de cartas, de fotos, de depoimentos, de recortes (colecionados por ele), de desenhos feitos por ele, com a intenção de reavivar a própria lembrança, relativamente a certos indivíduos com os quais conviveu. QUASE TUDO FOI FICHADO.

Nelas, Nava chegou mesmo a fazer longos registros políticos:

O ar de fazer favorece sempre. O serviço público obrigatório – A outorga – as obras são governo de fulano (porque não escrever cara de fulano) etc...O Governo recebe isso normalmente. Pensei em Cláudio Manuel da Costa e acabei de rasgar a palhinha – continuei o corte. (Ficha s/No//fichário-arquivo No 1).

As fichas ainda serviram ao questionamento lingüístico e ao conseqüente estilo apresentado em Chão de Ferro: “ramafalhar – ramarafalhar ramarfalhar (talvez o melhor) de árvores ao vento (rubricado) PN” (Ficha No 24//fichário arquivo No 1).

No referido questionamento lingüístico, Pedro Nava foi além, catalogando o aspecto semântico mineiro:

Em Minas dá-se o nome de “mancebos” a cabides de haste torneada que sustentam suportes para chapéus ou roupas. Tem 3 ou 4 pés embaixo e ficam nos vãos da porta, parede-armário, outros de quarto, etc, etc. (Ficha No 12//arquivo No 1).

Paralelamente a isso, o léxico encontrado em Chão de Ferro é, muitas vezes, formado de inovações estabelecidas pelo escritor e por ele aproveitadas na integração do (con)texto da obra: “mudar o ar = mudá u ar = mudáuar Língua mineira. Viagem 1919 Ceará” (Ficha No 45//Fichário-arquivo No 2).

Realmente, as fichas justificam e confirmam, sem sombra de dúvidas, um Nava memorialista:

Minha vida é um bloco. Com seus ódios e seus amores. Escrevendo minhas memórias é impossível seguir a mim e outros. Não posso. Non possumus. Bloco é tacão de frase de Clemenceau.

V/ a Rev. Francesa. p. 114. História No 374 (Ficha No 48//fichário-arquivo No 1)

Outras vezes, a consulta foi à própria memória (voluntária), organizando fichas com mensagens de conteúdo apenas referencial: “Quem quebrou o rabo do Leão arrogante do Campo de S.Cristóvão, hoje em Edson Passos, foi o Raimundo Nogueira.” (Ficha N° 14 //fichário-arquivo N° 1).

O exame às fichas permitiu um encontro entre o incluído na obra e o que não passou para a obra editada ou o apenas esboçado.

Não se pode esquecer de que há um número muito grande de informações contidas em Chão de Ferro e que elas foram previamente registradas – nada deveria ser perdido no percurso da escritura.

 

Rasuras

À procura de uma identidade completamente original, Nava foi levado a mutilar a produção espontânea, a fim de fazer dela um produto acabado, legível para um público determinado.

A justificativa está no fato de uma construção se desenhar, após a desordem aparente, na descontinuidade dos dactiloscritos que, retrospectivamente, aparecem como o inacabado e/ou o interrompido.

Nava corrigiu abundantemente. De fato, Chão de Ferro foi um perpétuo vir a ser, pela pertinência da dialética do interrompido versus a dialética da escritura. A transformação e o repensar caminharam lado a lado – Pedro Nava escrevia; Pedro Nava (re)lia.

Outrossim, essa tarefa constante de (re)leitura – ativa – permitiu-lhe um duplo movimento que resultou no enriquecimento dos dactiloscritos pelo vaivém com os outros.

O fato é que o escritor esteve sempre à busca daquele termo que lhe traduzisse melhor a realidade, à procura da adição do sintagma que precisasse a percepção da verdade das coisas, o alongamento progressivo e desmedido do período ao fio das (re)escrituras.

Os dactiloscritos permitiram-lhe a desfiguração, a dissolução, as lacunas, os preenchimentos – incluíram-se aqui as interrupções (acidentais ou voluntárias), o abandono, a colocação em espera, o esboço que se situou aquém do acabado, o não-finito.

Ler um rascunho (Claude Duchet, 1994) é tentar identificar nele o que há entre o recusado e o diferido, o abortado e o reservado, o inacabável e o inacabado...

Logo, a reescritura foi um retour en arrière, relativamente ao pensamento e ao inconsciente do autor/escritor, e uma conseqüente reformulação.


 

As opções: acréscimos, substituições,
supressões e deslocamentos

Os originais de Chão de Ferro guardam, nitidamente, os vestígios das hesitações, apresentam, às vezes, escolhas variáveis entre, pelo menos, duas formulações, até mesmo duas seqüências narrativas, diferentes, das quais uma foi definitivamente eliminada.

A mudança pode simbolizar, no geral, uma expressão mais viva do significado ou daquilo a significar.

A velocidade e a própria agilidade (mental) de Nava fizeram-no ultrapassar a composição inicial das idéias, acarretando como resultado a intercalação de informações (novas), a introdução de elementos e fatos recriados e/ou a inclusão de partes que afloraram na imaginação – fonte geradora de ações.

 

Acréscimos / Substituições

Elas mostram de que modo cada elemento da estrutura do discurso pode se realizar em uma infinidade de variáveis, a partir de escolhas do escritor/autor.

Logo no capítulo I, na linha inicial da página 3 da obra editada como: “OS REGIMENTOS mandavam...” é, em verdade, a primeira substituição constatada. Antes Nava registrara: “A praxe mandava...”(p.1 - o.d.).

A alteração foi altamente positiva, uma vez que, assim procedendo, o termo escolhido (REGIMENTOS) conferiu maior e melhor precisão lingüística ao contexto situacional, na justificativa relativamente ao início do ano no Colégio Pedro II.

A especificação foi, de fato, uma constante no estilo naviano em Chão de Ferro.

Na página 11 (o.d.), ela se repetiu com a substituição operada em:

... com o correr do tempo, cada turma ia verificando que aquilo era trovoada seca, trovoada sem chuva e que o nosso professor era o melhor dos homens.” Passou para “... com o correr do tempo, cada turma ia verificando que aquilo era trovoada seca, trovoada sem chuva que o Paranhos era o melhor dos homens.(p. 13 - o.e.)

Caso Nava não tivesse empregado o antropônimo Paranhos, envolveria também o receptor (leitor) como participante na emissão da mensagem. Logo, evitou que esse fato ocorresse.

Com as substituições, o escritor/autor, na imediatice do impulso que o incitou a alterar, permitiu que se detectem associações, lembranças, antecipações... na criação de uma nova imagem no desenvolvimento estilístico da obra.

 

Supressões

As páginas dos dactiloscritos de Chão de Ferro foram também aquinhoadas com supressões.

A ocorrência das mesmas tem, evidentemente, razões de ser. A redundância é uma delas. Na página 56 (obra dactiloscrita), Nava registrara: “As janelas largamente abertas constelavam-se de estrelas.” Daí, suprimiu largamente abertas, conferindo ao período citado a seguinte construção: “As janelas constelavam-se de estrelas.” (p. 61, obra editada).

Ora, sabendo-se que, em verdade, o contido na estrutura acima resultou de uma imagem estilística, pergunta-se: que possibilidade haveria em uma janela fechada para constelar-se de estrelas?

A premissa imagística já contém por si só uma dose de assertiva. A expressão largamente abertas apenas ajudaria a identificar o tipo de abertura dado, naquele momento, às janelas.

A supressão impediu, às vezes, que localizações chegassem até o receptor (leitor) da obra editada (p.97): “Falei com meus irmãos, nas suas camas, tomei o copo de leite noturno que minha Mãe não dispensava e fui pra cama.” (p. 92- obra dactiloscrita).

Do trecho acima, Nava suprimiu: “...nas suas camas (...)” Cancelada a informação, ocultou ele o que faziam, então, os irmãos dele: estavam já preparadinhos para irem dormir.

Enfim, as supressões apresentam uma curiosidade, se comparadas com outros tipos de rasuras: a presença das mesmas só pode ser verificada plenamente nos originais, independentemente da obra editada. São realmente uma verdadeira rasura.

 

CONCLUSÃO

Um texto contém uma lei de estrutura. Essa lei deve passar antes por um método de pesquisa que permite comprovar os diversos percursos genéticos de uma obra, incluindo-se (as) diferentes etapas de confecção da obra pesquisada.

Essas etapas passam, obrigatoriamente, por uma análise da história das diversas redações e variantes, que permitem (re)conhecer o dinamismo presente na atividade criadora.

Em verdade, as fases da elaboração de uma obra podem ser registradas, aplicando-se a crítica genética.

A seqüência da invenção na(s) pesquisa(s), bem como as hesitações, muitas vezes no lento desenrolar, são plenamente observadas.

Em função de todo o trabalho, o método permite ainda reconstituir as operações que deram origem a dactiloscritos/rascunhos para interpretar correta e adequadamente os índices dos quais são portadores. Por ele, comprovam-se múltiplas afirmações do escritor/autor, em relação ao processo de criação de uma obra.

A aplicação de um método é indispensável à formação de um dossier genético. Este constitui, em verdade, um conjunto de todas as provas genéticas escritas conservadas da obra ou do projeto de escritura, com classificação consoante a cronologia das sucessivas etapas de criação textual.

Enfim, o estabelecimento de um método específico permite reconstruir uma continuidade entre tudo o que precedeu o textual (obra editada/publicada), na condição de obra, e esse mesmo textual, na condição de dado definitivo.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZIEU, D. Le corps de l’oeuvre. Paris: Gallimard, 1981.

BELLEMIN-NOEL, Jean. Réproduire le manuscrit, présenter les brouillons, établir un avant-texte. Paris: Littérature, décembre 1977.

BOIE, Bernhild. L’écrivain et ses manuscrits. Les manuscrits des écrivains. Paris: Hachette/CNRS, 1993.

CHARAUDEAU, Patrik. Grammaire du sens. Paris: Hachette, 1992.

GRÉSILLON, ALMUTH. Élements de critique génétique. Paris: PUF, 1994.

LEBRAVE, Jen-Louis. La critique génétique: une discipline nouvelle ou un avatar moderne de la Philologie? Genesis. Paris: Jean Michel Place, 1992.

LOBO, Maria Antonia da Costa. Chão de Ferro: a gênese textual de uma obra de Pedro Nava. Rio de Janeiro: Regina Curado, 1997.