FILOLOGIA TEXTUAL E O ESTUDO DO LÉXICO

Celina Márcia de Souza Abbade (UNEB e UCSal)

 

Na ótica da Lingüística, a língua é vista como o estudo da linguagem e a linguagem é a leitura do pensamento, não se concebendo um sem o outro. Logo, ela é o próprio elemento de comunicação social, pois não há sociedade sem linguagem ou sem comunicação. A língua como parte social da linguagem, é constituída através de signos que se combinam de acordo com leis específicas. Se a fala é individual, a língua é social, e, para que a fala se socialize, é necessário obedecer a regras sociais de acordo com os códigos estabelecidos.

Assim como Rousseau diz que “não se sabe de onde é o homem, antes de ele ter falado” (Rosseau, 2003), pode-se concluir que o homem só existe histórico e socialmente quando houver linguagem para expressar essa história social. A linguagem faz parte da sua história. Essa linguagem é expressa por palavras e essas palavras irão constituir o sistema lexical de uma língua e, conseqüentemente, de um povo. Assim, estudar o léxico de uma língua, é estudar também a história do povo que a fala.

Estudar o léxico de uma língua é enveredar pela história, costumes, hábitos e estrutura de um povo, partindo-se de suas lexias. É mergulhar na vida de um povo em um determinado período da história, através do seu léxico.

Apesar de pouco estudado até então, o estudo lexical das línguas é deveras importante e necessário para desvendar os inúmeros segredos da nossa história social e lingüística, segredos estes que podem ser desvendados pelo estudo e análise do léxico existente nessas línguas em momentos específicos da história de cada povo.

Língua, história e cultura caminham sempre de mãos dadas e para conhecermos cada um desses aspectos, faz-se necessário mergulhar nos outros, pois nenhum deles caminha sozinho e independente. Portanto, o estudo da língua de um povo, é conseqüentemente, um mergulho na história e cultura deste povo.

No estudo do léxico de uma língua vários conhecimentos se relacionam: fonético-fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, pragmáticos, discursivos.

Um dos estudos mais antigos sobre o léxico remonta ao séc. IV a.C. e vem da Índia, com Panini que em sua gramática estudou o sânscrito e definiu elementos significativos da língua como palavras reais – as lexias – e palavras fictícias – os morfemas –. No entanto, sua maior preocupação foi com a forma dessas palavras o que o levou ao estudo notável da morfologia.

No ocidente, devemos aos gregos as primeiras reflexões conhecidas envolvendo o léxico. Os gregos alicerçaram o campo da Semântica quando, ao se preocuparem com a palavra como conceitos, relacionaram idéia e forma partindo de reflexões filosóficas.

A contribuição dos latinos que desenvolveram estudos gramaticais foi mostrando a oposição entre sistema (gramática da língua) e norma (uso social efetivo), que atuam como forças que conservam a língua, ao mesmo tempo em que lhe permitem mudanças.

Na Idade Média, continuando a tradição greco-latina, retoma-se a controvérsia acerca da exatidão das palavras, opondo realistas (as palavras são apenas reflexo das idéias) e nominalistas (os nomes foram dados arbitrariamente às coisas).

Do Renascimento até o séc. XVIII, o estudo do léxico se desenvolveu basicamente em torno de dois eixos:

·  confecção de dicionários;

·  estudo da palavra, numa perspectiva filosófica.

Com relação ao primeiro, apesar de existirem desde os antigos, listas lexicais (ideogramas chineses, lista de palavras aparentadas...), foi no séc. XVI, no ocidente, que inicia-se a descrição ordenada do léxico, e com a invenção da imprensa surgiram os dicionários monolíngues e plurilíngües.

Quanto aos estudos filosóficos, acabaram por influenciar os gramáticos da época que procuravam definir os fatores constitutivos da linguagem e das línguas.

Nasce a Lexicologia que estudava a língua falada, analisando-se o conteúdo lexical em elementos conceituais (sentido “básico” da palavra), funcionais (sentido “específico”) e morfossintáticos (sentido “acidental”), e defendendo o aspecto formal e histórico da palavra, subordinados aos aspectos semântico e sócio-cultural.

No século XIX, a Lexicologia mudou de perspectiva e a palavra passou as ser vista como forma cuja natureza fonética e morfológica deveria ser observada. Os estudiosos da época deixam de se preocupar com a relação pensamento e palavra e o interesse passa a ser a comparação das palavras, marca predominante deste século. Surge o método da Gramática Comparada, lançado por Franz Bopp, e aumentam o interesse pelos textos medievais despertados na época do Romantismo. Com o método histórico-comparativo, utilizado por Frederico Diez em sua Gramática das Línguas Românicas e Dicionário Etimológico das Línguas Românicas, novas teorias vão surgindo para explicar os diversos aspectos das línguas.

Nos finais do século XIX, com a marca triunfal da Geografia Lingüística e conseqüentemente o florescimento da Onomasiologia, o interesse lingüístico passa pouco a pouco da investigação fonética para a dos problemas lexicais. No VII Congresso Internacional de Lingüística, em 1952, na cidade de Londres, os conceitos lingüísticos gerais são elaborados sobre uma base fenomenológica, significando um sistema de referências extralingüístico. Até então, os dicionários são sistematizados sem relacionarem as definições com os sinônimos existentes.

No século XX, os estudos lexicológicos se diversificaram, aliados às várias correntes lingüísticas em vigor nesse século. Assim têm-se as oposições de três teorias predominantes:

1.       A teoria Estruturalista, onde a língua é estudada sob o ponto de vista formal e social. Nessa perspectiva, o léxico de uma língua pode formar estruturas onde conjuntos de palavras formam outros subconjuntos, ligados entre si por diversos laços;

2.       A teoria Gerativista em que a língua é estudada sob o ponto de vista cognitivo. O léxico aqui é um conjunto de elementos lexicais, cada um deles sendo um sistema articulado de traços fonéticos, semânticos e sintáticos. Busca-se aqui conhecer a organização e o funcionamento do léxico no nosso sistema cognitivo;

3.       A teoria Funcionalista onde a língua é estudada sob o ponto de vista do uso social. Busca-se nessa linha de pesquisa, determinar o modo como as pessoas conseguem comunicar-se pela língua.

Partindo-se das teorias supracitadas, o léxico de uma língua pode ser estudado sob várias perspectivas. No Brasil, essas pesquisas vêem sendo realizadas das seguintes maneiras:

·        Formação de Palavras – aqui se encontram as pesquisas que, baseadas em teorias estruturalista ou gerativista, analisam os processos de formação de palavras, novos processos e os mais produtivos;

·        Vocabulário de Especialidade - destacam-se as pesquisas desenvolvidas com base em teorias estruturalistas, principalmente as de campos lexicais, referentes a vocabulários usados por pessoas que fazem parte de um grupo sócio-profissional, ou a obras escritas. O objetivo destas pesquisas, em geral, é registrar uma parte do léxico em uso, numa dada época, e aspectos da estilística lexical de profissionais da língua;

·        Ensino de Vocabulário - essas pesquisas estão baseadas em teorias estruturalistas e textuais, e se voltam tanto para o livro didático quanto para a sala de aula de ensino fundamental e médio. Seu objetivo é diagnosticar a realidade e propor alternativas, fundamentado nos princípios teóricos sobre o texto (considerados a unidade maior para o ensino);

·        Terminologia – essas são as pesquisas mais recentes (a partir da década de 90), motivadas pela expansão da tecnologia que repercute nas línguas, uma vez que elas estão relacionadas a cada máquina, equipamento ou instrumento criado e posto em funcionamento, a cada processo de produção praticado, a cada negócio realizado, possibilitando com seus recursos a formação de novos termos, para nomeá-los.

Algumas distinções são fundamentais para os estudos lexicológicos. Vamos partir da distinção básica entre os termos palavra, lexia e vocábulo.

Para muitas pessoas, esses termos seriam uma espécie de sinônimos, não haveria distinção propriamente entre eles. O termo mais genérico seria a palavra e os outros termos seriam empregados de forma mais científica. Esse é algum dos argumentos encontrados durante as aulas, cursos e seminários ministrados sobre os estudos lexicológicos.

Na verdade, todos sabem o que é uma palavra: é um termo genérico, tradicionalmente utilizado na língua, fazendo parte do vocabulário de todos os falantes. Mas, se a palavra é um termo que faz parte do vocabulário do falante, subtende-se que palavra e vocabulário são conceitos distintos. Mas qual é essa distinção? O vocabulário pode ser entendido como o subconjunto que se encontra em uso efetivo, por um determinado grupo de falantes, numa determinada situação. Melhor dizendo, vocabulário é o conjunto de palavras utilizadas por determinado grupo. E a lexia? Dizer que lexias são as palavras de uma língua, estaríamos tornando-a sinônimo da palavra. Então, qual a diferença entre esses termos? É que a lexia, diferente da palavra, é a unidade significativa do léxico de uma língua, ou seja, é uma palavra que tenha significado social.

A palavra é uma unidade significativa, mas a sua significação não é só lexemática, pode também ser morfemática, isto é, gramatical. A lexia, ao contrário, tem significação externa ou referencial, ou seja, apenas lexemática. A sua referência pode ser as coisas concretas ou abstratas.

Assim, na frase “a escada é velha”, temos quatro palavras, porém apenas duas lexias. escada e velha são as lexias com função apenas referencial ou lexical. Elas também são palavras, assim como o artigo a e o verbo de ligação e, que têm função também gramatical além da função referencial.

São exemplos de palavras gramaticais os artigos, as preposições, as conjunções. Estudam-se na Gramática e são em número limitado. As palavras lexemáticas ou referenciais, melhor dizendo, as lexias, constituem a maior parte do léxico de uma língua e são de número indeterminado. Estão organizadas nos dicionários.

Mas as palavras não são estudadas apenas pelos lexicógrafos, aqueles que elaboram os dicionários. Existem inúmeras possibilidades de se estudar o léxico de uma língua. Apesar de os primeiros estudos das palavras terem sido realizados para organizá-las alfabeticamente nos chamados dicionários, várias outras possibilidades de estudos existem. Vamos conhecer algumas dessas possibilidades.

A Lexicologia é a ciência que estuda o léxico em todas as suas relações lingüísticas, pragmáticas, discursivas, históricas e culturais. A partir daí, temos as subdivisões para essa ciência, ou as ciências afins. Vejamos algumas delas:

·        Lexicografia - Ciência que se dedica ao estudo e à elaboração de dicionários e glossários;

·        Terminologia - Ciência que estuda os termos de natureza técnico-científica;

·        Semântica - Estudo das significações lingüísticas;

·        Etimologia - Ciência que se ocupa da formação das palavras, explicando a sua evolução a partir da busca do seu étimo;

·        Onomasiologia - Estudo semântico das denominações - parte do conceito e busca os signos lingüísticos que lhes corresponde;

·        Semasiologia - Estudo do sentido das palavras o qual parte o significante para explicar o significado que, oposto à onomasiologia, parte do signo em busca da determinação do conceito.

É muito difícil fazer-se uma descrição coerente do conjunto do léxico, na medida em que se considera o mesmo como um sistema. Pode haver limites nos sistemas fonológicos ou gramaticais. Mas estabelecer um sistema lexical, devido ao seu caráter empírico é algo que pode parecer sempre impreciso e inconcluso. Mas, se não se pode estabelecer todo o léxico de uma língua, pode-se começar modestamente por estabelecer sistemas parciais que poderão ser organizados posteriormente em outros sistemas mais complexos. Há uma necessidade de se realizar um estudo estrutural do léxico. No entanto, a Lexicologia tradicional não tem sido estrutural. Os pontos de vista funcionais ou estruturais do léxico não são vistos explicitamente nos dicionários das línguas. Eugenio Coseriu (Coseriu, 1977) atribui as razões para que isso ocorra ao fato de, nesse estudo, se realizar freqüentemente a identificação entre significado lingüístico e realidade extralingüística. Além disso, considera-se como Lexicologia basicamente o que une o plano da expressão ao plano do conteúdo e o caráter diferente que é dado ao léxico com relação à gramática. Há uma confusão entre o conteúdo lingüístico e a realidade extralingüística, uma falta de distinção entre palavra e coisa. A esses fatos pode-se acrescentar o exemplo dado por Coseriu para uma pergunta do tipo: – Como se designa árvore em alemão? E a resposta seria simplesmente – baum. Dessa maneira, o léxico passa a ser um sistema de nomenclatura com palavras que nomeiam coisas. Mas nem sempre existe uma única palavra para cada coisa, e se a mesma pergunta fosse feita para a língua romena, a resposta não seria tão simples porque copac é o genérico, mas uma árvore frutífera chama-se pom. Em certos contextos, é necessário usar o termo arbore porque não existe copac genealogica ou pom genealogica, apenas arbore genealogica. Na estruturação do léxico de cozinha em campos lexicais, observa-se isso muito bem, uma vez que poderíamos perguntar: – que lexia utilizamos para indicar o peso dos alimentos sólidos? – Nos dias atuais poder-se-ia responder com uma única lexia: – O quilograma, ou apenas quilo. Mas, no período quinhentista, não teríamos apenas uma lexia para tal resposta, pois, para o peso dos alimentos sólidos utilizava-se o arrátel, mas as carnes eram pesadas em arrobas e os pós em alqueires. E ainda poderíamos pesar esses alimentos em omças ou salamys.

Por outro lado, diferente da Gramática que estuda expressão e conteúdo separadamente, no que diz respeito ao léxico é comum não haver essa distinção, e esse vínculo vai acabar por provocar um entendimento do léxico como uma nomenclatura. Para que a Lexemática diacrônica possa realizar-se, é necessário partir-se do conteúdo e utilizar-se da expressão exatamente como expressão, ou seja, manifestação das distinções existentes para esse conteúdo.

Eugenio Coseriu nos mostra que é possível um estudo diacrônico estrutural das significações das palavras, desde que se entenda a forma ou substância semântica como substância lingüisticamente formada. Ele deixa isso muito claro em Para una semántica diacrónica estructural (Coseriu, 1977), através de exemplos latinos e de línguas românicas, aonde Coseriu vem mostrar a necessidade e a possibilidade de um estudo diacrônico estrutural da significação das palavras. O problema exposto é basicamente o das mudanças estruturais do léxico que, em termos saussurianos, não diz respeito ao desenvolvimento histórico dos significantes, nem às suas substituições ao longo das histórias das línguas. Dentro de um estudo diacrônico estrutural do plano do conteúdo, esse conteúdo é entendido como a substância semântica lingüisticamente formada. Para um estudo estrutural, é necessário analisar a língua funcional, entendida como língua enquanto sistema, ou seja, uma língua até certo ponto unitária dentro de uma língua histórica e não aquilo que se refere a uma língua histórica tomada em seu conjunto que geralmente compreende uma série de línguas funcionais que às vezes são bastante diferentes. As unidades funcionais de uma língua devem estabelecer-se ali onde funcionaram, e mediante as oposições em que funcionam.

Em El estudio funcional del vocabulário (Coseriu, 1987), Coseriu trata da Lexemática, entendida como o estudo funcional do vocabulário, o estudo da significação do léxico, a semântica estrutural lexical. O conteúdo lingüístico é composto de significação, designação e sentido. A significação é o conteúdo lingüístico de determinada língua, a designação, a relação com a realidade extralingüística, e o sentido é o conteúdo especial de um texto ou de uma unidade de texto. Entende-se então que, só há significação nas línguas e não no falar em geral. Assim como a designação é a referência à realidade enquanto representação, feito, estado de coisas, independente da estruturação de tal língua e existe no falar em geral, a significação é a estruturação em uma língua das possibilidades de designação. A designação é um ato de falar, é a utilização de uma significação. A significação (significado) e a designação funcionam como significante (signo material), com respeito ao seu significado (conteúdo).

Coseriu classifica a significação em cinco tipos: lexical, categorial, instrumental, sintática ou estrutural e ôntica.

A significação lexical diz respeito ao sentido da palavra e é o que vai interessar ao presente estudo. A categorial refere-se à categoria das palavras (substantivo, adjetivo, verbo etc); a instrumental ao sentido dos instrumentos gramaticais; a sintática ou estrutural ao significado das construções gramaticais (lexemas + morfemas) que formam o singular, plural, presente, pretérito etc; e a significação ôntica que só ocorre no plano das orações, pois é o valor existencial na intuição significativa ao ‘estado de coisas’ apresentados em uma oração.

A Lexemática ocupa-se apenas da significação lexical, excluindo os outros tipos de significação, tomando como objeto de análise uma língua particular na sua individualidade, ao estabelecerem as suas estruturas paradigmáticas. Assim, as unidades funcionais já estão lexicalizadas, isto é, já existem na língua.

Como exemplo de possibilidade de um estudo lexical, cita-se aqui a tese Os Campos Lexicais do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria (Abbade, 2003), que visa um estudo do vocabulário quinhentista relativo à cozinha a partir do levantamento de seiscentas e quarenta e sete lexias e estruturação das mesmas em campos lexicais, encontradas no primeiro livro de cozinha portuguesa conhecido até o momento: o Manuscrito I-E 33 da Biblioteca Nacional de Nápoles, através da edição crítica mais completa do mesmo: O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria de Portugal (Manuppella, 1967).

A tese traz uma análise das lexias existentes nessas receitas, observando seus conceitos à época, a etimologia das mesmas, assim como a utilização dessas lexias naquele período.

O léxico de cozinha levantado no Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, é dividido em campos lexicais, tomando como base teórica para tal proposta, os estudos realizados e propostos por Stephen Ullmann e, principalmente a teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu. Essa teoria propõe uma análise estrutural do vocabulário, determinando o campo lexical dentro de estruturas lexemáticas no qual os lexemas integram um sistema de oposições.

Nessa perspectiva, o campo lexical seria um paradigma lexical, surgido a partir da subdivisão de um conteúdo léxico entre unidades diversas que têm oposição entre si em função de traços simples de distinção de conteúdo. Partindo-se desse princípio, faz-se a estruturação dos campos lexicais propostos. É evidente que a análise de um vocabulário articulado em campos lexicais, difere daquele classificado em campos semânticos.

A fundamentação teórica da tese vem demonstrar a possibilidade de um estudo diacrônico estrutural do léxico, através da teoria dos campos lexicais proposta por Eugenio Coseriu. A partir desse estudo teórico, mostra-se como se fez a estruturação dos campos lexicais do vocabulário de cozinha. Assim, apresenta-se a estruturação dos macrocampos lexicais e os seus respectivos microcampos.

Sendo o léxico o domínio menos estruturado de uma língua, estabelecer estruturas básicas, tal como se faz na Gramática, não é tarefa fácil, mas também não é impossível. É muito difícil fazer-se uma descrição coerente do conjunto do léxico, na medida em que se considera o mesmo como um sistema. Pode haver limites nos sistemas fonológicos ou gramaticais. Mas estabelecer um sistema lexical, devido ao seu caráter empírico é algo que pode parecer sempre impreciso e inconcluso. Mas, se não se pode estabelecer todo o léxico de uma língua, pode-se começar modestamente por estabelecer sistemas parciais que poderão ser organizados posteriormente em outros sistemas mais complexos.

Essa estruturação de sistema não pode ser arbitrária. Não faria sentido querer organizar elementos de sistemas diferentes em um sistema mais amplo. Assim, oposições do tipo arroz e cadeira tornam-se impossível, pois não existe qualquer sentido lógico para essas lexias serem organizadas em um único sistema. Porém arroz, açúcar, leite, ovos estariam unidos em um campo único que poderia ser o campo dos alimentos ou o dos ingredientes, por exemplo.

Se as unidades funcionais do léxico podem ser analisadas e organizadas em campos ou sistemas distintivos, pode-se falar então em estruturas lexicais.

Essa proposta para uma análise estrutural do léxico tem como maior dificuldade o grande número de unidades léxicas comparadas aos números limitados de unidades tanto na Fonologia, quanto na Gramática, porém, como E. Coseriu explica, essa enorme extensão do vocabulário não chega a ser um problema, mas uma dificuldade prática que, baseado em uma série de distinções, propõe e recomenda uma redução do material a ser analisado.

Assim, o estudo citado, visa a uma estruturação do léxico da cozinha portuguesa quinhentista, não tentando abarcar todo o vocabulário da culinária quinhentista encontrado até então em inúmeros livros e documentos. Com o material reduzido, é totalmente possível se fazer um estudo desse tipo.

Fundamentada no estudo da obra de Eugenio Coseriu, oferece-se uma amostragem da possibilidade real de se fazer um estudo estrutural da língua na perspectiva da lingüística diacrônica estrutural. Prova-se que a estruturação do léxico oferece uma visão de conjunto com muito mais coerência do que a simples organização alfabética das lexias.

Enfim, é muito difícil apresentar uma teoria concisa sobre a estruturação dos campos lexicais, uma vez que existem problemas difíceis de se resolver ou até mesmo sem solução. Mas o estudo histórico de uma língua necessita de lingüistas interessados na estruturação do seu léxico.

 

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