TOPONÍMIA BRASILEIRA. ORIGENS HISTÓRICAS.

Alessandra Martins Antunes (USP)
Patricia de Jesus Carvalhinhos (USP)

 

Apresentação

Falar da formação da toponímia brasileira é remeter-se, inapelavelmente, às origens do país. É, também, remeter-se a alguns aspectos do português brasileiro (PB) e a toda a multiplicidade cultural implícita em nossa língua. Reconhecemos três estratos lingüísticos na formação da toponímia do Brasil: o estrato português (apresentando freqüência mais elevada por razões óbvias), o estrato indígena (não apenas tupi) e o estrato africano, além das contribuições estrangeiras (antigas ou modernas); em sua maioria nomes transplantados por homenagem, que não constituem um estrato lingüístico.

Portanto este texto, correspondente ao minicurso de título homônimo, pretende relembrar alguns aspectos da toponímia colonial, sobretudo no concernente à problemática do contato interétnico (europeu / índio) naquele momento histórico – o primeiro século. Abordamos aqui, pois, uma questão geral, que reflete o contato da língua portuguesa com as línguas indígenas estabelecidas na costa brasileira, e uma questão particular, na figura do contato com os franceses, na baía de Guanabara. Chamamos para este diálogo os cronistas Jean de Léry e André Thevet, cujos textos retratam a tentativa por parte dos franceses em colonizar o Brasil, com o projeto da chamada França Antártica.

Assim, quando tratamos do contato interétnico entre portugueses e índios sobressaem questões que não podemos deixar de abordar (ainda que sucintamente), como a língua mais usada na costa do Brasil (no dizer de Anchieta). A problemática da língua portuguesa no Brasil é vista exclusivamente sob o ponto de vista da formação da toponímia, sem a intenção de discutir os conceitos imanentes. Deste modo é que abordamos as línguas indígenas como adstrato ao PB, segundo Mattoso Câmara Jr.

Esta é, pois, a estrutura desta comunicação: uma introdução que traça a chegada do europeu ao Brasil em 1500, depois uma abordagem das línguas em contato e da conseqüente formação da toponímia do Brasil, em seus estratos português e indígena e, por último, o contato com os franceses no período colonial.

A toponímia colonial. Introdução.

Quando os homens europeus empreenderam a travessia do oceano Atlântico em busca de novas terras e recursos materiais, nos fins do século XV e princípios do XVI, vinham imbuídos não apenas de ideais (e, sobretudo, interesses materiais), mas também de sua cultura e ideologias, que marcaram suas relações com os novos territórios e seus habitantes. Todo um universo se descortinava ante seus olhos, e, especificamente no caso do Brasil, o contato interétnico gerou frutos lingüísticos para ambos os lados.

A situação que os portugueses encontraram aqui foi de multilingüismo, só freado pela política lingüística de Pombal. Com dados de Aryon Rodrigues e mencionando ainda Franchetto (2000: 84-88), Mattos e Silva (2003) assim trata a questão multilíngüe no período colonial: aproximadamente 1175 línguas no início da colonização, das quais persistem 180 línguas indígenas vivas, concentradas na região norte, com média de 200 falantes por língua[1].

Apesar deste multilingüismo, a autora lembra que havia uma unidade relativa no litoral da colônia, em que estavam estabelecidos povos indígenas do tronco tupi, sobretudo pertencentes à família tupi-guarani. Mesmo os povos historicamente inimigos, como os tupiniquins e os tupinambás, tinham a fala muito próxima. Foi essa homogeneidade (havia indígenas do tronco tupi desde o litoral do Maranhão até São Vicente, em São Paulo) que permitiu aos jesuítas catequistas criar uma gramática que servisse de base para a catequese e para a aprendizagem por parte de colonos.

Pela homogeneidade, a língua falada do litoral nordestino até São Vicente (SP) era também a língua dos tupinambás; Anchieta, na sua gramática, usava a designação língua mais usada na Costa do Brasil. “Essa língua mais usada na costa do Brasil estará na base do que, só no século XVIII, veio a se designar de língua geral (Rodrigues, 1986: 99)”. A expressão língua geral já era usada desde o século XVI em alguns países de colonização espanhola. No Brasil, essa designação não se firmou nos primeiros dois séculos; ao longo do século XVII, consolidou-se a denominação “língua brasílica”, que Aryon Rodrigues liga à denominação Tupinambá.[2]

Utilizando para sua argumentação documentos do século XVII, o autor afirma que o fator determinante do uso da língua brasílica foi o “casamento” de colonizadores com mulheres índias, cujos filhos falavam a tal língua brasílica. Esta foi a verdadeira língua de comunicação nos primeiros dois séculos de vida colonial, em detrimento do português: o padre Antonio Vieira (apud Rodrigues) afirmava, em 1694, que

(...) as famílias dos portugueses e índios em São Paulo estão tão ligadas hoje umas com as outras, que as mulheres e os filhos se criam mística e domesticamente, e a língua, que nas ditas famílias se fala, é a dos índios, e a Portuguesa, a vão os meninos aprender à escola. [grifo nosso].

Ou, como completa Rodrigues, essa língua permaneceu forte e mais resistente nas áreas mais afastadas da Bahia (que então abrigava o centro administrativo da Colônia), pois afluíam à capital cada vez mais colonos, havendo a dizimação dos índios e assimilação completa da língua portuguesa pelos remanescentes [3].

Em termos de apreensão de mundo, tanto os registros cartográficos quanto as narrativas comuns na época, como o Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, trazem dois elementos que se refletiram na formação do sistema toponímico brasileiro: a apreensão do novo espaço e seus elementos (inéditos para o europeu como fauna e flora), descrevendo o que naquele momento era inominável em língua portuguesa, mas já possuía um termo em língua indígena e, por outro lado, descrevendo este espaço segundo a visão européia, o que levaria à geração da duplicidade e possível superposição toponímica.

 

Origens da toponímia brasileira
a problemática do contato interétnico
O contato interétnico
O colonizador português e os índios

A toponímia colonial brasileira possui algumas camadas lingüísticas. Aqui não nos referimos aos estratos que formam a nossa toponímia, mas tomamos o termo “camada” no sentido de sobreposição. A camada original, indígena, só foi apreendida pelo homem branco num segundo momento do contato, pois o primeiro impacto gerou nomes exclusivamente portugueses, como se a terra fosse um grande vazio onomástico[4].  Veja-se, por exemplo, o considerado primeiro documento da literatura brasileira, a Carta de Pero Vaz de Caminha: apesar de toda a descrição do litoral e do gentio, figuram poucos nomes relativos à costa, todos eles impregnados da visão de mundo européia: assim é a motivação do monte Pascal e da ilha de Vera Cruz, ambos referentes a elementos sagrados. Sem o intuito de estudar a ideologia do colonizador, cabe aqui uma breve consideração sobre não apenas o aspecto religioso, mas também o econômico, antes de tratar a denominação propriamente dita, uma vez que interferiram nas escolhas dos topônimos.

Fernando Cristóvão (2000) trata dessa multiplicidade ideológica refletida no processo de construção cultural do Brasil: segundo o autor, desde o momento da “descoberta” ou “achamento” “(...) nasceu a vontade de emancipação para se construir uma nova realidade”, e o nome da terra participa dessa construção. Neste ponto menciona-se a ideologia religiosa que impregnava a mentalidade do homem da época: “Com efeito, pode afirmar-se que o processo se iniciou com naturalidade, logo no momento de dar um nome à terra descoberta.”

Baseando-se documentos coloniais, o autor tenta mostrar a multiplicidade ideológica por meio das dissensões que se apresentam entre os cronistas quanto à alteração do nome da Terra de Santa Cruz para Brasil, sendo “(...) as razões da fé (...) substituídas ou, pelo menos, postas em concorrência com as razões e nomenclaturas dos interesses económicos do império (...)”. Para ilustrar a irritação de alguns, cita João de Barros[5] (1552) e Pero Magalhães Gândavo[6] (1576), ambos alegando intervenção do demônio na alteração do nome.

Para o autor, por estes protestos contra a alteração do nome

(...) passou a nova fronteira que separava o ideal português do descobrimento e extensão territorial e da dilatação da fé, e o ideal nascente brasílico da formação de uma nova mentalidade, de uma nova realidade, de uma nova nação. A Idade Média do passado cedeu lugar a um Renascimento de modernidade, em que outra era a hierarquia dos valores que agora assumia a liderança da História. (...)

Enfim, assim resume a questão do nomear:

Dar o nome é estabelecer uma relação simbólica com o transcendente, tanto nos diversos sistemas culturais do mundo, como no prosaico ou aparentemente prosaico uso quotidiano, e realizar uma indesmentível projecção de desejos.

Esta era, portanto, a visão de mundo dominante no momento do “achamento”, e podemos acrescentar que a primeira camada portuguesa denominativa respeitava a mesma política de nomeação utilizada também pelos navegantes espanhóis. A Carta de Cristóvão Colombo aos Reis Católicos de Espanha enumera as ilhas descobertas, e mesmo as que reconhecidamente possuíam nomes indígenas[7] recebem novo nome.

Colombo evidencia a sistemática da denominação: poder sagrado e poder temporal, na figura dos Reis. Assim, “(...) A la primera que yo hallé puse nombre San Salvador a comemoración de Su Alta Majestad (...)”. Ainda na linha hieronímica, a homenagem a Maria aparece na segunda ilha: Santa María de Concepción. A homenagem à família real vem expressa nas ilhas seguintes: “(...) a la tercera Fernandina; a la cuarta la Isabela; a la quinta la isla Juana, y así a cada una nombre nuevo. (...)”. (grifos nossos)

A Carta de Caminha, contraponto português à carta de Colombo, praticamente não contém topônimos: descrevendo a chegada à nova terra, aparecem os dois únicos topônimos:[8]: monte Pascoal “(...) assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra.”) e ilha de Vera Cruz (referência à verdadeira cruz de Cristo). Ambos os nomes são de natureza religiosa.

Vale lembrar, ainda, que nos primeiros registros coloniais há uma profusão de nomes apenas de origem portuguesa. Como sistematizou Dick (1990: 81-84), temos os registros do Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira (1988), referente aos primeiros decênios de colonização, os nomes rio de São Francisco, angra de São Roque, cabo de Santo Agostinho, aguada de São Miguel, ilhas da Ascensão, de Santa Bárbara e de Santa Maria da Arrábida; a segunda referência da autora é ao mapa de Nicolau Canério, que relaciona também alguns hierotopônimos.[9] Ainda nessa linha de ignorarem-se as denominações indígenas, menciona-se o Diário de Navegação de Pero Lopes de Souza (1530-1532, Cf. Souza, 1968), que traz os nomes monte de São Pedro, ilha de Santa Ana e ilha de Santo André (idem, ibidem). Tais referências demonstram, como já foi dito anteriormente, que a primeira camada toponímica ignorava a camada indígena.

Realizações fonológicas diferentes, embora houvesse uma unidade lingüística entre os diversos grupos de fala do tronco tupi, habitantes do litoral, contribuiu para a formação de variantes dentro da toponímia indígena de origem tupi.[10] Abordaremos, em seguida, a questão das línguas em contato, o que desencadeou o segundo momento da toponímia histórica colonial no Brasil.

 

A toponímia colonial 1. Portugal e o mundo indígena.

No primeiro momento histórico, falantes monolíngües se encontravam lado a lado, gerando, após certo tempo, alguns focos de bilingüismo[11]. O bilingüismo gerou neologismos tanto do lado do colonizador quanto do lado do índio: do embate conceptual, a fim de trazer novos conceitos ao índio, os jesuítas (que manejavam a língua tupi colonial como ferramenta importante no ato catequizatório) acabaram por criar uma serie de neologismos que poderão figurar na toponímia brasileira de origem indígena, mas que não necessariamente refletem a visão de mundo indígena.

Alguns exemplos citados por Dick (2002) são îande-îara, "nosso senhor", tupãcy, "nossa senhora" ou tupana-r-oka, "igreja". De modo algum, contudo, insinua-se que estes novos conceitos tenham substituído os antigos na cosmovisão indígena. Assim, também o Vocabulário na Língua Brasílica (VLB) registra inúmeros casos parecidos de neologismos criados pelos jesuítas para passar ao índio os conceitos sagrados cristãos e também a ritualística, mas nem todos os neologismos criados vieram a gerar nomes de lugares [12].

Outro tipo de neologismo foi criado pelos próprios falantes – índios e colonos –, resultado natural da incorporação dos novos valores trazidos pelos europeus, desconhecidos pelos índios até então, e traduzidos linguisticamente pela alteração do núcleo das lexias, que com a modificação incorporavam novos sentidos. No dizer de Dick, foi o que ocorreu com “pedra/ita, que passou a designar o metal, desconhecido pelos índios.

A particularização de suas propriedades específicas (ouro, prata, ferro, aço, cobre...) estabeleceu-se por meio de adjetivos que transmitiam a idéia aproximada da cor ou de aspectos (itajuba, itatinga, itauna, itaete, itamembeka). [grifos no original]

O que a toponímia incorporou neste momento e nos subseqüentes reflete este choque interétnico e inter-ideológico, uma vez que a segunda camada denominativa do sistema toponímico brasileiro revela a presença de nomes pertencentes aos dois grupos (índio e colonizador), em justaposição. O nome indígena ganha, muitas vezes, um apêndice português que, na maior parte das vezes, é um nome de motivação religiosa, como nos mostra Levy Cardoso, ao mencionar o caso da Amazônia:

(...) os primitivos topônimos brasílicos, (...) foram substituídos, a princípio, pelos colonizadores e catequistas, por uma denominação composta, em que o topônimo brasílico era anteposto, na generalidade, por um nome do hagiológio português, como por exemplo – Santo Antonio de Surubiú, S. Francisco de Gurupatuba, Santo Elias do Jaú, Santo Ângelo do Cumarú, Nossa Senhora da Conceição de Mariuá, Santa Rosa de Bararoá, São Paulo de Cambebas, Nossa Senhora do Loreto de Maçabari, S. José de Macapá, Santa Rita de Cássia de Itarandéua, Santana de Saracá, Vila Viçosa de Santa Cruz do Camutá, além de uma série de outros (...) (1961: 281-282).

No século XVII, a superposição deu lugar à eliminação do termo indígena ou à substituição do mesmo por um nome de origem portuguesa[13]. Neste momento, longe de caracterizar o que se identifica como “saudade portuguesa na toponímia brasileira”[14]”, houve, a nosso ver, um forte motivo político por trás das mudanças: a reforma educacional pombalina[15].

Assim nascia, na região norte, uma área de nomes transplantados de Portugal em substituição aos nomes indígenas, sem que houvesse uma vinculação que não ideológica para o nome: há uma Belém, uma Santarém, um Barcelos, uma Óbidos [16]... enfim, todas as cidades nortistas que remetem aos topônimos portugueses anteriormente mencionados não são fruto de uma homenagem, mas sim um verdadeiro testemunho de como o nome de lugar pode servir, juntamente com outros instrumentos, como elemento de poder ideológico – aqui, a supremacia política do dominador sobre o dominado.

Enquanto esta situação de contato se desenrolava na maior parte do litoral, pelo menos nos primeiros cem anos de historia, não podemos de mencionar outros contatos étnicos que poderiam ocasionar ocorrências toponímicas. Referimo-nos aos outros povos europeus que estiveram no Brasil e que tentaram estabelecer colônias aqui, em disputa com Portugal. Os casos mais marcantes foram a invasão holandesa no atual estado de Pernambuco e, ainda no século XVI, a presença dos franceses no Rio de Janeiro. Merece destaque o advento da França Antártica, retratado nas crônicas de André Thevet e Jean de Léry, a fim de tratar alguns nomes franceses.

 

A toponímia colonial 2
a França Antártica
nos relatos de Thèvet e Jean de Léry

 

Os relatos do franciscano André Thevet e do calvinista Jean de Léry são os únicos testemunhos da tentativa de ocupação francesa da baía de Guanabara e, conseqüentemente, da toponímia sistematizada da França Antártica. A expedição chefiada pelo vice-almirante Nicolas Durand de Villegagnon foi autorizada pelo principal ministro do rei Henrique II, o almirante Gaspard Coligny, e chegou ao Rio de Janeiro em novembro de 1555.

Assim que chegaram à região, os viajantes desembarcaram alfaias e a artilharia na atual ilha da Laje, na entrada da baía de Guanabara, pouco adiante de onde se encontra o Pão de Açúcar. Esta primeira tentativa de fixação é frustrada, em decorrência da inundação da ilha pela maré (Léry: 1980, 104). Mudaram-se, então, para outra ilha, na qual um forte passa a ser construído. A colônia não é fundada no continente por receio a ataques de portugueses e indígenas e por dificultar a fuga da tripulação, formada basicamente por condenados recolhidos em prisões francesas.

Alguns poucos membros da expedição foram mandados para o continente, a fim de fabricarem os tijolos necessários à construção do forte e das primeiras casas. Dois montes localizados entre o local onde estes oleiros se estabeleceram foram denominados Mont-Henri e Mont Corguilleray (atualmente morro da Viúva e morro da Glória, respectivamente).

A designação daquele morro (Mont-Henri) é uma homenagem a Henrique II, então rei da França, realizada ainda nos primeiros meses de chegada ao Brasil – mantendo, como podemos perceber, uma coerência com o que já ocorria com algumas denominações feitas por portugueses e espanhóis, homenageando a realeza[17]. Engendrado por huguenotes em 1557, o segundo topônimo refere-se a Philippe du Pont de Corguilleray, que, sob o aval de Calvino, patrocina o envio da expedição calvinista à França Antártica, à qual pertencia Léry:

(...) existe realmente uma montanha a que os primeiros franceses, por ali acomodados, denominaram Mont-Henri, em homenagem a seu soberano, da mesma forma porque em nosso tempo chamamos a outro morro de Mont Corguilleray em honra ao sobrenome do senhor Felipe de Corguilleray. (idem: 106-7) (grifo nosso)

Tanto a ilha quanto o forte que passa a ser construído recebem o nome de Coligny. Nestes casos, o ato denominativo não é uma simples homenagem, mas marca o que se pode considerar o ponto inicial e, supostamente, irradiador da colonização. É o reconhecimento de ações que possibilitaram a concretização da expedição, seja, no caso de Henrique II e de Colligny, por consentir a construção de uma colônia francesa no Brasil e por patrocinar a viagem, seja, no caso de Corguilleray, por viabilizar o projeto de fundar um país sob a religião calvinista, cujos praticantes eram seguidamente perseguidos na Europa.

Léry[18], ao encontro destas afirmações, baseia uma das críticas mais enérgicas a Thevet ao fato deste ter indicado, em mapa de 1558 e em sua Cosmografia, uma povoação no continente sob a designação Henry. Duas observações são feitas por Léry para corroborar de que se tratava de mera adulação ao rei Henrique II: salvo a existência de choupanas de oleiros, até 1558, não foram realizadas tentativas de fixação fora da ilha de Coligny, e Thevet anota Ville Henri, no mapa, e indica Henri Ville, em seu segundo relato. Assim, presume que

Tudo quanto ele [Thevet] disse não passa de coisa imaginada, pode[ndo] o leitor, sem medo de equívoco, escolher o nome que lhe agradar pois dará sempre na mesma, nada havendo mais do que a pintura. Donde se conclui que André Thevet não só zombou de Henrique II, tal qual Villegagnon no caso do forte Coligny, mas ainda profanou a memória de seu príncipe. (Léry: 1980, 106)

Além destes nomes, outros designativos de caráter descritivo são indicados nos relatos, entre os quais destacamos três exemplos: Briqueterie, Ratier e Pot-au-beurre. No primeiro caso, segundo Léry (1980, 102, 106 e 249), trata-se da maneira pela qual os indivíduos trazidos como colonos remetiam ao local onde os casebres dos oleiros foram construídos, sendo este topônimo, que significa simplesmente “olaria”, a descrição da única função exercida no local e que justificou o deslocamento de alguns franceses para o Continente: “Instalamo-nos na praia, ao lado esquerdo do rio Guanabara, num lugar denominado pelos franceses Briqueterie (olaria) e que dista apenas meia légua do fortim”. (102)

Neste ponto, convém notar que a confusão de Thevet com a designação deste local – Henry, ao invés de Briqueterie – possivelmente se deve ao fato de a única designação oficial atribuída nesta região, no período em que esteve no Brasil, era do Mont-Henry.

O segundo nome – Ratier (= “ratoeira”) – foi atribuído à primeira ilha na qual aportaram os franceses, após o incidente que levou à mudança para a ilha Coligny. Tal topônimo deve-se à sensação de encurralamento provocada àqueles que se encontravam naquela ilha, quando a maré cobriu de maneira rápida e violenta aquele ponto da baía de Guanabara, em comparação a ratos presos em uma ratoeira.

Já o topônimo Pot-au-beurre (= “pote de manteiga”) designava o morro na entrada da baía de Guanabara que impressionava àqueles que o avistavam. Thevet (1978, 94) descreve-o como “um rochedo extraordinariamente alto que se ergue na paisagem, em forma de pirâmide, tendo a base proporcional à altura, o que não deixa de ser uma coisa quase inacreditável”. Assim como o Ratier, trata-se de um topônimo associativo.

Léry atribui o topônimo, assim como o fez no caso de Briqueterie, aos “franceses”:

Faz-se mister, em seguida, transpor um estreito que não chega a ter um quarto de légua de largura, e é limitado à esquerda por um rochedo em forma de pirâmide, não somente de grande altura mas ainda maravilhoso porque de longe parece artificial. E por ser redondo como uma torre imensa, denominaram-no os franceses hiperbolicamente pot-au-beurre. (Léry: 1980, 103-4)

Verificamos, portanto, que há uma divisão entre os designativos engendrados por aqueles que ocupavam posições de liderança, seja Villegagnon ou os huguenotes (encaminhados como ministros da religião da nova colônia), os quais devotavam os trabalhos a seus superiores, e pelos colonos, indicados por Léry como “franceses”, que denominavam por descrição pura ou associativa.

Não há renomeação dos espaços ocupados por indígenas por nomes de origem francesa. Mesmo a baía, então entendida como um rio, mantém-se conhecida como Guanabara. Os demais morros e ilhas os quais não ocuparam ou não utilizavam para localizarem-se na região, da mesma forma, são identificados pelos franceses pelo nome que os indígenas designavam-nos.

Depois de os franceses serem expulsos do forte Coligny, em 1560, estes designativos foram suprimidos, e novos, atribuídos à região pelos portugueses. O morro Pot-au-Beurre, por exemplo, é designado Pão de Açúcar, em associação ao doce de idêntica forma e coloração. O topônimo ilha Coligny é substituído por ilha Villegagnon, em referência àquele que anteriormente a chefiava e, especialmente, daquele que havia sido derrotado.

 

Considerações finais

Sistematizando o que foi dito anteriormente, consideramos a título de conclusão:

1.       Mesmo sendo datados como dos primeiros séculos do Brasil Colônia, nem todos os topônimos hoje identificados como de origem tupi podem ser atribuídos a denominadores índios, pois, como já foi visto, a língua brasílica era falada tanto por índios quanto por portugueses, mamelucos e até africanos.

2.       Ao mencionar as missões e as tropas, Aryon Rodrigues também aponta para a problemática da identificação de áreas dialetológicas por meio de áreas toponímicas: no caso de topônimos de origem tupi, porque nem sempre a presença do nome de lugar revela a presença física do grupo indígena.

3.       Com o contato das línguas, paulatinamente se instaura um momento de bilingüismo e o decorrente surgimento de empréstimos, e a língua portuguesa do Brasil passa a ter essa língua indígena como adstrato. Esses empréstimos – muitas vezes referentes a elementos da fauna, flora e elementos culturais indígenas – passam a fazer parte do léxico virtual de todo falante, podendo ser atualizados a qualquer momento (esse é o caso de palavras trivialmente usadas e incorporadas a nosso sistema, como taturana, mingau, e tantas outras).[19]. Muitos destes empréstimos geraram topônimos.

4.        Os topônimos franceses, que existiram apenas de maneira paralela no período colonial (uma vez que só eram oficiais entre os franceses), acabaram completamente apagados pelos portugueses. O único que poderia ser considerado como subsistente, ilha de Villegagnon, foi, como já dissemos anteriormente, não uma homenagem e uma marca francesa na toponímia fluminense, mas antes uma advertência a quem ousasse desafiar a armada portuguesa.

5.       Como conclusão final, observamos que se entre portugueses e espanhóis havia uma forte tendência denominativa hieronímica – fosse pela religiosidade, fosse porque naquele período Igreja e Estado eram uma única coisa –, os franceses que aqui estiveram não seguiram essa tendência justamente por serem protestantes, pois não haveria lógica em assim denominar as terras. Por outro lado, a denominação mais espontânea, descritiva, pode ser configurada, de um lado, pelos indígenas, e, por outro, pelos pretensos colonos da França Antártica.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] Ou seja, segundo Aryon Rodrigues, cerca de 85% das línguas encontradas pelos colonizadores já se extinguiram.

[2] “O nome Tupinambá, como designação dessa língua [a brasílica], aparece tardiamente, no século XVIII, já com a intenção de distingui-la, enquanto língua dos índios Tupinambá (do Pará), da língua então corrente da população mestiça, já sensivelmente diferente daquela; mas, no inicio do século XIX, passou a ser usado para designar essa mesma língua corrente, vulgar na Província do Pará.” (Rodrigues, 2002: 100).

[3] A língua brasílica, longe do centro administrativo, generalizou-se e seu uso era o de “(...) língua comum entre os portugueses e seus descendentes – predominantemente mestiços – e escravos (inclusive africanos), os índios Tupinambá e outros índios incorporados às missões, às fazendas e às tropas: em resumo, toda a população, não importa qual a sua origem, que passou a integrar o sistema colonial”. (Rodrigues, 2002: 101).

[4]  Tal fato se deveu, obviamente, ao fato das culturas indígenas brasileiras serem ágrafas, sendo os nomes de lugar apenas conservados na oralidade desses povos.

[5] “(...) Porém, como o demónio per o sinal da cruz perdeo o domínio que tinha sobre nós mediante a paixão de Christo Jesu consumada nela: tanto que daquela terra começou de vir o pao vermelho chamado brasil trabalhou que este nome ficasse na boca do povo e que se perdesse o de Santa Cruz.” (BARROS, 1988, apud Cristóvão, 2000: 174-175).

[6] “(...) Mas para que nesta parte magoemos ao Demónio que tanto trabalhou e trabalha para extinguir a memória da Santa Cruz e desterra-la dos corações dos homens (...) tornemos-lhe a restituir seu nome e chamemos-lhe Província de Santa Cruz, como no princípio.” (Gândavo, 1964, apud Cristóvão, 2000: 26).

[7] Um exemplo citado neste trecho da Carta é a primeira ilha, à qual “(...) los Índios la llaman Guanahaní”. Ou seja, a renomeação não foi por desconhecimento de um nome prévio.

[8] O porto seguro que figura ao fim da carta ainda não se configura como um topônimo propriamente dito, mas como um referencializador: “Deste porto seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500”. O fato de ser apenas um referencializador está explicito quando se narra a ancoragem das naus: “E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada.” (Pêro Vaz de Caminha)

[9] (...) monte de São Vicente; cabo e serra de Santa Cruz; serra de Santa Maria de Gracia (atual serra de Nossa Senhora da Graça); rio de São Jerônimo; rio de São Tiago; rio de Santa Helena; rio de São João; serra de São Tomé; pináculo da Tentação; rio Jordão; rio de Santo Antonio; portos de São Sebastião e São Vicente.” (Dick, 1990:82)

[10] A toponímia indígena brasileira provém de diversos troncos lingüísticos, muito embora a grande maioria dos nomes de lugar seja de origem tupi, por ter sido esta a “língua mais falada na costa do Brasil”, uma vez que sua derivação natural, uma das quatro línguas gerais brasileiras, era falada tanto por índios quanto por brancos e mamelucos, pois durante praticamente um século desempenhou o papel de língua de comunicação, como já se mencionou neste trabalho.

[11] Vale lembrar que há controvérsias sobre o que considerar bilingüismo. Lyons, por exemplo, diz que “o verdadeiro bilingüismo implica a assimilação de duas culturas” (1979:459). Na verdade, o que haveria para o autor, no caso, seria uma imbricação cultural; o bilingüismo, a seu ver, é uma situação final.

[12] Pensamos nos neologismos citados por Dick, todos retirados do VLB e com referências aos rituais cristãos: “Anjo – Apiâbebe (VLB) – homem voador (trad. liter.); Batizar – Amoiaçuc (VLB) – lavar, passar água (trad. liter.); Confessar-se – Aimõbeû (VLB) – dizer (trad. liter.) (...)” (Dick, 1990:91-92).

[13] O contraponto ao dado mencionado também é real – a manutenção do nome indígena e desaparecimento ou substituição do nome português, mas naquele momento histórico do Brasil colônia o que prevalecia era, realmente, a necessidade dos jesuítas de encobrir o elemento considerado pagão – o topônimo indígena – com um nome cristão. Como completa ainda Levy Cardoso, “(...) prevalecendo, mais tarde, quase que exclusivamente, as denominações lusitanas.” (idem, ibidem, 282).

[14] Título de um texto de Antenor Nascentes; também é a crença de Levy Cardoso: nomes portugueses eram dados apenas por saudades da terra natal.

[15] Esta posição justifica-se porque até a expulsão dos jesuítas a educação era regida nos colégios de padres e, como já se mencionou, as comunidades brasileiras eram essencialmente bilíngües. Com a tentativa de imprimir uniformidade cultural à colônia, proibiu-se a língua geral e o português passou a ser obrigatório. Vemos, portanto, uma relação entre estas medidas e a excursão de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do Grão-Pará, que em sua viagem pelo rio Amazonas (a fim de demarcar os limites territoriais) substituiu todos os topônimos indígenas por topônimos provenientes de Portugal.

[16] Diz Levy Cardoso: “Quando, naquela subida, em 1758, do Baixo Amazonas ao Rio Negro, para ir ao encontro dos demarcadores de Sua Majestade, o rei de Castela, que se deveria realizar em Mariuá, que foi mais tarde, logo após à sua chegada, elevada à capital da Capitania do Rio Negro, com o nome de Barcelos, ele foi, por todas as cidades que ia percorrendo, substituindo os nomes indígenas pelos nomes portugueses que a velha saudade lusitana ia sugerindo... Daí, pois, Tapajós, Pauxis, Surubiú, Maturú, Gurupatuba se chamarem hoje, respectivamente, Santarém, Óbidos, Alenquer, Porto de Moz, Monte-Alegre...” (in) Toponímia Brasílica, 1961, p. 282-283.

[17] Pois, como já explicamos anteriormente, a homenagem era sempre ao poder celeste e ao poder temporal.

[18] Léry (1980: 36) informa ter escrito seu relato de viagem após ler, em 1577, La Cosmographie Universelle de Thevet, a qual, segundo o autor, repetia as mentiras e os erros apresentados na obra As Singularidades da França Antártica, de 1558, e ainda difamava os ministros da igreja de Calvino que concorreram à expedição.

[19] Desta consideração pode surgir um problema em relação ao PB: considerar as línguas indígenas adstrato ou substrato? Como já é sabido, o toponimista, ao estudar um determinado território, se defronta com nomes que podem guardar relações com os povos que ali estiveram. No caso do Brasil, nem todos os topônimos indígenas presentes num levantamento sincrônico são, de fato, nomes atribuídos no período colonial: já se referiu anteriormente que quando duas línguas entram em contato, como foi o caso do português e do tupinambá no século XVI, por necessidade de comunicação os indivíduos passam a ser bilíngües, fase caracterizada pelos empréstimos lingüísticos.

De natureza variada, os empréstimos podem refletir algumas situações: no caso do Brasil, os colonizadores se depararam com um território completamente diferente do que era conhecido dos europeus até então, seja em termos de vegetação, seja em tipos de animais diferentes, seja quanto ao tipo humano. Deste fato, o choque entre línguas e culturas distintas, ressalta um posicionamento lingüístico: a fim de estudar o léxico toponímico, retomamos a questão aqui já formulada: como considerar a posição do tupi em relação do português do Brasil?

Para Mattoso Câmara Jr., o tupi funciona como um adstrato à língua portuguesa no Brasil, e nunca como substrato. No Dicionário de Lingüística e Gramática, o autor define adstrato como “Toda língua que vigora ao lado de outra, num território dado, nela interfere como manancial permanente de empréstimos.” E sobre os adstratos no Brasil, cita algumas línguas européias trazidas por imigrantes e também a língua geral, ou “tupi jesuítico, como um adstrato do português no período do Brasil colonial, determinando a maior parte dos tupinismos.”

Sua posição justifica-se claramente em outra definição, a de substrato, quando diz que (...) o acervo de palavras de origem indígena na língua comum são tupinismos provenientes do uso do tupi na catequese e no processo de aculturação dos indígenas na época colonial, sob o aspecto de adstrato ao português.

Concordando com a posição de Mattoso Câmara Jr, utilizamo-nos do conceito da língua tupi como adstrato ao português do Brasil, relembrando que a toponímia trabalha com o léxico da(s) língua (s) e que, como já se expôs, nem todos os nomes indígenas do período colonial nos foram legados pelo índio.