TRADUÇÃO DE TÍTULOS DE FILMES
QUESTÕES DE LÍNGUA E MERCADO

Sérgio Paulo Vasconcelos (UERJ)

 

Ao iniciar a leitura deste texto, tenha bem em mente que você não encontrará uma proposta de discussão teórica, mas sim o relato de uma pesquisa que começa a ser desenvolvida.

Deixaremos discussões teóricas e práticas para o dia da apresentação deste minicurso, quando teremos por objetivo promover uma troca de conhecimento entre professor/aluno e aluno/aluno em um fórum aberto de debates, discutindo os conteúdos aqui abordados e outros em sala levantados.

Desde tempos imemoriais a tradução tem sido um desafio para a humanidade. O desafio de compreender as línguas de outros povos para poder com eles interagir tem, no relato bíblico sobre a confusão de línguas na Torre de Babel, um exemplo emblemático. [1]

De fato, segundo o relato, foi exatamente pela falta de compreensão, ou seja, pela falta de tradutores que os grupos lingüísticos se separaram.[2]

 

Definindo tradução

Em língua portuguesa, a palavra tradução vem do latim traductio, que, segundo o dicionário Houaiss, tem como significado:

lat. traductìo,ónis 'ação de levar em triunfo, ação de transferir de uma ordem a outra, curso, andar (do tempo); espécie de repetição', ver -duz-; f.hist. 1662 traducção (Houaiss)

Tendo também a palavra traduzir a mesma idéia de “levar de um lugar ao outro”, segundo o mesmo dicionário:

lat. tradúco e transdúco,is,xi,ctum,cère 'conduzir além, conduzir de um lugar para outro, transferir; dar a saber, publicar, divulgar; passar (o tempo); traduzir, verter, derivar (palavras)'; ver -duz-; f.hist. sXIV atrasaduzer [sic], 1589 traduzir (Houaiss)

Assim, etimologicamente, a idéia da tradução contém a idéia de transportar algo ou alguém de um lugar para outro. E não apenas a mudança de palavras de um idioma para o outro, mas um transporte de signos: culturais, lingüísticos, sociais, etc.

O grande problema que reside por trás desse transporte é como fazê-lo da melhor maneira possível, sem perdas ou alterações significativas de sentidos.

 

Problemas de tradução

Culturas diferentes produzem referentes e signos diferentes e, conseqüentemente, demandam uma representação lingüística individual.

Por exemplo, os povos árabes têm cerca cinqüenta palavras para designar a cor do camelo; os esquimós têm mais de uma dúzia de palavras para o referente que conhecemos como “neve” e os havaianos se valem de diversas palavras para designar aquele referente que conhecemos como “onda”.[3]

Assim, como, ao fazer uma tradução, reproduzir signos existentes em uma cultura e inexistentes em outra? De que modo representá-los?

Edward Lopes, em seu clássico Fundamentos da Lingüística Contemporânea, nos dá um exemplo de como a influência dos signos na sociedade cria problemas na tradução.

Em Bassa, uma língua indígena da Libéria (África), uma única palavra (ziza) significa vermelho, alaranjado e amarelo; e outra palavra (hui) significa verde, azul, anilado e roxo. (Lopes, 1980: 22)

Assim, ao passo que em português reconhecem-se sete signos cromáticos no arco-íris, os falantes da referida língua reconhecem apenas dois.

Deste modo, pode-se ver que falar em tradução exata da totalidade dos signos de um texto torna-se uma irrealidade.

Por outro lado, acreditamos um exagero afirmar que não há traduções fiéis ao original, considerando que a mera passagem para outro idioma já produziu novos significados e provocou o desaparecimento de outros, presentes no texto original.

As traduções sempre foram e sempre serão importantes, ainda mais quando mais rápido e agilmente nossa sociedade se move, através das novas tecnologias de informação. Se uma tradução será de qualidade ou não, deve-se considerar o tipo de texto que é traduzido e os objetivos a que a tradução se destina.

Traduzir uma matéria de um jornal estrangeiro que será veiculada em uma página de um portal da Internet (ou mesmo publicada e vendida em bancas) exige menos apuro do que a tradução de um poema simbolista.

Em outros casos é possível haver a publicação de livros com traduções interlineares, comentários à tradução ou a publicação do texto original para a comparação com a tradução (edição bilíngüe). Estas são maneiras interessantes de permitir que o leitor avalie a qualidade do texto traduzido. São, todavia, soluções eminentemente literárias.

 

A razão para a pesquisa

Toda pesquisa tem um estopim.

O que motivou nossa pesquisa foi a observação de um crescente número de filmes que têm seu título em inglês e um aposto em língua portuguesa. No caso em questão, o filme que despertou nossa atenção chamava-se Steal – Fuga alucinante, cujo título original era simplesmente Steal.

“Steal”, do inglês, significa “furtar, roubar; furto, roubo”. Mas o filme não tratava de um roubo e sim de alguns assaltos a banco em que os ladrões (os personagens principais) fugiam valendo-se de equipamentos esportivos, como patins, bicicletas, etc. Desse modo, o atrativo do filme eram as fugas e não os roubos.

Assim, fazia sentido colocar em português o aposto. Além disso, que obrigação tem um falante de língua portuguesa saber qual é o significado da palavra “steal”?

Depois do anúncio do filme na TV, passamos a observar outros títulos de filmes e notar que muitos deles mantinham o título original em inglês e recebiam um aposto em português, explicando de que se tratava a narrativa do filme.

Decidimos, então, adquirir os guias de DVD de Rubens Edwald Filho de 2005 e 2006 e analisar todos os títulos de filmes estrangeiros ali listados.[4]

Nossa proposta é estabelecer categorias que identifiquem como os filmes foram traduzidos e listá-los em intervalos de cinco anos, de acordo com elas.

Por exemplo, o filme que recebeu em português o título Tubarão. Seu título original em inglês era Jaws, que significa “mandíbulas”.

Para quem se lembra do cartaz original do filme, em que o tubarão surgia com as mandíbulas abertas, fazia algum significado para quem entendesse o que “jaws” significasse.

Além disso, para o nome de um bem a ser vendido, a sonoridade da palavra inglesa é indiscutivelmente melhor do que a portuguesa.

Deste modo, não faria sentido fazer uma tradução literal como Mandíbulas, mas encontrar outro título mais comercial. Então o foco foi dado em cima do personagem principal: o tubarão.[5]

Esse filme seria listado na categoria dos filmes cujo título em português é completamente do original, conforme veremos mais adiante.

Damos mais um exemplo. Gênio indomável (Good Will Hunting).

O filme narra a história de Will Hunting, um rapaz que nasceu com um talento fabuloso para a Matemática, mas tinha sérios problemas de relacionamento. Para ajudá-lo, um psicólogo entra em cena.

O título do filme é um ninho semântico. Good Will Hunting pode significar “[O] bom Will Hunting”, referindo-se ao rapaz; ou “Caçador de boa vontade”, referindo-se ao psicólogo.

O título em português consegue ser bastante feliz, sendo também um ninho semântico. Gênio Indomável pode referir-se ao temperamento do rapaz; ou a sua genialidade, pois ele era mais hábil que os professores do M.I.T., local onde foi acolhido.

Embora seja um caso diferente de Tubarão, esse filme também seria listado na categoria de filmes cujo título em português é completamente diferente do título original.

 

Metodologia utilizada na pesquisa

Nosso trabalho é muito simples.

De posse dos guias, comparamos o título em português com o título em inglês para os filmes.[6] Estabelecemos diversas categorias, tais como algumas das que se seguem:

§         Tradução literal, ex.: Il Gattopardo / O Leopardo ;

§         Termo intraduzível, ex.: Kill Bill, Fahrenheit 451, My Fair Lady;

§         Termo onomástico, ex.: Cold Mountain, Tommy;

§         Tradução com alteração, sem mudança de sentido; ex.: A star is Born / Nasce uma estrela

§         Expressão idiomática no original; They died whith their boots on / O intrépido General Custer

§         Título diferente do original; Giant / Assim caminha a humanidade

§         Título original seguido de aposto em português, ex.: U-571 / U-571 – A batalha do Atlântico

§         Dentre outras...

A partir da comparação do título em português com o título original faremos uma categorização e listaremos a evolução das categorias em intervalos de cinco em cinco anos, para que possamos observar a evolução da modificação nos procedimentos que orientam a tradução dos títulos.

Acreditamos que, com o desenvolvimento da indústria do vídeo domiciliar, a tendência foi para um crescimento de filmes com título acrescido de aposto, em detrimento do recebimento de um novo título por parte do filme.

Muitos filmes antigos recebem agora em DVD um título diferente do que receberam quando de seu lançamento no cinema. Nesse caso, por terem dois títulos, prevalecerá o título do DVD. Mas, para critérios de pesquisa, apresentaremos este caso em uma categoria isolada.

É importante observar que o a indústria do cinema é, predominantemente, Norte-americana, assim, a maioria dos títulos está em inglês, idioma que dominamos, bem como o alemão. Também há títulos de filmes em francês, espanhol e italiano, idiomas que compreendemos.

Todavia, há referências a filmes de diversas nacionalidades, tais como polonesa, sueca, japonesa e muitos filmes chineses recentes.

Em muitos casos, o título original do filme foi chegou ao português através do inglês. Nestes casos, consideraremos o título em inglês como o título base para a pesquisa.

Mas será que tal procedimento contamina a pesquisa? Sim, certamente que sim. Porém, acreditamos que deixar dezenas de filmes fora desta pesquisa na suposição de que o título original não corresponda ao título em inglês seria perder corpora.

Por exemplo, um filme de Hong Kong que recebe quatro estrelas no guia (a nota máxima são cinco) Heróis do oriente tem como título original: Heroes of the East / Shaolin Challenges Ninja / Drunk Shaolin Challanges Ninja / Zhong Hua Zhang Fu.

Como se vê, o título em português manteve-se fiel a um dos títulos em inglês. Neste caso, este filme seria listado na categoria “Traduções literais”.

Outro argumento para a manutenção de tais títulos diz respeito a grandes obras literárias que por anos, décadas e até séculos foram estudadas em uma língua outra, que não a original. Como exemplos, citamos diversos textos clássicos que foram introduzidos na Europa pelos árabes e a própria Bíblia, que foi traduzida do hebraico para o grego e, mais tarde, para o latim, na conhecida Versão dos Setenta.

 

O papel das distribuidoras

Talvez este seja o ponto mais importante da pesquisa: como é o processo de escolha do nome de um filme estrangeiro a ser lançado aqui no Brasil?

Quem toma esta decisão é a distribuidora do filme para o cinema. Depois, quando o filme sai em outra mídia para exibição doméstica, a tendência é que siga o título que teve no cinema. (No nosso caso, como já foi dito, estaremos analisando títulos de DVDs.)

Todavia, há casos de filmes que não são exibidos no cinema, saindo direto em mídias domésticas. Neste caso, também cabe às distribuidoras, no Brasil, mudar o título.[7]

O mais importante a dizer aqui é: o que determina a capacidade de penetração de um filme no mercado é seu título, por isso, esse não ficará condicionado apenas a fatores meramente lingüísticos.

De fato, se a opção pelo título de um filme fosse guiada apenas por fatores lingüísticos, o filme Leap of faith nunca se chamaria em português Fé demais não cheira bem. O próprio Rubens Ewald Filho diz: “Preste atenção ao cacófato do título nacional.” (Ewald Filho, 2005: 187)

Outro exemplo da como o título é relevante para o sucesso de um filme pode ser encontrado na Revista de Domingo, na sua edição de 18 de maio de 2003.  Na sua coluna semanal, Domingolistas, o tema era: “Dez títulos que ficaram melhor em português”.

Segundo a revista, o terceiro lugar ficou para A felicidade não se compra / It’s a wonderful life. “Nome tão bom que mereceu elogios até de Frank Capra, o diretor...” (p. 34)

 

Considerações finais

Esta é a proposta de nosso trabalho. Nossa pesquisa.

Quando adquirimos os Guias de DVD de Rubens Ewald Filho, descobrimos muitas informações relacionadas a possíveis pesquisas lingüísticas e filológicas nas centenas de páginas de cada um.

Esta é a primeira vez que estaremos falando deles, mas definitivamente não será a última. Ainda traremos outros trabalhos à atenção da curiosa comunidade de pesquisadores de Língua Portuguesa.

No entanto, reconhecemos que não há espaço nestas páginas para a reprodução dos resultados totais dos números encontrados. Por isso, recomendamos aos leitores deste artigo que, após o XI CNLF, procurem tais números na página do Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos, www.filologia.org.br .

 

Referências Bibliográficas

INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. [CD-ROM]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

LOPES, Edward. Fundamentos da Lingüística contemporânea. 4ª ed. São Paulo: Cultrix, 1980.

SERPA, Oswaldo. Dicionário escolar: inglês-português; português-inglês. 8ª ed. 3ª tir. Rio de Janeiro: Fename, 1979.

Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas. [c. Ref.]. Rev. 1986. New York: Watchtower Bible and Tract Society of New York, Inc, 1990.

 

Bibliografia Recomendada

DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FARACO, Carlos Alberto (org). Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

LIMA, Luiz Costa (org). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

MARTINS, Lula Branco. Dez títulos que ficaram melhor em português. In: Revista de Domingo, 18 maio 2003, p. 34.

ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & indústria. São Paulo: Perspectiva, 2002.


 

[1] A palavra Babel deriva-se da raiz  do verbo hebraico ba.lál, “confundir; desconcertar”, dando assim a Babel o significado de “Confusão”.

[2] Embora muito já tenha sido dito e escrito acerca da derradeira origem das línguas naturais, tudo é conjectura, especulação ou teoria. Acreditamos ser este ou um enigma científico indecifrável ou uma simples questão de fé, seja na religião, seja em teorias científicas ainda não comprovadas.

[3] Observemos que, de fato, os referentes “cor do camelo”, “neve” e “onda” se apresentarão de maneiras distintas. Todavia, para nós, brasileiros, embora consigamos discernir algumas variações, os referentes “onda” e “neve” evocam um signo comum, ao passo que o referente “cor de camelo” evoca algumas representações diferentes, mas que não causam distinção significativa em nossa sociedade.

[4] Vale dizer que cada guia conta com mais de 1.200 indicações, com todas as informações técnicas a respeito do DVD, além do comentário de R. E. Filho. Os guias não trazem títulos somente dos anos de 2005 e 2006, mas de, praticamente, todo século XX e início do XXI.

[5] Esse filme deu aos tubarões uma fama nefasta, porém irreal, conduzindo a um quadro atual de quase extinção de algumas espécies. Ao passo que, mais de 1.200 pessoas morrem anualmente, em todo o mundo, por reações alérgicas decorrentes de uma simples picada de abelha, o número de mortos por ataque a tubarão gira em torno de 25. (Informação obtida em entrevista concedida por Lawrence Wahba a Jô Soares, no Jô Onze e Meia, s.d.)

[6] Havia títulos de séries de TV, mas foram deixados de fora da pesquisa. Encontramos também dois casos de críticas para o mesmo filme nos dois guias.

[7] Essa informação foi obtida com a Sra. Tânia Lima, gerente da União Brasileira de Vídeo (UBV), através de conversa telefônica. < www.ubv.org.br >