Da Linguagem Hipocrática ao Estilo Naveano

Edina Panichi (UEL)

 

O vocabulário médico na escrita de Pedro Nava constitui uma marca de seu estilo. A linguagem médica, no entanto, é usada com discrição e engajada em contextos onde possa ser decodificada sem entraves de entendimento. Os termos médicos assumem, em sua prosa, valores totalmente inesperados sem provocarem, no entanto, a menor sensação de esforço ou distorção para o alcance de seus objetivos. Em muitos casos, a expressão de um pensamento exige do autor uma dinâmica particular na construção de sua tradução, ou seja, determinadas circunstâncias reavivam um conteúdo anterior vivenciado pela força de relacionamentos análogos ao da situação original, como se pode perceber na passagem a seguir: “Guardei bem seu jeitinho e a carinha de feto engerizado mas... e seu nome? (Beira-Mar, p. 103)

A tradução tem como princípio retirar de uma fonte antecedente (não necessariamente elementos de uma outra língua) significados implícitos que possam funcionar em complementação descobrindo, assim, novas realidades, uma vez que “[...] o homem dispõe em sua memória de um instrumental para a tempos vários, integrar experiências já feitas com novas experiências que pretende fazer” (Ostrower, 1999:18).

Transcriar um pensamento, portanto, é aproximar identidades e diferenças naquilo que se pretende exprimir, produzindo novos sentidos e novas estruturas que conduzem à descoberta de novas realidades, alargando o sentido da idéia original e, ao mesmo tempo, complementando-a criativamente.

O trabalho de parto, experiência dolorosa, sugere por analogia o sofrimento de alguém acometido de abscessos periamigdalinos que provocam infecção aguda e não permitem que o doente se alimente: “Quarenta, quarenta e um [graus] de duas em diante, suores gelados de madrugada, um descanso até a hora do almoço diluído e posto para dentro como trabalho de parto às avessas [...]”. (Beira-Mar, p. 119)

Pedro Nava dá mostras de que a operação de substituição de elementos para a tradução do pensamento resulta numa recriação da forma, ou seja, um signo se traduz em outro. Traduz-se aquilo que toca, de acordo com o objetivo imediato, ou seja, o que suscita, nas palavras de PLAZA (2001:34), “afinidade eletiva”. No caso de Pedro Nava, a medicina, teve grande influência na sua forma de traduzir as idéias, e assim, por analogia e baseado na aparência sinistra de um de seus personagens, o autor dá a ele a seguinte descrição: “Apareceu uma figura negra e vasta encimada pela cabeça pequena e pela cara de placenta do monsenhor João Pio”. (Beira-Mar, p. 27)

Ao descrever um banco de trem avariado, somente a um profissional médico poderia ocorrer a imagem de um ferimento para exprimir a ruptura do estofamento. Percebe-se, aqui, a memória ordenando as vivências do passado e renovando um conteúdo anterior: “O banco de palhinha suja, fronteiro ao meu, no vagão, ostentava um rasgo feito a canivete, por onde herniava o forro claro do acolchoado”. (Chão de Ferro, p. 149)

O uso personalíssimo que o autor faz da forma verbal dá uma noção clara daquilo que ele quer transmitir, pois percebe-se claramente que há um estufamento do forro, análogo ao provocado pela doença, muito comum e conhecida de todos.

Ao se referir a um colega de escola, cujas principais características eram a alegria e a boa convivência, aplica-lhe adjetivos de emprego científico cujo conteúdo semântico justificam a boa acolhida do rapaz em seu grupo: “[...] era duma alegria contagiosa e possuía um riso epidêmico”. (Chão de Ferro, p. 153)

A tradução se dá, geralmente, quando se sente uma relação de semelhança entre o original e o que se quer expressar. Traduz-se aquilo que sensibiliza, que provoca. Busca-se traduzir a semelhança não explícita no original, instalando um desequilíbrio entre o estabelecido e o convencional e o resultado da operação criativa. Ostrower (1999: 20), ao se referir às associações que provocam nosso mundo imaginativo, assim se coloca: “Apesar de espontâneo, há mais do que certa coincidência no associar. Há coerência”.

As dores de uma paixão não correspondida podem produzir sentimentos de aproximação com algo que lhe é parecido, resultando em associações perfeitamente acessíveis ao espírito dos leitor que as compreende de imediato, participando do jogo intelectivo a que elas o convidam: “Ela passava sem olhar [...]. Meus desesperos. Minha dor-de-corno aguda como nervo exposto.” (Beira-Mar, p. 157)

Ao abordar as possibilidades do pensamento e da percepção, Kneller (1999: 16) esclarece: “A novidade criadora emerge em grande parte do remanejamento de conhecimento existente – remanejo que é, no fundo, acréscimo de conhecimento”. Para expressar uma situação de profunda tristeza, Pedro Nava vai buscar na sua experiência médica a forma verbal que melhor se adapta à situação: “[...] sabendo-me vivo só pelas lágrimas que meus olhos pariam [...].” (Beira-Mar, p. 257)

A forma verbal parir, aplicada às lágrimas, produz um efeito sugestivo de dor – uma vez que o autor se refere à perda irremediável de alguém – e alcança uma expressividade que ultrapassa o seu conteúdo lógico, resumindo a impressão de amargura e sofrimento. Da mesma forma, o ciúme sentido por alguém apaixonado é transposto para sintomas físicos: “Era geral como um  estado infeccioso [...]. E doía como dor pulsátil.” (O Círio Perfeito, p. 78)

As associações que vêm à nossa mente, embora às vezes difusas, “compõem a essência do nosso mundo imaginário” (OSTROWER, 1999:20). A criatividade não se restringe à novidade, mas à novidade alcançada numa realização criativa. Habituado a uma linguagem técnica, por força da profissão, Pedro Nava não hesita em cunhar um novo vocábulo para fornecer o diagnóstico de um paciente que, sem apresentar sintomas, não conseguiu sobreviver apesar do esforço dos médicos para descobrir-lhe a doença: “Um encrencoma tinha dado entrada na enfermaria.” (Galo-das-Trevas, p. 398)

Observa-se que o termo foi muito bem aplicado uma vez que resume exatamente a situação. O paciente ao dar entrada no hospital, já se encontrava num estado de semi-inconsciência, ou seja, num processo de pré-coma. Sem sintomas decisivos para um diagnóstico, representava uma “encrenca” para os médicos, naquele tempo sem Laboratórios ou Raios X.

O mesmo se pode observar na passagem a seguir em que o autor, ao descrever uma árvore, atribui-lhe qualidades evocadas à base de semelhanças armazenadas na memória e baseadas em conteúdos vivenciais:

Desmedida ramagem, tronco todo irregular e cheio de caneluras – como braço grosso cheio de veias – raízes retorcidas como miríades de dedos crispados sobre solo que seguram como se esgaravatassem. (O Círio Perfeito, p. 107)

Ao fazer referência ao forro dos bolsos da calça o autor, por associação com o intestino, assim se expressa: “O Cisalpino e o Egon puseram tripas à mostra. Tinham de seu, os dois juntos, cerca de duzentos e cinqüenta pilas”. (Galo-das-Trevas, p. 448)

A fusão de idéias no subconsciente, como se pode perceber, possibilita ao autor um remanejamento de seus conhecimentos de tal sorte a adequá-los a uma nova situação.

As memórias de Pedro Nava, como se pôde constatar, estão repletas de referências à medicina, profissão exercida pelo autor por mais de sessenta anos. Mas, mesmo que ele houvesse interditado o acesso de tais referências à obra, não lhe teria sido facultado negar-se a si mesmo: a escrita de Nava é a escrita dum médico. Aprendeu, sem dúvida, a escrever com os grandes romancistas brasileiros e europeus, mas não foi só a poderosa lição dos escritores longamente freqüentados em português, inglês, francês, que lhe sedimentou o estilo. Descobriu, também, segredos do ofício no manuseio curricular e profissional dos tratadistas clássicos da arte médica, dos grandes especialistas nas disciplinas descritivas. A atenção às minúcias, aos pormenores, às nuances, a delicadeza ou o realismo das exposições, o matizado sentido do essencial devem ter-lhe sido transmitidos por esses veneráveis mestres universais da medicina, nomes e obras amorosamente capitulados e diuturnamente assimilados ao longo de todo um curso superior. Conforme suas próprias palavras, em entrevista concedida ao Informativo Oficial da Sociedade Brasileira de Reumatologia[1]:

[...] uma vez médico, médico a vida inteira. A influência médica é em mim, total. Eu não julgo, diagnostico. Eu não aconselho, nem opino: prescrevo e receito. Eu não olho, nem vejo: inspeciono. Eu não seguro, nem passo a mão: toco, apalpo, percuto. Tendo todos os sentidos voltados para o modo de ser médico, minha literatura sofreu inevitavelmente a marca que a profissão deixou em mim.

O grande interesse demonstrado quando ainda estudante, pelo estudo da anatomia e da morfologia aguçou, em Pedro Nava, o senso de observação e percepção do ser humano. Tal capacidade transfere-se, assim, para o seu texto. As percepções, no entanto, não são gratuitas nem as conexões se estabelecem ao acaso. São experiências acumuladas e vividas ao longo de uma carreira e, por mais inesperadas que possam parecer, tais percepções estendem as possibilidades do pensamento criativo, num remanejamento do conhecimento existente e apresentam marcas “de uma especialização do olhar”, como observa Salles (2006:76).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

KNELLER, George F. Arte e ciência da criatividade: Trad. de J. Reis. 14ª ed. São Paulo: Ibrasa, 1999.

NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 3ª ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1976.

––––––. Beira-Mar: memórias 4. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.

––––––. Galo-das-trevas: memórias 5. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

––––––. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva; (Brasília): CNPq, 2001.

SALLES, Cecília A. Redes da criação: construção da obra de arte. São Paulo: Horizonte, 2006.


 

[1] Informativo Oficial da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Ano VII, abr/maio/jun. 1983, p. 08.