PAPÉIS AVULSOS E AS CONSEQÜÊNCIAS DAS INTROMISSÕES EDITORIAIS QUANTO À PRODUÇÃO DE SENTIDOS.

 

Fabiana da Costa Ferraz Patueli- LABEC/UFF.

 

Este trabalho se refere às pesquisas realizadas por mim, membro da equipe formada no Laboratório de Ecdótica (LABEC) da Universidade Federal Fluminense (UFF) cujo projeto é a elaboração de uma Edição Crítica da obra Papéis avulsos de Machado de Assis. O trabalho pretende ressaltar a importância da obra para o autor, e para os leitores que se alimentaram dela e para os outros leitores de hoje que deverão receber o texto conforme a última edição publicada em vida pelo seu autor.

As pesquisas preliminares foram realizadas nas seguintes instituições e em seus acervos: Academia Brasileira de Letras, Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, Casa de Rui Barbosa, que nos rederam informações preciosas acerca da escolha do texto crítico (editado pelos Srs. Lombaerts &C., em 1882) e as vulgatas (editadas pela Garnier e pela W. M. Jackson Inc.) a serem cotejadas.

Segundo J. Galante de Souza,

“As edições feitas em vida do autor já se vão tornando raras no mercado, e, apesar de inçadas de erros tipográficos, são ainda preferíveis, porque as que têm sido feitas posteriormente à sua morte (tanto as da antiga casa Garnier, como as de W. M. Jackson Inc.) não merecem fé” (SOUZA, 1955: 39).

A falta de credibilidade citada por Galante de Souza das edições publicadas após a morte de Machado de Assis é devido às modificações estabelecidas conscientemente ou por negligência pelos editores e revisores, como por exemplo: a “falta de vocábulos e de frases, intromissões de palavras alheias ao texto de origem, trocas, substituições, truncamento, enfim... colaboração literária dos editores!” (SOUZA, 1955: 40).

Seguindo as pistas externas deixadas por Machado de Assis, como a carta a Joaquim Nabuco de 14 de abril de 1883, referente à publicação de Papéis avulsos, os contos que constituem esta obra “Não é propriamente uma reunião de escriptos esparsos, porque tudo o que alli está (excepto justamente a Chinella turca) foi escripto com o fim especial de fazer parte de um livro [...]” (ASSIS, 1944: 40), verifica-se que Papéis avulsos se trata de uma composição una. O autor também confirma esta unidade aos seus leitores na parte intitulada ADVERTÊNCIA da própria obra publicada em 1882.

 Machado de Assis, na mesma correspondência enviada ao seu amigo Joaquim Nabuco também faz referência às notas do livro, cita a colaboração de ambos na Epocha que durou apenas quatro números, em que foi publicado a Chinella Turca em 14 de novembro de 1875, sob o pseudônimo de Manassés. No decorrer da carta, Machado de Assis deixa claro que o livro que enviou ao seu amigo, Papéis avulsos, é um transmissor de suas memórias. Memórias estas que o autor fixa e disponibiliza: “O livro está nas mãos do leitor” (ASSIS, 1882: I).

Já é questão dita e discutida que a transmissão literária passa por vários obstáculos: lapsos, enxertos ou censuras dos tipógrafos/ digitadores/ revisores; feitos de forma intencional ou não. Há também casos em que se compõem livros endereçados a um determinado grupo leitor, por isso muitas das vezes mais resumidos, seja por interesse editorial financeiro ou ideológico. Por exemplo, segue o caso das edições de Troyes relatada por Roger Chartier no seu texto Do livro à leitura, em que uma das formas de intervenções editoriais dos textos segue uma

“[...] estratégia da redução e da simplificação. Com efeito, na maior pare dos casos, as edições de Troyes encurtam de duas maneiras os textos que reproduzem. A primeira consiste em dilatar o texto, em abreviar certos episódios, em operar cortes às vezes severos” (2001: 103).

Mexem e recompõem as palavras, as suas disposições e o conjunto de significação construído anteriormente por seus autores, poupando ao leitor do diálogo com um texto autêntico, numa teia única de sentidos que constituem a memória, como foi Papéis avulsos para Machado de Assis.

Assim,

“[...] podemos definir como relevante à produção de textos as senhas, explícitas ou implícitas, que um autor inscreve em sua obra a fim de produzir uma leitura correta dela, ou seja, aquela que estará de acordo com sua intenção. Essas instruções, dirigidas claramente ou impostas inconsciente ao leitor, visam a definir o que deve ser uma relação correta com o texto e impor seu sentido [...]” (CHARTIER, 2001: 96).

Pode-se continuar a exemplificação com o conto a Verba testamentária, pertencente a Papéis avulsos, em que por meio de um cotejo muito superficial com a edição de 1937, publicada pela W. M. Jackson Inc., nota-se o corte de uma frase final—  “FIM DA VERBA TESTAMENTARIA.” (ASSIS, 1882: 290)— presente na primeira edição publicada em 1882 pela Lombaerts & C.

As modificações ocorridas no processo de editoração, ao longo do tempo de algumas obras sofrem com a metamorfose de estilos editoriais. De acordo com Roger Chartier, que se refere à história das práticas de leitura, um texto pode ser lido de diferentes maneiras conforme as características e gostos pessoais do leitor e que seus signos se entrelaçam com os elementos editoriais que vendem um determinado grupo de significação:

 “[...] trazidas pelas próprias formas tipográficas: a disposição e a divisão do texto, sua tipografia, sua ilustração. Esses procedimentos de produção de livros não pertencem à escrita, mas à impressão, não são decididas pelo autor, mas pelo editor-livreiro e podem sugerir leituras diferentes de um mesmo texto [...] efeitos maiores sobre as próprias significações atribuídas às obras” (CHATIER, 2001: 97).

Desta forma, os desprendimentos de sentidos sujeitos ao leitor, estão ligados à sua maneira de ler e às suas experiências pessoais, além da formatação textual ou da sua própria compactação, ou ainda da sua reorganização na página. Concordando com Roger Chartier que:

“[...] não considera mais o impresso como um suporte neutro, nem como uma unidade válida para ser colocada em série, mas como um objeto cujos elementos e estruturas remetem, de um lado, a um processo de fabricação cujas dificuldades eram grandes na época da composição manual e da impressão manual e, de outro, a um processo de leitura ajudado ou derrotado pelas próprias formas dos materiais que lhe é dado a ler [...]” (2001: 96).

Fato responsável por olhares e discussões diferenciadas a cada leitura e releitura feita de uma obra que se constitui um grão pertencente ao patrimônio do conhecimento no íntimo de cada leitor e que faz parte da cultura de uma sociedade.

Pois resguardar o texto, assim como foi consagrado pelo autor, através dos dispositivos editoriais, bem como os seus elementos textuais, é orientar o leitor a uma “construção de significação através do ato de leitura” (CHARTIER, 2001: 99).

Com efeito, podemos dizer quanto ao sistema de intervenção editorial os

“[...] dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância ou até mais, do que os ‘sinais’ textuais, pois são eles que dão suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mudam, traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa do público e propondo novas significações além daquelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores” (2001: 100).

Portanto, manter a obra como o autor assim desejou que fosse publicada é, sobretudo, conservar um tesouro que descreve uma época e estereótipos; é resguardar um patrimônio pertencente à cultura de uma sociedade, responsável muitas das vezes pela reconstrução de uma história extra-oficial ou determinadora das situações históricas apreendidas na escola, concordando então com Jean Marie Goulemot:

 “[...] essa história mítica participa de nosso ato de ler [...] ela molda toda leitura [...] ela está presente tanto na leitura como na escrita, uma vez que, além de opções, constitui um tecido, um discurso comum” (2001: 112).

 

 

 

REFERÊNCIAS:

 

 

ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Lombaerts &C, 1882.

 

ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1937.

 

________________. Correspondencia. São Paulo: W. M. Jackson Inc., 1944

 

CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In: __________ (Org). Práticas da leitura. Iniciativa de Alain Paire, trad. Cristiane Nascimento, introd. Alcir Pécora. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 77-105.

 

GOULEMOT, Jean Marie. Da leitura como produção de sentidos. In CHARTIER, Roger (Org). Práticas da leitura. Iniciativa de Alain Paire, trad. Cristiane Nascimento, introd. Alcir Pécora. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 107-116.

 

SOUZA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: MEC, Instituto Nacional do Livro, 1955.