pela estrada afora,
no caminho das complementações,
uma parada obrigatória

Ana Célia Clementino Moura - UFC

 

Introdução

Constitui-se nosso objetivo nesse trabalho verificar, além das ocorrências de estruturas lingüísticas produzidas através do que denominamos relação de complementação (RCOM) os contextos lingüísticos em que elas ocorrem. Essas orações são um termo sintático da oração complexa. Como o próprio nome sugere, elas têm a função de completar o sentido de um sintagma da oração na qual estão inseridas.

Procuraremos, sempre que pertinente, observar como essas construções começam a ser usadas pelas crianças e, ao longo das produções dos textos, como as RCOM vão sendo inseridas. Além disso, é interesse nosso relacionar o uso dessas orações com outros elementos do texto das crianças que empregam tais construções.

Para realizar este trabalho, utilizamos o mesmo corpus no qual desenvolvemos nossa pesquisa do Doutorado, do qual se constituem sujeitos quarenta e oito crianças de uma escola particular de classe média, sendo que cada uma produziu quatro versões da mesma história. Elas foram distribuídas em dois grupos: um composto por vinte e quatro crianças com a média de idade 5,9 que, quando participaram, no momento inicial da pesquisa, encontravam-se na alfabetização. A esse grupo chamamos Grupo da Alfabetização (GA). O outro grupo, também formado por vinte e quatro crianças, com idade média de 6,8, que estavam na 1a série quando escreveram seus primeiros textos. A esse grupo chamamos de Grupo da 1a série (G1). Por se tratar de uma pesquisa longitudinal, os textos foram coletados em diferentes momentos: junho e novembro de 1997 e junho e outubro de 1998.

Nosso estudo acerca dessas construções focaliza também os conectores empregados pelas crianças; os contextos em que eles aparecem; as funções exercidas por essas orações; os tipos de discurso em que elas foram mais freqüentes. Esperamos chegar a conclusões acerca da construção dessa relação que possam elucidar dúvidas de professores que se vêem obrigados a ensinar esse conteúdo, às vezes até sem saber o rumo que devem seguir.

 

Ancoragem teórica

Para efeito de classificação das orações, nossa pesquisa estará ancorada na proposta de Fávero (1987), que se baseou em Beaugrande e Dressler. A autora chama de junção aos vários processos de seqüencialização que expressam os diferentes tipos de interdependência semântica dos enunciados. Assegura que tanto as pausas como os conectores frásicos exprimem junções. Fávero (1987:54) as divide em: conjunção – adicionam-se conteúdos compatíveis, disjunção – revelam-se declarações alternativas, contrajunção – articulam-se proposições opostas. Tanto na junção que expressa condicionalidade como na que manifesta causalidade atrela-se a veracidade de um fato à do antecedente. O que as diferencia é que a última declara algo real, uma condicionalidade factual. Há ainda a junção de complementação – uma oração completa o sentido da outra e a de restrição ou delimitação – uma limita o sentido de um termo da outra. A de complementação corresponde às substantivas e a de restrição ou delimitação às adjetivas. Estas últimas foram o foco dos nossos dois projetos, referidos no primeiro parágrafo dessa seção; a de complementação, objeto deste.

A conjunção indica a união de proposições cujos conteúdos se adicionam. Para Fávero (1987:55), a conjunção se baseia na relação semântica da compatibilidade, ou seja, a verdade de uma das frases não exclui a verdade da outra. Em Levantou-se, tomou café e saiu., por exemplo, todas as orações são verdadeiras e nenhuma delas exclui a veracidade da outra. Fávero (op.cit.) chama a atenção para o fato de que as sentenças ligadas por conjunção não são comutativas, isto é, a ordem em que aconteceram os fatos deve ser respeitada, daí não se poder dizer Saiu, levantou e tomou café., nem Saiu, tomou café e levantou.

A articulação entre proposições que expressam conteúdos alternativos é feita através da disjunção. O conectivo ou que, em geral, liga este tipo de oração pode ser inclusivo, isto é, significa que ambas as alternativas podem ser verdadeiras – Você quer sorvete ou chocolate?, ou exclusivo, isto é, só uma das proposições poderá ser verdadeira, como em Pedro ou José será eleito representante da turma no conselho.

Fávero denomina de contrajunção o tipo de ligação que articula proposições cujos conteúdos se opõem. Algumas vezes a oração articulada pelo mas revela que não existem condições para que uma situação ocorra. Quando são construídas orações do tipo Teve de esperar cinco anos, mas casou-se com ela., ou Fez o que quis mas levou na cabeça., a expectativa criada no ouvinte foi frustrada. A autora considera igualmente conectores de contrajunção o emboraFoi à festa, embora estivesse doente. e qualquer outro termo que contraponha fatos, como o ainda que Sairemos ainda que chova., ou o mesmo queMesmo que ele fosse o maior nadador do mundo, não ganharia essa prova. A autora diz existir uma diferença fundamental entre os segmentos introduzidos pelo mas e os iniciados por embora, mesmo que, ainda que, apesar de: “com o primeiro só é possível a ordem p, mas q e nunca mas q, p, e com os segundos é possível A, embora B e Embora B, A; neste último enuncia-se com antecedência que o argumento se manterá” (Fávero, 1987:56).

Diz-se que a junção de duas proposições se dá através de uma relação de condicionalidade, quando uma delas só se realizar na dependência de a outra também acontecer. As afirmações não precisam, necessariamente, ser verdadeiras, entretanto, uma só o será se a outra também o for. Em se tratando da junção de condicionalidade, Fávero afirma poder ser de três tipos: factual ou real, inserida na relação de causalidade, a condicionalidade não factual ou hipotética e a contrafactual ou irreal.

O conteúdo expresso na condicionalidade não factual aponta para o mundo real não acessível naquele momento; refere-se a algo do futuro, que poderá acontecer, ou não. Hipotética, portanto, como em Se você estudar, será aprovado. Um fato só se realizará (ser aprovado), se também se realizar o outro (estudar).

A condicionalidade contrafactual refere-se a fatos absolutamente fora do mundo real, daí, condicionalidade irreal. As ações descritas só aconteceriam num mundo alternativo ao real, como em Se eu tivesse asas, voaria bem alto., ou Compraria uma fazenda, se tivesse dinheiro.

Nas orações cuja relação estabelecida entre elas é de causalidade, a verdade de uma está diretamente dependente da veracidade da outra. Daí se dizer que as relações causais expressam condições reais e, portanto, estar aqui incluída a condicionalidade factual ou real. Tanto se poderia dizer Se Maria é solteira, então nunca foi casada., ou Maria é solteira porque nunca foi casada. O estado de coisas descrito na primeira assertiva implica necessariamente o descrito na segunda. Estabelece-se, assim, uma relação de causa e efeito.

Além de descrever essa relação de causa e efeito, também se incluem nas relações de causalidade as que apresentam conseqüências de uma causa determinada – O torcedor gritou tanto durante o jogo, que ficou sem voz –, ou conclusões – João não estudou, por isso foi reprovado.

Realiza-se uma relação de complementação entre duas proposições, quando uma completa o sentido de um termo da outra. Embora Fávero (1987) reconheça que estas correspondam, na Gramática Tradicional, às substantivas, discorda que se faça distinção entre objetivas diretas e indiretas, uma vez que os chamados complementos indiretos, algumas vezes, admitem a ausência da preposição. Além desse argumento, sustenta que, “se o verbo tem duas regências, uma com preposição e outra sem ela, porém o significado é o mesmo; se as construções como SN V prep SN podem vir apassivadas, parece-me que a preposição aparece por exigência idiossincrática da língua (regência) e deveria vir especificada na estrutura lexical do verbo.” (Fávero,1987:58).

Fazem parte ainda da relação de complementação, as subjetivas e as apositivas. Para Fávero, levando-se em conta a lógica dos predicados, as subjetivas estariam também incluídas nas completivas objetivas. De acordo com a lógica dos predicados, a frase se constitui de um predicado seguindo de um ou mais argumentos e cada predicado pode ser descrito de acordo com o número de argumentos que aceite. Assim, as frases i) Marta estuda., ii) Marta come doce. e iii) Marta deu um presente a Luís. Classificam-se i) como um predicado com um argumento, ii) um predicado com dois argumentos e iii) um predicado com três argumentos. Dessa forma, qualquer das seguintes construções Convém que estudes., Parece que ele chegou. ou É preciso que você chegue cedo. também são formadas por um predicado de um só argumento.

As complementações apositivas são, para Fávero (op.cit.) um tipo de “catáfora enfática que cria expectativas no alocutário e não um tipo especial de oração, como quer a NGB” (p.59). Analisando a sentença Só disse isso: que era inocente., poderíamos dizer que, seguindo esse princípio, entender-se-ia que a primeira oração – Só disse isso: – apenas criou uma expectativa no ouvinte. E o pensamento se completa com a segunda oração que era inocente.

Assim como há casos em que uma oração completa o sentido de um termo de outra, também existem contextos em que uma oração inteira restringe a abrangência de significado de algum termo mencionado em outra proposição. Por exemplo, ao dizer Paulo viu uma menina que toca piano., a segunda oração delimita a menina que foi vista por Paulo, não foi qualquer uma, mas aquela que toca piano. Quando isso ocorre, dizemos que se estabelece entre as proposições uma relação de restrição ou delimitação. Segundo Fávero (op.cit.), existe entre os dois termos das orações uma relação de co-referencialidade. Ao mesmo tempo em que o alcance do termo menina fica delimitado pela oração seguinte, esta mantém com a primeira uma estreita relação, que foi estabelecida através do conectivo que, o mantenedor da conexão e substituto do termo com o qual se relaciona.

As relações de complementação se constituem o principal foco desse trabalho, conforme se vê nos objetivos que seguem.

Constitui-se objetivo geral do nosso trabalho, analisar o emprego da complementação em textos narrativos produzidos por crianças em fase de aprendizagem da escrita. Assim, visamos primeiro, identificar, em produções textuais de crianças, os conectores empregados para construir proposições que completam o sentido de um termo de outra proposição e depois, verificar, em produções textuais de crianças, o tipo de discurso em que são usadas relações de complementação. Também pretendemos examinar se há predominância de algum tipo de relação e analisar, nos textos produzidos por crianças, os verbos que são empregados na construção das proposições que completam o sentido de outras.

Algumas hipóteses norteiam nosso trabalho: a primeira, a de que na construção das relações de complementação, a criança emprega preferencialmente a conjunção integrante que e a segunda, a de que as relações de complementação, nos textos escritos por crianças, surgem, inicialmente em trechos em que ela emprega o discurso indireto. Uma outra hipótese direciona nossa atenção: dentre todos os tipos de relações de complementação, predomina, nos textos das crianças, a objetiva. Finalmente, acreditamos que os verbos transitivos diretos são os mais empregados pelas crianças na construção dessas relações.

 

As complementações nos textos das crianças:
uma visão geral

Primeiramente, verificando a ocorrência de RCOM nos textos dos dois grupos, observamos que tanto GA como G1 apresentam comportamento semelhante, conforme se vê nas duas seqüências de gráficos apresentados a seguir. Em ambos os grupos essas estruturas apresentam um crescimento significativo do primeiro para o segundo texto, entretanto, deste para o terceiro registra-se um pequeno decréscimo no uso. No caso do G1, do terceiro para o último não ocorreu qualquer alteração: em ambas as produções, 66,7% dos textos apresentam orações que completam o sentido de um outro termo.


 

Seqüência 1:
Representação, por texto, do uso de RCOM no GA e G1:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Um ponto que torna os dois grupos diferentes é apenas o fato de no primeiro texto do G1 haver uma presença mais acentuada do que a presença no primeiro texto do GA. No grupo da 1ª série, logo no primeiro texto, 50% das crianças já constroem sentenças que completam o sentido de outra, enquanto no grupo da alfabetização somente 21% usam essa estrutura em seu primeiro texto.

Analisando os conectores empregados pelas crianças para introduzir, em um enunciado, uma informação que completa o seu sentido, em forma de oração, detectamos: i) no grupo composto por todas as crianças, os conectores mais empregados, em ordem crescente, foram: se (0,6%), qual (1,7%), quem (2,3%), onde/aonde (5,3%), para (34,5%) e que (55,6%); ii) no GA só um conector (para) foi empregado somente uma vez, introduzindo fala de personagem; iii) a predominância absoluta de relações de complementação está em trechos produzidos em discurso indireto: 97,8% no GA e 82,5% no G1.

Ao ser inserida num enunciado matriz, a oração de complementação assume a função de um termo da matriz, já que se torna de fato um elemento desse enunciado maior. No tocante à função dessas relações de complementação construídas, verificamos: i) a ocorrência de orações com função de sujeito e de objeto indireto foi irrelevante (1,2% para cada um desses tipos); ii) na função de predicativo, o percentual foi também muito pequeno (2,9%); iii) a concentração de uso das relações de complementação ficou com aquelas cuja função na proposição matriz é de objeto direto.

Mesmo reconhecendo que, numa visão global, em termos numéricos, os grupos tiveram comportamento semelhante, e usaram predominantemente o mesmo tipo de oração (com função de objeto direto), há alguns pontos do GA e do G1 que merecem especial comentário. Daí, na próxima seção, optarmos por fazer uma “parada obrigatória”, com o objetivo de analisarmos alguns textos das crianças.

 

No caminho das complementações,
uma parada obrigatória

Para isso, escolhemos a série de textos de uma criança do grupo da alfabetização, Lucas, e a série de textos de Nara, do grupo da 1ª série. Ambos têm RCOM em todos os três textos. Lucas é o único do seu grupo que, apesar de só ter conseguido produzir seu primeiro texto no momento da segunda coleta, empregou relações de complementação nos três textos.

Embora Lucas não tenha diversificado o conector – empregou sempre o que – ele alterou a forma de apresentar o texto. Vejamos, por exemplo, o uso que faz da complementação:

ate que olobo mal tava perto da chapeu e inventou que o era um anjo.  Lucas (7) – 1º texto

tá mãe, vou ir ela foi. o lobo fingindo que era um anjo e o lobo. falou eu sou o anjo da floresta (...) Lucas (8) – 2º texto

quando estava andando percebel que não tinha perigo e foi pela floresta e chegou perto (...) chapelsinho chegou na casa quando percebel que  era o lobo se trancou no guardaroupa                            Lucas (8) – 3º texto

Do primeiro para o segundo texto, percebe-se que a criança avança no uso do verbo: no primeiro texto narra o fato no pretérito perfeito – inventou que era um anjo, enquanto no terceiro o faz empregando o gerúndio – fingindo que era um anjo. O uso do gerúndio demonstra que procurou dar um caráter mais formal ao seu texto, embora, ao mesmo tempo, se perceba a dificuldade que ainda representa para ela essa construção. Como a proposição matriz (o lobo falou) ficou entrecortada pela ressalva que Lucas introduziu (fingindo que era um anjo) e na qual aparece uma complementação, ele não conseguiu retomar o que começara a dizer, daí ter repetido o sintagma o lobo. A opção pelo gerúndio pode ter-se dado porque aí se insere uma perspectiva do narrador, diferentemente dos demais contextos, nos quais ocorre a própria narração do fato, daí o emprego do pretérito perfeito. No seu último texto, além de empregar as temporais antepostas, o que para Axt (1993) se constitui um índice de maturidade lingüística, não apresenta dificuldade em remeter a mesma ação a um sujeito anteriormente mencionado. Como se vê em seu último texto, não há a repetição do sujeito.

Analisemos agora as ocorrências de RCOM nos textos de Nara.

Era uma vez uma menina que morava no bosque um dia sua

mãe li chamou e dise Chaeuzinho venha cá se mamãe eu quero que

você leve esses doses para a sua vovozinha esta bem mamãe

(...)

oi menina quem esta ai sou eu seu acho da

guarda eu vin li dizer que não va por

ese caminho va pe o outro

Nara (7) – 1º texto

– olá menininha

– quem e você

– eu sou o seu anjo da guarda

meu ajo da guarda

é e é melhor que você vá pelo lado do rio               Nara (7) – 2º texto

 

– Chapeuzinho venha cá

– Já vou mamãe

– Chapelzinho quero que você vá vizitar a sua vovozinha

Nara (8) – 3º texto

– Chapeuzinho Vermelho venha cá – falou a mãe

– que é mamãe

– quero que você vá entregar esses doses para a sua vovozin-

ha ela estar muito doente

(...)

– são doses para a minha vovozinha

– a para a vovozinha vamos ver quem chega

primeiro lá na casa da vovó

– vamos                                                                      Nara (8) – 4º texto

Algumas considerações podem ser feitas aos textos de Nara. Em relação ao primeiro texto, por exemplo, há duas ocorrências de RCOM e ambas com função de objeto direto. No tocante a aspectos convencionais da escrita, percebe-se que, mesmo transcrevendo diversas falas de personagens, a criança ainda não empregou qualquer marca gráfica, como o uso de travessão ou a mudança de linha. Além disso, o texto da criança se estende até o final da margem direita da folha de papel. É claro que, mesmo com esses indícios, não podemos afirmar que ela desconhecia todos esses recursos da língua. Entretanto, a ausência dessas marcas no primeiro texto, se comparado aos recursos utilizados nos seguintes, talvez nos autorize afirmar que a criança vem se apropriando desses conhecimentos gradativamente, principalmente no que diz respeito ao emprego das marcas do diálogo. No primeiro texto não há qualquer marca; no segundo, embora haja a presença do travessão, nem sempre que há a introdução da fala de personagens ele é usado; no terceiro, as marcas de diálogo estão empregadas adequadamente; no último, além dessas marcas estarem plenamente de acordo com as normas de uso delas, Nara indica a que personagem pertence determinada fala de forma posposta.

A respeito do tipo de RCOM empregada nos textos, predomina a que funciona como objeto direto, mas vale salientar que há, no segundo texto, a ocorrência de uma subjetiva, ou seja, uma oração com função de sujeito. Essa construção é mais complexa que a construção da objetiva direta porque, além de o sujeito estar representado por uma oração inteira e não apenas por um termo ou um sintagma, ele ocorre posposto, ou seja, numa posição não convencional.

Em relação ao elemento empregado para iniciar essas orações, vê-se a predominância absoluta do que. Esse, além de ter sido o mais empregado para introduzir RCOM, é um conector que aparece em outros contextos e com diferentes funções. De acordo com Givón (1995), por assumir diversos valores, esse conector tende a ser mais simples e aparece com mais freqüência na língua. Ora, tendo acompanhado pontos específicos que demonstram ampliação de conhecimentos das estruturas lingüísticas, como analisamos anteriormente, e percebendo que Nara, no seu quarto texto emprega o pronome quem introduzindo uma oração com função de objeto direto, parece-nos que isso pode ser considerado uma evidência do crescimento lingüístico de Nara no emprego das estruturas da língua.

Parece-nos igualmente interessante observar que a construção da oração subjetiva (texto 2) ocorreu numa sentença em que o lobo, se fazendo passar pelo anjo da guarda de Chapeuzinho, faz uma advertência à menina. Acreditamos que vale comparar a construção dessa advertência no texto 1 e no 2, embora entre elas não se possa detectar qualquer marca de evolução no uso de RCOM:

oi menina quem esta ai sou eu seu acho da

guarda eu vin li dizer que não va por

ese caminho va pe o outro                                        Nara (7) – 1º texto

 

– olá menininha

– quem e você

– eu sou o seu anjo da guarda

meu ajo da guarda

é e é melhor que você vá pelo lado do rio                Nara (7) – 2º texto

Percebe-se que a mesma advertência (de não ir por um determinado caminho) foi feita nos dois textos, entretanto, no segundo, o uso da expressão é melhor permite que se interprete como um conselho que o lobo estava dando à menina. Observe-se ainda o destaque que Nara dá à fala do lobo, construindo um enunciado que, mesmo iniciado pelo e, não tem feições de oração aditiva.

No momento em que concluímos a análise do emprego das relações de complementação, identificamos em nosso corpus alguns pontos que ratificam afirmações de Hunt (1966), quando investigou o desenvolvimento sintático em crianças. De acordo com o autor (op.cit.), o emprego das orações substantivas, que em nosso trabalho são denominadas relações de complementação, não representa índice de maturidade sintática, ou seja, o fato de um escritor usar mais orações desse tipo do que outro não assegura que aquele que usa um maior número tenha nível de maturidade maior. Isso ficou constatado também nos textos de nossas crianças. Ocorreu de encontrarmos textos de sujeitos da alfabetização com presença maior de RCOM nos primeiros textos. Às vezes, a criança constrói relações de complementação nos primeiros e não emprega uma sequer nos subseqüentes, como é o caso de Beatriz, conforme se pode ver nos fragmentos abaixo:

chapesinho vermelho estava brincado com aborboleta e a mãe dela

samou [chamou] ela paraentrega bolo e dosim ela encomtro o lobo mau

e esi [disse] para e pelo oto cainho                        Beatriz (7) – 1º texto

um dia a mãe da menina pedio para chapesinho vermelho

deicha uma cesta de piquenique na casa

davó dela so que ates amãe

vá pelo caminho da estrada os casadores desseram

que um lobo

souto pela floresta

(...)

vou pra casa da minh

a vó deixa esse doces na minhavó aminha

mãe falou paranão

e pela florestaporque os casadores desseram

que o lobo

mau esta souto                                                          Beatriz (7) – 2º texto

Em sua primeira produção, Beatriz empregou uma relação de complementação, introduzida pelo para, em trecho narrativo, com função de objeto direto. No segundo texto, produzido seis meses depois, a garota usou quatro orações desse tipo. É indiscutível que a criança amadureceu nesses seis meses, e que ela empregou diversos recursos da língua é também indiscutível. Entretanto, não se pode comprovar essa maturidade apenas pelo uso abundante de RCOM. Se assim fosse, o que dizer do seu nível de maturidade quando produziu o terceiro e o quarto textos. Nestes, Beatriz não empregou uma oração sequer com a função de completar o sentido de termos ou expressões contidas em outra proposição.

Nossos dados novamente tendem a ratificar outra constatação de Hunt (1966): o número de ocorrência desse tipo de oração é determinado pelo modo de discurso. Acreditamos que o modo de discurso seja o que justifica Beatriz não ter empregado RCOM nos dois últimos textos. No terceiro, usa o discurso direto e parece estar se apropriando das convenções gráficas que demarcam esse tipo de discurso – empregou travessão apenas em uma fala; no quarto parece já ter evoluído no emprego de tais convenções – usa travessão e dois pontos, mas ainda não as domina: faz inadequadamente a mudança de linha quando muda o interlocutor. Essas observações podem ser comprovadas nos fragmentos abaixo:

um dia sua mãe disse:

– vá a casa da vovó e leve esses doces

para a vovó

(...)

eincontrol o lobo mau disfarçado de anjo

que dissevá pelo caminho mais longo                   Beatriz (8) – 3º texto

 

Um dia quando estava brincando sua mãe chamou:

– Chapeuzinho venha cá.: – Estou indo mamãe.: – Sua avó está múi-

to doente, vá levar esses doces para ela.: – Esta bem.: – Só tome

cuidado com a floresta vá pelo caminho da estrada:

– certo. E Chapeuzinho foi seguindo a estrada, quando che-

gou no meio do caminho encontrou o lobo. Ele disse: – vá

pela florestas, ele não etá lá.                                 Beatriz (8) – 4º texto

 

Que conclusões, se há muitas outras questões?

E há alguma conclusão possível, quando o caminho está sendo construído? Pela estrada afora por onde passamos, verificamos que os conectores mais usados para introduzir, em forma de oração, uma informação que completa um enunciado, foram o que (55,6%) e o para (34,5%). Outros, de uso irrelevante, foram: se (0,6%), qual (1,7%), quem (2,3%) e onde/aonde (5,3%).

A respeito do emprego do conector para, é interessante destacar que, com a função de introduzir a fala de uma personagem, ele foi usado somente uma vez. Todas as outras foram em discurso indireto, que, havemos de ressaltar, foi o contexto em que predominou o uso dessas construções: 97% no GA e 82,5% no G1.

Quanto à função, verificamos que a concentração no uso dessas relações ocorreu nas com função de objeto direto.

Mesmo reconhecendo que esse tipo de construção não ocorra com muita freqüência nos textos das crianças que compõem o corpus, acreditamos que as poucas conclusões a que os dados nos permitiram chegar são de grande valia para todos que trabalham com crianças em fase de aquisição da língua escrita. Embora a estrutura morfossintática desse tipo de oração não pareça complexa, principalmente se levarmos em conta que, como diz Givón (1995:278), são construções análogas a V+OBJ de uma oração simples, elas parecem ser uma aquisição tardia na linguagem escrita das crianças.

 

Referências Bibliográficas

ABAURRE, Maria Bernardete Marques, FIAD, Raquel Salek e MAYRINK-SABINSON, Mª Laura Trindade (1997). Cenas da aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto. Campinas-SP: Mercado das Letras: Associação de Leitura do Brasil (Coleção Leituras no Brasil).

ADAM, Jean-Michel e REVAZ, Françoise (1997). A análise da narrativa. Lisboa: Gradativa.

CALKINS, L. M. (1989). A arte de ensinar a escrever. Porto Alegre: Artes Médicas.

CARDOSO, Cancionila Janzkovski (2003). A socioconstrução do texto escrito: uma perspectiva longitudinal. Campinas-SP: Mercado das Letras.

CLARK, Herbert H. and CLARK, Eve V. (1977). Psychology and language: an introduction to psycholinguistics. New York, Chicago, San Francisco, Atlanta. Harcourt Brace Jovanovich, Inc.

FÁVERO, L.L. (1987). “O processo de coordenação e subordinação: uma proposta de revisão”. In: KIRST, Marta Helena B. e CLEMENTE, E. (orgs.) (1987). Lingüística aplicada ao ensino do português. Porto Alegre: Mercado Aberto.

FITZGERALD, Jill (1989). “Research on Stories: Implications for Teachers” In: MUTH. K. D. Children’s comprehension of text. Newark, Delaware, International Reading Association.

GIVÓN, T. (1990) “From discourse to syntax: grammar as a processing strategy”. In: Syntax and semantics. vol. 12, p.81-109.

GUIMARÃES, E. (2001) Texto e argumentação: um estudo de conjunções do português. Campinas–SP: Pontes.

HALLIDAY, Michael A. K. (1978) El language como semiótica social: la interpretación social del lenguaje y del significado. México: Fondo de Cultura Economica.

____________ (1985) An introduction to functional grammar. Baltimore: Edward Arnold.

HUNT, K. W. (1966). “Recent measures in syntactic development.” In: Elementary English. vol. XLIII (November), Chicago.

LAMPRECH, Regina Ritter (org.) (1999). Aquisição da linguagem: questões e análises. Porto Alegre: EDIPUCRS.

MENYUK, P. (1975). Aquisição e desenvolvimento da linguagem. Prentice, Hall Inc Englewood Cliffs.

MOURA, Ana Célia C. (2001). “Concepções de crianças sobre a linguagem que deve aparecer em livros.” In: Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 36, nº 3, p.473–480.

________________ (2002). A construção das relações interfrasais em narrativas escritas por crianças em fase de aquisição da língua: um estudo longitudinal do emprego de elos coesivos. Tese de Doutorado, UFC.

OCHS Elinor (1979). Planned and unplanned discourse. In:GIVÓN, Talmy (1979). Syntax and Semantics. San Diego – California: Academic Press Limited.

PERRONI, Maria Cecília (1997). Primeiras sentenças complexas na linguagem da criança. In: Estudos lingüísticos XXVI, Anais do Seminário do GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos, Unicamp, p. 709–715.

REUTER, Y. (2002) A análise da narrativa: o texto, a ficção e a narração. Rio de Janeiro: DIFEL

VAL, Maria da Graça Costa e ROCHA, Gladys (org.) (2003). Reflexões sobre práticas escolares de produção de textos – o sujeito-autor. Belo Horizonte: Autêntica/ CEALE/FAE/UFMG.

Vigotskii, L.S., LURIA, A.R., LEONTIEV, A.N. (1988). Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone: Editoras da Universidade de São Paulo.