ASPECTOS FONÉTICOS EM DICIONÁRIOS ESCOLARES

Antonio Luciano Pontes (UECE/UNIFOR)

 

Introdução

Objetivamos nesta comunicação descrever as diversas formas de registro da informação fônica, nos verbetes de dicionários escolares brasileiros.

Os verbetes que compõem o corpus foram extraídos dos dicionários escolares brasileiros, a saber, Ferreira (2001), Mattos (2001), Sacconi (2001), Luft (2004), Rocha (1996, 2005) e Bueno (2001).

Analisamos os dados à luz dos pressupostos teóricos da Metalexicografia Pedagógica, considerando estudos de Mestre Rios (1999), Welker (2004), Iriarte Sanromán (2003).

Inicialmente apresentamos os fundamentos teóricos e os aspectos metodológicos que nortearam nossa pesquisa, para em seguida analisar os dicionários escolares, cuja proposta lexicográfica é orientada pelas características de um dicionário padrão, porém adequados a alunos das últimas séries do primeiro segmento do Ensino Fundamental.

 

Fundamentos teóricos

Entendemos por informação fônica aquela que diz respeito à pronúncia dos elementos léxicos que funcionam como palavra-entrada do verbete lexicográfico. Como coloca Gelpí Arroyo (2003), a informação fônica (para ela, informação fonética) é um elemento relevante ou irrelevante, dependendo do tipo de dicionário. No caso dos dicionários escolares, obviamente, se trata de uma informação necessária.

Cabe, no entanto, uma pergunta: para cada lema de um verbete dever-se-á dar uma informação fônica? Na língua portuguesa, em que seu sistema de escrita tem uma correspondência aproximada entre a representação ortográfica e a pronúncia, bastaria indicar as irregularidades entre letra e som, ou seja, aquelas em que as correspondências entre letra e som são arbitrárias, imprevisíveis e, por isso, fogem ao padrão geral da interpretação fônica dos grafemas. Vai nesta direção Welker (2004) quando argumenta que a pronúncia só precisa ser indicada nos casos em que não existem regras claras. Nestes casos, as indicações são indispensáveis.

Ao contrário, contemplar a pronúncia  para o lema,  em que  os níveis gráfico e fônico  se aproximam,  ou, ainda, no caso em que a  pronúncia é deduzível da grafia,   significa,  sem dúvida,  um  gasto inútil de espaço,  uma sobrecarga desnecessária de informações no interior do verbete. Dito de outra forma, o uso da informação fonética na Lexicografia, segundo Rios Mestre (1999), depende do tipo de relação que existe em cada língua entre a representação ortográfica e a pronúncia. Quando um sistema ortográfico se distancia notadamente do princípio fonêmico, segundo o qual cada grafema representa um único fonema e cada fonema é representado por um único fonema, as informações sobre a pronúncia  são imprescindíveis,   se o elemento  léxico não  está  na competência do falante. Ou seja, se a pronúncia não é previsível ou transparente para o usuário torna-se necessária; é, conseqüentemente, desnecessária nos casos em que o usuário, não precisa fazer uma transformação entre a grafia e a pronúncia de uma palavra.

Para registrar a pronúncia, há pelo menos dois tipos de transcrição: a transcrição fonética e a transcrição figurada.  Aquela se utiliza, para o registro em papel, de símbolos fonéticos, como os do dito alfabeto fonético internacional (AFI), por exemplo. Em relação aos dicionários em formato eletrônico e com recursos multimídia, a transcrição fonética poderá ser melhor do que substituída, acompanhada do registro em áudio da pronúncia das palavras dicionarizadas. Já na transcrição figurada[1], realiza-se uma tradução ortográfica da palavra mediante uma combinação de letras do alfabeto, que se usam “regularmente” no português escrito para representar um som particular. Sobre esse sistema de transcrição, Welker (2004: 113) assinala que:

Quanto à maneira como é dada a informação sobre a pronúncia, é compreensível que, em casos simples, sejam usadas letras e acentos existentes ns própria língua (isto é, na própria língua objeto); por exemplo, pode-se empregar [...] cs para indicar a pronúncia do x em hexágano, ou ê, para o e em um dos homógrafos de sede. Porém, há dicionários que usam letras, ou combinações de letras, cuja pronúncia não é evidente nem esclarecida. Quando o Aurélio, por exemplo, transcreve terrible, no verbete enfant terrible, no verbete como terribl’, não fica claro de que maneira deve ser pronunciado o rr (além de faltar o acento).

Só é possível, então, apresentar informação fônica no dicionário, tendo-se uma compreensão clara sobre o sistema fonético de uma língua e sobre o seu sistema ortográfico.

Qualquer que seja o sistema de notação utilizado, é necessário incluir nas páginas introdutórias do dicionário um guia de pronúncia, com tabelas explicativas dos símbolos e exemplos de palavras nas quais se realizam os sons que estes representam.

 

Fontes de documentação

A informação fônica contida nos dicionários, para Rios Mestre (1999), pode estar baseada em descrições prévias sobre a pronúncia de uma língua ou apoiar-se em pesquisas realizadas em determinados setores da população que sejam considerados como representativos da fala que se quer descrever.  Não sendo assim, o dicionarista, como assinala Welker (2004), deve usar sua competência de falante nativo e a de colaboradores, além de basear-se em obras já existentes, estas últimas práticas, aliás, são as mais utilizadas na Lexicografia tradicional.

Quando se incluem variantes diatópicas, outras fontes documentais são utilizadas, como os atlas lingüísticos regionais e nacionais, e as monografias sobre dialetos e falares, desenvolvidas, sobretudo, no âmbito acadêmico.

 

Modelo de pronúncia

O modelo de pronúncia descrito pode corresponder a uma norma considerada de prestígio, geralmente relacionada à fala de uma determinada classe social ou de uma localização geográfica concreta. Há dicionários que pretendem mostrar um registro de fala mais geral, contemplando também a variação diatópica.

Numa atitude descritivista, os grandes dicionários, segundo Iriate Sanromán (2003), deveriam registrar as principais pronúncias existentes, sem grandes pruridos normativizadores. E continua no mesmo artigo:

Poderão também registrar-se variantes afastadas daquilo que poderíamos considerar português padrão, embora muito usadas e também muito desprezadas ou ignoradas nos manuais de fonética e nas gramáticas.

Os dicionaristas, dentro de uma visão normativa de língua, consideram para o registro em seus dicionários a pronúncia considerada padrão, isto é, aquela usada pelas pessoas letradas e residentes nos grandes centros. No entanto, mais comumente dentro desta orientação, os dicionários repetem a pronúncia das obras anteriores.

 

Modos de representar a informação fônica

A informação fônica pode aparecer em um dicionário em forma de nota[2] associada ao lema; são indicações do tipo: “En esta palabra se aspira h” (RAE, 1992, sv. harca) ou  “...se conjuga dejando  em todo  caso átona  la i, que funciona  como semiconsonante (constituyendo diptongo com la vocal que  ligue” (Seco, 1986, sv. cambiar).

Contudo, o mais comum é recorrer a um sistema de notação por meio do qual se representa a pronúncia da palavra, ou parte dela. Nas obras editadas em CD-ROM, como observa Rios Mestre (1999), a pronúncia da palavra pode estar gravada, podendo-se reproduzir acusticamente. E acrescenta:

Nos dicionários em CD-ROM a pronúncia da palavra pode ser reproduzida acusticamente. Este novo sistema permite conhecer a pronúncia ‘real’, pois a transcrição fonética não deixa de ser uma representação abstrata que se há de interpretar.

Normalmente, como paradigma à parte, a informação fônica se situa após a entrada, registrada entre parênteses. 

 

Exame da informação fônica nos dicionários escolares

Nos dicionários brasileiros se utiliza sempre da pronúncia figurada, cujo objetivo é o de informar acerca de aspectos da pronúncia e pode ser uma transcrição plena de toda a palavra; e, na maioria dos casos, parcial, ou seja, transcrição de parte da palavra em que há uma relação arbitrária entre letra e som. Observe o exemplo, de Mattos (2005):

Gratuito [úi]  am  1. Que não precisa pagar: de graça, grátis - A livraria  entregou ao professor  um exemplar  gratuito da revista. (...)

As particularidades de pronúncia são identificadas entre parênteses ou entre colchetes, apenas em uma parte constituinte do vocábulo. No verbete acima, o autor cobra do leitor a pronúncia ditongada (úi), em uma só emissão de voz, e não hiatizada, como duas vogais diferentes. Cegalla (2005), ao contrário de todos os outros autores estudados, se utiliza de parênteses para marcar a pronúncia das vogais e de barras oblíquas para indicar a pronúncia das consoantes, como em:

cros.ta(ô) sm 1. escama; casca.

cru.ci.fi.co [ks]  sm.1. Imagem de Cristo pregado na cruz

A maioria dos autores analisados apresenta a informação fônica em um paradigma independente, mas Sacconi (2001), algumas vezes, em um tom excessivamente prescritivo, a apresenta em forma de nota, como: “•Cuidado para não dizer ‘gratuito’!”, referindo-se ao lema gratuito.

Quanto à localização da informação fônica, esta se situa, na maioria dos dicionários analisados, imediatamente após a palavra entrada, prática muito usual em dicionários bilíngües. As particularidades selecionadas, em geral, em língua portuguesa, são de vários tipos: marca-se o timbre das vogais, indica-se a tonicidade das sílabas; indica-se, ainda, a relação arbitrária entre letra consonantal / som consonantal. Observemos:

Transar [ zar ] v. Fazer algum acordo ou negócio com alguém – Os dois  estavam transando a troca de carros.>Transa sf., transação.,sf.

No verbete acima, retirado de Mattos (2005), marca-se a relação arbitrária entre letra e som no interior de uma sílaba inteira: sar → (zar).

Em Rocha (2005) registra-se no verbete acordo o fechamento da vogal pela marcação do acento gráfico que a última reforma ortográfica, a de 1971, eliminou. Isso ocorre, sobretudo, nos casos de plurais de alguns nomes, caracterizando-se como alternância fonética.

Acordo (ô) 1.Resolução tomada por duas ou mais pessoas.

Já neste outro exemplo, observado em Ferreira (2001) o lexicógrafo coloca, simultaneamente, um ao lado do outro, dois aspectos de pronúncia, aspectos relativos ao timbre (fechado) e a da relação letra / som (x→z).

e.xa.ge.ro  ( z...ê )  s.m.  Exageração.

Neste exemplo de Ferreira (2001), marca-se, entre parênteses, a intensidade da vogal por meio do acento gráfico do tipo agudo.

Mui (úi) adv F. apocopada de muito, empregada antes de adjetivo ou de advérbios em -mente

Neste exemplo, de Ferreira (2001), é indicada a relação letra/som; registrando entre parênteses a letra, e o som a ele correspondente. Trata-se aqui de um caso de arbitrariariedade ortográfica.

e.xu (x = ch) s.m . Bras. Rel. Orixá ou mensageiro dos orixás, assimilado ao diabo cristão por missionários, e descrito como de gênio inascível, vaidoso, e suscetível, embora possa trabalhar para o bem.

No caso abaixo, retirado de Ferreira (2001), apresentam-se as duas formas de pronúncia (como ditongo ou como hiato), registrando dois pontos (:) para marcar as duas pronúncias possíveis.

con.fec.ci:o.nar  v.t.d

Neste exemplo, a transcrição expressa a força do acento primário contrapondo-se ao acento secundário.

mus.cu.lo.mem.bra.no.so (mús....ô) adj. Anat. Respeitante a músculo e membrana

Por último, temos as duas formas registradas (hiato ou ditongo) e a marca do timbre da vogal tônica (vogal fechada).

tra:i.dor ( a-i...ô) adj. e sm   Que ou quem trai

Como se vê, em todos os exemplos postos acima, colocam-se, neste paradigma, algumas peculiaridades da pronúncia, advinda dos desajustes entre as modalidades escrita e falada ou características prosódicas.

Em todos os casos acima colocados, a transcrição é do tipo parcial, pois a parte da palavra transcrita é sempre aquela que pode causar dúvida ao consulente.

Bueno (2000) distingue-se dos demais lexicógrafos estudados em relação ao registro da pronúncia. Ele transcreve toda a entrada, mesmo que não se trate de palavras emprestadas a línguas estrangeiras, conforme exemplo a seguir:

FORTUITO, adj. Casual; acidental (Pronún.: fortúito.)

A forma assumida aqui por Bueno, transcrevendo figurativamente a palavra toda, certamente que se torna mais fácil a leitura do paradigma por parte do escolar. Porém, esta forma não é comum nos dicionários brasileiros. A transcrição da pronúncia, marcada com a abreviatura pronún., e situada no final do verbete, também não é prática habitual.

Em muitos outros exemplos, o autor alterna a transcrição plena, de toda a palavra, com a transcrição  de uma parte do vocábulo,  o que  fere o principio da uniformidade , como em:

OBSÉQUIO ( ze), s.m.  Favor

Estas alternâncias nem sempre são aconselháveis na prática lexicográfica, porque o consulente não se torna previsível. Se isso é fruto de uma decisão, que o autor explique na introdução de seu dicionário. Procedimentos como estes é que fazem do dicionário um livro verdadeiramente didático.

Outro fenômeno digno de nota ocorre em Ferreira (2005):

 nu.me.ro.so (ô) adj. abundante, copioso [ Pl.:-rosos (ó)s ]

Neste exemplo, coloca-se a transcrição da forma plural encurtada. Este procedimento de registrar a pronúncia parece complexo para ser processado pelo leitor, sobretudo o leitor classificado como aprendiz.

 

Pronúncia dos estrangeirismos

No tocante aos estrangeirismos, a transcrição fonética da palavra-entrada ocorre por inteiro, caracterizando a transcrição total. Para ilustrar este último tipo, observemos a palavra mouse, entrada do verbete apresentado por Ferreira (2001):

Mouse (mause) [Ing] sm. Inform.  Periférico móvel que controla a posição de um cursor na tela, e que conta com um ou mais botões...

Neste exemplo, todos os segmentos são transcritos foneticamente, decisão muito apropriada para as entradas tratadas como empréstimos, mas também se aplicaria igualmente para as palavras vernaculares.

Em contra partida, Rocha (1996), nem sempre segue esta prática.

franchise ( ing) ( chái) s  f

Neste caso, Rocha transcreve apenas a parte que pode causar dúvida no tocante à pronúncia, forma pouco prática para os que se iniciam na aprendizagem da escrita, e inédita, dentro da tradição lexicográfica brasileira. Menos didático, ainda, é não transcrever, de nenhum modo, a palavra estrangeira, em uma enormidade de entradas, o que ocorre em vários dicionários.

 

Considerações finais

Cabe aqui a pergunta: que pronúncia vem sendo considerada pelos lexicógrafos brasileiros, para representar o paradigma informação fônica? A resposta, a nosso ver, é a forma relativa à norma normativa, aquela praticada pela gramática tradicional.

Para dar um cunho mais científico (ou descritivo) ao dicionário escolar, a pronúncia contemplada deverá ser a norma culta brasileira, a norma normal (Coseriu, 1980), mas, por falta de pesquisas realizadas no âmbito da Fonética, impede  ainda que os lexicógrafos  a reconheçam no momento de elaboração de seus dicionários. A norma normal é aquela real, falada por uma comunidade de falantes, considerando classe social, região, idade, escolaridade etc. de seus membros.

As transcrições nem sempre, entre os autores, são marcadas da mesma forma. Ferreira seleciona parênteses, Mattos prefere colchetes, só para citar algumas formas de notação. E, muitas vezes, o mesmo autor usa as duas formas, assistematicamente.

Também se distinguem entre os autores a forma de registrar a pronúncia.  Muitas vezes, registra-se parte da palavra, outras vezes, transcreve-se a palavra toda. Mas também se praticam assistematicamente as duas formas em um mesmo dicionário.

 

Referências bibliográficas

COSERIU, E. Sistema, Norma e Falar Concreto. In: Teoria da Linguagem e Lingüística Geral. Ao Livro Técnico, 1980; p.101-117.

DAMIM, Cristina. Proposição de critérios metalexicográficos para avaliação do dicionário escolar. Dissertação de mestrado em Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.

FARIÑAS, Luis F. Alzola. Glosas Didáticas n.6, 2001.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

GELPÍ ARROYO, Cristina. La Lexicografia. Barcelona, Grupo Santillana de Editores, S.A, 2000.

IRIARTE SANROMÁN, Álvaro. A informação gramatical nos dicionários bilíngües. Diacrítica-Ciência da linguagem, 2003

KURY, Adriano da Gama. Dicionário da língua portuguesa. São Paulo, FTD, 2001.

LUFT, Celso Pedro. Minidicionário. São Paulo: Ática, 2000.

SECO, Manuel. Estudios de Lexicografía española. Madrid: Paraninfo, 1987.

MATTOS, Geraldo. Dicionário júnior da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 1996.

ROCHA, Ruth. Minidicionário enciclopédico escolar. São Paulo: Scipione, 1996 e 2005.

SACCONI, L. A. Dicionário essencial da língua portuguesa. São Paulo: Atual, 2001.

WELKER, Herbert Andréas. Dicionários: Uma introdução à Lexicografia. Brasília: Thesaurus,2004.

ZANATTA, Flávia. Análise de dicionários de uso  do espanhol e do português (monografia de graduação). Porto Alegre: UFRGS, 2006.


 

[1] Na Lexicografia bilíngüe, segundo Rios Mestre (1999), a pronúncia figurada carece do caráter científico e normalizado da AFI. E concorda com Quilis (1982), quando afirma que tal sistema de transcrição é um arremedo espantoso da transcrição fonética.

[2] As ilustrações são de Rios Mestre (1999).