Dialogismo, aspecto constitutivo do discurso
uma releitura de Bakhtin
a partir de autores nacionais

Cleide Emília Faye Pedrosa (UFS e UERJ)

 

Introdução: Bakhtin, leitura da fonte

Este percurso teórico terá como base as propostas bakhtinianas sobre dialogismo, consequentemente também sobre a polifonia. Destacamos, contudo, que o foco será através da releitura efetuada, principalmente, por estudiosos brasileiros.

O ponto de partida está em considerar que entre as categorias centrais na obra de Bakhtin estão as noções de linguagem, interação, dialogismo e ideologia. Ele afirma que

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica e isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua (Bakhtin, 1997a: 123).

Na linguagem, vista como objeto da lingüística, não há quaisquer relações dialógicas; pois essas são impraticáveis entre os elementos do sistema da língua ou entre os elementos do "texto", considerando um ponto de vista estritamente lingüístico. “Elas tampouco podem existir entre as unidades de um nível nem entre as unidades de diversos níveis. Não podem existir, evidentemente, entre as unidades sintáticas” (Bakhtin, 1997b: 182).

Ele apresenta, assim, a noção de dialogismo como princípio fundador da linguagem (para a metalingüística): toda linguagem é dialógica, isto é, todo enunciado é sempre um enunciado de um locutor para seu interlocutor, logo toda linguagem é fruto de um acontecimento social. Um outro sentido que se configura para o dialogismo é que um texto sempre responde a um outro texto, ou que internaliza vozes de um outro discurso (interdiscursividade).

A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. E precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas (Bakhtin, 1997b: 183).

Para Bakhtin, as relações dialógicas constituem um fenômeno “quase” universal que penetra toda a linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana – chamada de o “grande diálogo”. É tão somente sob essa orientação dialógica interna que a palavra do “eu” (“minhas palavras”) se encontra na intimamente em relação com a palavra do outro (orientação dialógica interna, polifonia), sem, no entanto, se fundir com ela, sem absorvê-la nem absorver seu valor, isto é, conserva completamente a sua autonomia enquanto palavra (Bakhtin, 1997b).

Nessa perspectiva bakhtiniana, o discurso é constituído das relações dialógicas, como um palco de luta de vozes. Bakhtin destaca que as relações dialógicas são possíveis tanto entre enunciações integrais, como em parte significante do enunciado, e até mesmo em uma palavra isolada – isto “se ouvimos nela a voz do outro”, isto é, “se nela se chocam dialogicamente duas vozes” (Bakhtin, 1997b: 184). E ainda, as relações dialógicas são possíveis (op. cit.):

a) entre os estilos de linguagem, os dialetos sociais, etc., desde que eles sejam entendidos como certas posições semânticas, como uma espécie de cosmovisão da linguagem, isto é, numa abordagem não mais lingüística.

b) com a sua própria enunciação como um todo, com partes isoladas desse todo e com uma palavra isolada nele, 'se de algum modo nós nos separamos dessas relações, falamos com ressalva interna, mantemos distância face a elas, como que limitamos ou desdobramos a nossa autoridade.

c) (numa abordagem ampla das relações dialógicas), entre outros fenômenos conscien­tizados desde que estes estejam expressos numa matéria sígnica. Por exemplo, as relações dialógicas são possíveis entre imagens de outras artes (essas relações ultrapassam os limites da metalingüística).

A voz do outro, evocada no discurso do ‘eu, instaura o fenômeno polifônico. Essa polifonia só é marcada quando as vozes são plenivalentes (plena de valor dentro do grande discurso). O Outro e o eu constituem sujeitos- “afirmar o ‘eu’ do outro não como objeto, mas como outro sujeito”.

A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes (...) permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combina­ção de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento (Bakhtin, 1997b: 21).

Bakhtin (analisando o romance polifônico de Dostoiévski e o próprio autor) destaca que Dostoiévski tinha o dom de “auscultar” o diálogo de sua época, mais precisamente, tinha o dom de “auscultar a sua época como um grande diálogo, de captar nela não só vozes isoladas, mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a interação dialógica entre elas”. Ele também “auscultava” as vozes dominantes da época, fossem oficiais e não-oficiais, mas também apresentava o dom de escutar as “vozes ainda fracas”, em termos de “idéias latentes ainda não aus­cultadas por ninguém”; e mais, ele ainda sentia as “idéias que apenas começavam a amadurecer, embriões de futuras concepções do mundo”. ‘A realidade toda - escreveu o próprio Dostoiévski – não se esgota no essencial, pois, uma grande parte deste nela se encerra sob a forma de palavra futura ainda latente, não-pronunciada’ (Bakhtin, 1997b: 89).

Acompanhando ainda essa justificativa polifônica, podemos acrescentar que Bakhtin destacava que

No diálogo do seu tempo, Dostoiévski auscultava também os ecos das vozes-idéias do passado, tanto do passado mais próximo (dos anos 30-40) quanto do mais distante. (...)Dostoiévski adivinhava freqüentemente como uma determinada idéia iria desenvol­ver-se e atuar em condições modificadas, que direções inesperadas tomaria seu sucessivo desenvolvimento e sua transformação. Para tanto. colocava a idéia no limite das consciências dialogicamente cruzadas. Ele reunia idéias e concepções de mundo, que na própria realidade eram absolutamente dispersas e surdas umas às outras, e as obrigava a polemizar. É como se acompanhasse essas idéias distan­tes umas das outras, pontilhando-as até o lugar em que elas se cruzam dialogicamente. Assim, ele previu os futuros encontros dialógicos de idéias ainda dispersas. Previu novas combinações de idéias, o surgimen­to de novas vozes-idéias e mudanças na disposição de todas as vozes-­idéias no diálogo universal (Bakhtin, 1997b: 89).

Foi por essa genialidade em perceber a genialidade do Outro (Dostoiévski), que Bakhtin tem se tornando em nosso meio acadêmico uma das figuras mais lida e mais reescrita.

 

Bakhtin: releitura a partir de autores nacionais

Embora a ênfase aqui seja por autores nacionais, não negaremos a “palavra” a alguns (poucos) autores estrangeiros em contextos em que sua voz seja de grande relevância para completar a coerência do que estamos discorrendo.

De Barros, trazemos a apropriação que ela faz do posicionamento de Bakhtin entre aspectos monológicos e dialógicos do discurso, ela acredita que:

O monologismo rege a cultura ideológica dos tempos modernos e a ele opõe o dialogismo, característica essencial da linguagem e principio constitutivo, muitas vezes mascarado, de todo discurso. O dialogismo é a condição do sentido do discurso (Barros, 1999: 02).

Souza (1999) chama atenção para o fato de que a concepção de relações dialógicas substitui tudo o que era chamado de aspecto extra-verbal, extralingüístico, subtendido do enunciado, em resumo, o que conhecíamos como conceito de situação. Os estudos das relações dialógicas não seria objeto do campo da Lingüística, mas da Metalingüística, cujas tarefas são listadas (em Souza, 1999: 75), com base em Bakhtin, em:

a) estudo dos aspectos e das formas da relação dialógica que se estabelece entre os enunciados e entre suas formas tipológicas (os fatores do enunciado): a forma dos enunciados;

b) estudo dos aspectos extralingüísticos e não significantes (artísticos, científicos e outros) do enunciado: a função social do enunciado;

c) estudo da palavra de outrem: ‘a orientação da palavra entre palavras, a sensação distinta da palavra do outro e os diversos meios de reagir diante dela.

Segundo Bakhtin (apud Souza, 1999: 75), as relações dialógicas são extralingüísticas “ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua enquanto fenômeno integral concreto. A linguagem vive apenas na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem”. Assim, considerar a linguagem (enunciados construídos), em sua constituição dialógica (alternância de sujeitos), é vê-la como acontecimento social, resultante de alguma atividade de comunicação social (trabalho) realizada na forma de certa comunicação verbal.

Embora, a maioria dos autores faça um recorte e priorize a relação dialógica de forma bidimensional (entre os interlocutores, e entre os textos); em Souza, encontramos o destaque das relações dialógicas, defendidas por Bakhtin, em seu aspecto tridimensional (Souza, 1999: 80-82, 88):

a) o micro-diálogo: o diálogo interior, inserido dentro de uma pequena temporalidade. Dimensão psicológica e subjetiva do enunciado (discurso de um orador, curso de um professor, reflexões em voz alta). “discurso monológico”;

b) o diálogo no sentido estrito: o diálogo realizado em uma determinada situação, inserido em um tempo imediato, em que existe alternância de sujeitos;

c) o diálogo no sentido largo/o grande diálogo/ “diálogo inconcluso”: o diálogo que ocorre no fluxo das palavras, inserido na grande temporalidade. Corresponde ao enunciado do Outro no enunciado do ‘ eu’.

Para o Círculo, todos os discursos seriam dialógicos ao se considerar sua estrutura semântica e estilística. Só na forma exterior é que poderia se instaurar a oposição entre discurso dialógico e monológico; dessa forma, mesmo o discurso interior seria dialógico, pois na consciência humana há o elemento sociológico, assim, o discurso interior “reflete e refrata a sociedade” em que o individuo está inserido. Assim sendo o discurso interior pressupõe um ouvinte virtual com o qual ele dialoga.

Souza, ainda destaca, em sua releitura de Bakhtin (apud Souza, 1999: 83), que “o enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social”. Um enunciado é sempre resposta a outros enunciados anteriores, ou poderíamos dizer também que no enunciado encontram-se ecos (vozes) e lembranças de outros enunciados.

O estudo do estatuto das vozes (dialogismo, polifonia) comprova o poder que se exerce por meio da linguagem. O texto corresponde, assim, a uma arena de vozes em que predomina a voz que exerce poder social através de uma prática discursiva. Segundo Maingueneau (2000), em um discurso, as vozes são marcadas por seus lugares sociais. As vozes se expressam de posições sociais diferentes, representando diferentes graus de autoridade, de poder, de conhecimentos e interesses (Kress, 1998). Dessa forma se entende o dialogismo interacional em que o “sujeito perde o papel de centro e é substituído por diferentes (ainda que duas) vozes sociais, que fazem dele um sujeito histórico e ideológico” (Barros, 1999: 3).

Reforçando esse aspecto de poder social através da prática discursiva, podemos ainda acompanhar a visão de Bakhtin através de uma releitura de Mey (2001: 185):

O ‘discurso de dupla voz’ a que Bakhtin se refere em sua discussão sobre fenômenos como ironia e paródia não é somente uma questão de oposição entre vozes dentro do texto: estamos lidando com uma batalha pelo poder societal, simbolizada em perguntas como: ‘Quem pode dizer o quê, para quem?’, ou ‘Quem pode falar e por quê?’.

Entre as categorias relevantes, desenvolvidas pelo Círculo de Bakhtin, está a questão do discurso citado (enunciado de outrem), como categoria explicita de marca polifônica do texto. Assim, nenhuma palavra é nossa, ela traz a perspectiva de outra voz. O texto, concebido por Bakhtin, marca o ponto de intersecção de vários diálogos, de cruzamento de vozes que se originaram em práticas de linguagem diversificada socialmente, essas vozes, por sua vez, polemizam-se ou se completam ou respondem umas ás outras (Barros, 1999). Assim,

É necessário observar no conjunto do enunciado, do discurso, de que forma a confluência das vozes significa muito mais uma interpretação do discurso alheio, ou a manipulação na direção da argumentação autoritária, ou mesmo a apropriação e subversão desse discurso (Brait, 1999: 25).

Desse modo, podemos considerar monofonia e polifonia como resultados de efeitos de sentidos (Barros, 1999) que decorrem de procedimentos discursivos, ou seja, se um texto “entrever muitas vozes”, diríamos que ele é polifônico; por outro lado, se ele esconder essas vozes, então apresenta o estatuto de um texto monofônico. Nas palavras de Brait (1999: 14, 15):

Tanto as palavras quanto às idéias que vêm de outrem, como condição discursiva, tecem o discurso individual de forma que as vozes – elaboradas, citadas, assimiladas ou simplesmente mascaradas – interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritárias de um discurso monologizado.

Rodrigues (2005: 174), em análise de um texto jornalístico, apresenta o dialogismo através de dois movimentos: movimento dialógico de assimilação e movimento dialógico de distanciamento. No primeiro, ocorre a incorporação de outras vozes, consideradas pelo articulista como relevante para a construção de seu ponto de vista. “O enunciado já-dito dialogiza o artigo e dá credibilidade à fala do articulista, pois traz consigo outras opiniões, verdades, fatos, dados com os quais o autor mantém relações dialógicas que vão dar corporeidade e sustentação a sua opinião” (Rodrigues, 2005: 174, 175), “abrindo espaço em seu enunciado para essa voz ‘falar’” (idem). Fato importante a considerar nesse movimento de assimilação é de que lugar social vêm essas outras vozes (senso comum, política, ciência, religião, jornalismo etc.). No movimento dialógico de distanciamento, há o apagamento, ou mesmo o apagamento das vozes a que o autor se opõe, negando a credibilidade da voz do outro. Geralmente, nesse tipo de movimento, a identificação do ‘outro’ pode ser indireta ou implícita através de uso de modalizadores.

Diferentes estratégias de enquadramento e de citação do discurso do outro marcam os movimentos dialógicos de assimilação e de distanciamento. “O enquadramento do discurso do outro cria a perspectiva, o fundo dialógico é dado ao discurso introduzido, dá-lhe um acento de valor” (Rodrigues, 2005: 175), pois, segundo a concepção bakhtiniana, mesmo que haja “precisão” em reportar a palavra do outro, esta estratégia discursiva sempre está sujeita a transformações de significado.

 

conclusão: abertura para novas releituras

Parece que muito foi dito e muito há por dizer, tomando por base as concepções de linguagem e de discurso de Bakhtin. Suas obras têm proliferado em outras tantas obras. Seu discurso tem servido de base para outros discursos, pois como ele mesmo defende - um texto está sempre respondendo ou antecipando outros textos-, ou ainda, com outras suas palavras com idéias similares:

Qualquer enunciação, por mais significativa e completa que seja, constitui apenas uma fração de uma corrente de comunicação verbal ininterrupta (Bakhtin, 1997a: 123, destaque do autor).

 

Referências BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997a (VOLOCHINOV, V. N).

––––––. Problemas da poética de Dostoievski. 2ª ed. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1997b.

BARROS, Diana Luz Barros. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999, p. 1 - 9.

BRAIT, Beth. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, Diana Luz Pessoa; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 1999, p. 11 - 27.

KRESS, Gunther. Considerações de caráter cultural na descrição lingüística: para uma teoria social da linguagem. In: PEDRO, Emília Ribeiro (org.). Análise crítica do discurso. Lisboa: Caminho, 1998, p. 47-76.

MAINGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

MEY, Jacob L. As vozes da sociedade. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

RODRIGUES, Rosângela Hammes. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem. In: MEURER, J.L. et all. Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005, p. 152-183.

SOUZA, Geraldo Tadeu. Introdução à teoria do enunciado concreto do círculo Bakhtin/Volochinov/Medvedev. São Paulo: Humanitas, 1999.