Documentos históricos brasileiros
edição semidiplomática
e estudo da argumentação

Gilberto Nazareno Telles Sobral (UNEB / FIB)

 

Este trabalho está vinculado ao projeto de pesquisa sobre a argumentação que está em fase de desenvolvimento e objetiva apresentar uma reflexão sobre as estratégias argumentativas utilizadas pelos camaristas da Cidade do Salvador, durante o período colonial, para o estabelecimento da relação com a coroa portuguesa.  Para tanto, são utilizados pressupostos teóricos da Nova Retórica, de Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, e da Semântica Argumentativa de Oswald Ducrot.

Inicialmente, propõe-se, por tratar-se de um documento manuscrito do século XVIII, um trabalho de edição de texto, com todo o rigor da Crítica Textual. Tarefa fundamental da ciência filológica, a edição de documentos manuscritos tem por objetivos o resgate e a preservação da memória cultural e a conservação do acervo documental de um povo, através da reconstituição de um texto, visando aproximá-lo, o máximo possível, do original. O valor de uma edição está, em outros aspectos, no fato de permitir uma leitura facilitada ao leitor especializado e/ou comum de um texto próximo a última vontade do seu autor.

Segundo Foucault (2002: 7),

O documento, pois, não é mais, para a história, essa matéria inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido documental, unidades, conjuntos, séries, relações.

Assim, após editado o texto, estudar-se-á os processos argumentativos nele presentes.

Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca ([1958], 1996) estão entre os pioneiros[1] na reabilitação da Retórica. Se a Retórica antiga tinha como objeto a arte de falar em público de modo persuasivo, ou seja, referia-se ao uso da linguagem oral, do discurso, esta Nova Retórica não privilegia a unicidade da linguagem, aceitando o seu pluralismo, tanto nos valores morais como nas opiniões.

Segundo os autores (1996: 4), argumentar é “provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se lhe apresentam ao assentimento”, sendo necessário que haja um acordo prévio entre orador e auditório.  O estabelecimento do acordo entre o Senado da Câmara e o rei de Portugal ocorre quando ambos se colocam à disposição do bem-estar do povo brasileiro e, neste caso, em particular, da população de salvador.

Este acordo entre o orador e o auditório está relacionado ao que mutuamente se concebe e admite entre ambos, exprimindo-se, assim, nas premissas da argumentação. Vale ressaltar que a finalidade da argumentação não é provar a verdade da conclusão a partir da verdade das premissas, mas a sua adesão.

Sendo a argumentação um esforço à adesão dos espíritos, Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958]1996: 22) destacam a importância do auditório, definindo-o como “o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação”. Assim, qualquer argumentação implica algumas condições: ela está inserida num determinado contexto e dirige-se a um determinado auditório, sobre o qual o orador objetiva exercer uma ação, seja pela persuasão seja pela convicção.

Numa outra perspectiva, Ducrot (1987), com a Semântica Argumentativa, esboça outra forma da teoria da argumentação pela necessidade de um conceito mais largo, que não se refira aos enunciados na sua totalidade, mas aos elementos semânticos constituintes de seu sentido. Esta noção de elemento semântico implica uma análise de sentido e uma série de representações independentes; ela se traduz, segundo o autor citado, na sua teoria da polifonia como “ponto de vista de um enunciador colocado em cena pelo enunciado.”

 No seu “Esboço de uma teoria Polifônica da Enunciação”, irá discutir a origem da enunciação e os sujeitos nela presentes. Contra a tese de unicidade do sujeito, a teoria de Ducrot parte do pressuposto de que o sentido do enunciado é uma descrição de sua enunciação e para essa descrição o enunciado fornece indicações, principalmente sobre o(s) autor(es) eventual(is) da enunciação. Deste modo, sua tese comporta duas idéias: a atribuição à enunciação de um ou vários sujeitos que seriam sua origem e a necessidade de se distinguir entre sujeitos que seriam dois tipos de personagens, os locutores e os enunciadores.

Conforme o autor (1987: 182),

O locutor é “um ser que é, no próprio sentido do enunciado, apresentado como seu responsável, ou seja, como alguém a quem se deve imputar a responsabilidade desse enunciado”, enquanto que por enunciadores compreendem-se “seres que são considerados como se expressando através da enunciação sem que para tanto se lhes atribuam palavras precisas”. Se eles “falam” é somente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não no sentido material do termo, suas palavras.

Conhecer, portanto, as vozes que constituem um dizer e sua importância em contextos específicos é um importante caminho para compreender o funcionamento da organização social, da qual emergem os discursos.

O corpus em análise é uma carta enviada pelo Senado da Câmara ao Rei de Portugal, em dezembro de 1753, na qual os camaristas solicitavam a conservação da prática de fatura e venda do sabão.

O AQUI da enunciação é o lugar social de onde o EU fala. Os membros da Câmara, os “homens-bons”, falam com a autoridade conferida àquele Órgão, que, nos municípios, tinha o poder deliberativo. Cada um de seus membros era um representante das “vontades” e “necessidades” dos habitantes.

O AGORA (momento da enunciação) está inserido no reinado de D. José I, compreendido entre os anos de 1750 e 1777. É caracterizado por um período marcado por uma série de dificuldades, cujas reformas administrativas, idealizadas pelo Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Sebastião de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, visavam, prioritariamente, reerguer economicamente Portugal e impor o absolutismo monárquico. Os efeitos dessas mudanças foram sentidos não apenas em Portugal mas também no Brasil.

A Cidade do Salvador convivia com uma grande desorganização administrativa. Boa parte de suas rendas era gasta com obras que, além de dispendiosas, não beneficiavam um grande número da população.

Além dos conflitos políticos em função da disputa do poder local e aqueles de ordem econômica, visto que as rendas da Câmara, aplicadas nas festividades, nas obras públicas, no pagamento de ordenados e aposentadorias, eram também destinadas, muitas vezes, a obras altamente dispendiosas e/ou desnecessárias, tinha ainda a Câmara a obrigação de pagar à Coroa as “terças” ou “terças partes”, que eram um terço de todo o rendimento do ofício arbitrado pelo Governador e pelo Ouvidor da Capitania, recolhidas no cofre da Câmara e remetidas ao Conselho Ultramarino, em Lisboa.

Assim, o referido período pode ser delineado pela briga de poder na administração municipal, pelos abusos de poder das autoridades, tanto dos membros eleitos da Câmara como daqueles nomeados pelo rei, mas também pela desatenção de ambos os segmentos em relação aos problemas enfrentados pela população.

Neste contexto, o orador/locutor (L), aquele que assume o papel do “eu” na cena enunciativa, não é representado por apenas uma pessoa, mas por todos os representantes do Senado da Câmara, que, por serem autoridades do município, assumem um lugar especial, o de porta-voz do povo soteropolitano.

O auditório/alocutário (AL), o “tu” da cena enunciativa, é o Rei de Portugal, D. José I, a quem o locutor atribui o conhecimento e importância das necessidades explicitadas na carta. Nesta cena enunciativa, identificam-se também os receptores não-alocutários: aqueles previstos por L, como, por exemplo, o Marquês de Pombal, que era não apenas o homem de confiança do Rei, mas o grande responsável pelas medidas administrativas do reinado de D. José I, e demais conselheiros reais, e os não-previstos por L, qualquer funcionário da Corte Portuguesa, que poderia ter acesso às cartas enviadas àquele país.

A cena enunciativa divide-se em três momentos delimitados, inclusive, em sua materialidade, por parágrafos, da seguinte forma: constatação e denúncia do fato, apresentação da posição adotada diante da situação denunciada e, finalmente, a busca da adesão do auditório/alocutário, Sua Majestade, à posição adotada pelos membros da Câmara.

Logo no início da cena enunciativa, a forma pronominal nos cria um efeito de subjetividade, em que o orador/locutor é, também, o enunciador E1, ou seja, é a partir da perspectiva dos membros da Câmara que o discurso vai ser desenvolvido.  Também importante, neste momento, é a relação de temporalidade estabelecida com as formais verbais constar, que traz para o momento da enunciação uma situação marcada no discurso com a forma verbal padeciaõ. Observa-se que padecer é uma forma verbal empregada para representar sofrimento profundo. Como, no referido período, verificava-se um grande descontentamento da população em virtude das condições sociais, ao trazer para a enunciação a referida forma verbal, o orador/locutor poderia conduzir o auditório/alocutário ao subentendido de possibilidade de conflitos entre comerciantes e autoridades, que poderiam ser evitados caso houvesse a adesão de Sua Majestade à tese defendida.

Senhor Por nos constar, q(ue) os morado[re]s desta cid(ad)e, e seu re[con]ca[vo] padeci[aõ] amayor consternaçaõ nas indiscretas diligencias, e desordenados varejos, [q(ue)] desp[ach]am [...] [e]xecutav[a] Joaquim Alberto Duarte, Pr[ocu]rador do [Conde] de [Ca]stello Melhor,  (sem preced[er] mandado, ou auth[o]r[ida]de da justiça, como sere[co]menda nas mesmas Doaçoens emque funda a sua jurisdiçaõ  ) afim de [...] [re]duzir [custo] do sabaõ do Reyno com exclusiva total, doq(ue) [s]e fabrica na Terra, foi noti[f]icado, p(ar)a apr[es]entar nesta Camara as Doaçoens do d(it)o Conde de Castello Melhor, pois [so] assim sepoderia [exa]minar apermiss[aõ] ou [fa]culdade de estancar o sabaõ do Reyno, por ter Vossa Mag(esta)de  [de]terminado em a Provisaõ[de] vint[te] etres de [Mayo] deste presente an[no] copiada a[f(olha)]1 que seja o conde deCaste[ll]o Me[lh]or conservado nas suas Doaçoens, eestilo deas [pr]aticar, sem alteraçaõ alguã, nem o d(it)o Procurador podia eximirse da necessidade de as registrar nos Livros da Camara.

Na seqüência, o orador/locutor conduz a argumentação não apenas relatando como a situação desenvolvia-se, mas marcando-se no texto com a inserção de juízos de valor: d[epoi]s [de] alguã [r]epugnancia, para denunciar a atitude do denunciado,  e comas expressoẽs mais efficazes aobservancia das ordens de Vossa Magestade q(ue) como vassalo estava obrigado a guardar, [e]nquanto vossa Magestade, em que o orador/locutor cria de si a imagem do fiel seguidor das determinações do Rei, outro recurso bastante eficaz à persuasão do auditório/alocutário. Com o emprego do performativo declarou, a argumentação apresenta-se na perspectiva do próprio auditório/alocutário, surgindo, então, outro enunciador, o E2, que vai referendar a tese defendida pelos camaristas, visto que o próprio auditório/alocutário se presentifica como argumento de autoridade.

Obedecen[do] com effeito anotificaçaõ, (d[epoi]s [de] alguã [r]epugnancia, ) veyo pessoalmente a[pr]esenta[r] em auto de[ve]reaçaõ [nas] [do]açoẽs c[op]iadas numero 2º, as quaes [s]end[o] vistas e examinadas com toda a circums[pe]cçaõ, achamos, q(ue) por ella senaõ permitte ao condede Castello Melhor genero algum de Estanque neste Estado, nem outro privilegio mais que afaculdade devender Livrem(en)te o sabaõ do Reyno, sem se estorvar aos Moradores o  uso do que se faz no Paiz    Como ja declarou Vossa Mag(esta)de  na [Pro]visaõ numero [2º] de tres  deAgosto, demil sette centos cincoenta e [dous] aqual por se naõ ac[h]ar  de[ne]gada pela ultima Provisaõ detres de Mayo do [pre]sente anno de mil sette centos cicoenta etres, (q(ue) só çēde em mera confirmaçaõ das [suas] Doaçoens  ) deve in[te]iramente subsistir, esendolhe estranhado e excesso q(ue) praticava nos varejos, contravindo as mesmas Doaçoens q(ue) arrogava a seu favor, lheadvertimos comas expressoẽs mais efficazes aobservancia das ordens de Vossa Magestade

O orador/locutor também se utiliza da argumentação pelo modelo, ao valorizar a postura dos Ministros da Justiça e da Fazenda, para refutar a atitude do Conde de Castelo Melhor, que é apresentado como antimodelo. Esta oposição é marcada no discurso pelo confronto entre temerario procedimento, atribuído a este, e benignidade, característica daqueles.

Moradores desta Cidade, os quaes por estarem costumados [abe]nignidade, [c]om que seportam os Ministros daJustiça eFazenda devossa Magestade nas diligencias [q(ue)] fazem por obrigaçaõ dos [se]us officios, com justificada razaõ [s]e escandalizavaõ do seu  tem[e]ra[r]io procedimento, publicando com inçessantes clamores o detrimento, e prejuizo q(ue) experimentavaõ, em benefiçio da fazenda de hum Donatário

Dando prosseguimento à argumentação, o orador/locutor fala a partir da perspectiva de outro enunciador, o E3, o Conde de Castelo Melhor, que passa de opositor, de denunciado, a cúmplice. Em econvenci[do] [de] verdade prometteo ceder  do projecto er[ra]da[m]ente intentado, [r]es[ig]nando[s] todo aoq(ue) d[ete]rminace a Vereaçaõ, o E3 surge no discurso para confirmar a tese defendida pelo E1, logo, se o acusado passa a compartilhar a  mesma opinião do acusador, a adesão do auditório/alocutário parecia estar bem próxima. Neste sentido, a argumentação é reforçada logo em seguida com naõ podemos expôr aVossa Mag(esta)de por [m]eyo ma[is] efficaz as videncias por elle praticadas, constituindo-se o escandalo univer[s]al detoda esta Cidade. Estas evidências são a admissão da verdade, o documento assinado, cuja ressalva feita pelos camaristas em ainda q(ue) [du]vidou  ao depois o assignar o termo são elementos que ajudam a criação da imagem do antimodelo.

Por fim, o orador/locutor conclui o seu discurso não mais do lugar social anteriormente ocupado, o de autoridade do município, porém assumindo outro lugar social, o do humilde vassalo, transferindo, assim, para o auditório/alocutário a responsabilidade do que havia sido exposto, não deixando outra alternativa senão a adesão à tese principal. Desta forma, evidencia-se, também, um discurso baseado no argumento pragmático, que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca ([1958]1996: 304), a partir do momento em que uma ligação fato-conseqüência é constatada, a argumentação se torna válida, seja qual for a legitimidade da própria ligação.

Finalm(en)te senhor, concluimos expondo humildemente a Vossa Mag(esta)de o consideravel prejuizo q(ue) experimenta[va] este Povo no estanque do sabaõ do Reyno, comexclusiva doq(ue) se q[ui]z nesta Terra

No discurso dos camaristas da Cidade do Salvador, materializa-se a ideologia da elite daquela época na Cidade do Salvador, a qual utilizava o bem-comum para legitimação de interesses próprios, uma vez que aquilo que seria objeto para o estabelecimento do acordo entre orador e auditório não era compatível com a situação vivida por grande parte da população. A partir da análise das referidas cenas enunciativas, confirma-se que os discursos são uma representação das práticas sociais num determinado contexto sócio-cultural.

 

REFERÊNCIAS

DUCROT, Osvald. O dizer e o dito. Rev. Téc. da Trad. Eduardo Guimarães. Campinas: Pontes, 1987.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de argumentação: a nova retórica. Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: M. Fontes, 1996.

SALVADOR, Câmara Municipal. Cartas do Senado a Sua Magestade Salvador: Câmara Municipal/ Fundação Gregório de Matos, 1994/1996. Documentos Históricos do Arquivo Municipal, v. 9/10.

SOBRAL, Gilberto Nazareno Telles. A relação colônia-metrópole no século XVIII: edição semidiplomática das cartas do senado e estudo da argumentação (tese de doutorado). Salvador, 2004.


 

[1] Entre os pioneiros está Stephen Toulmin, que publicou, em 1958, o livro The uses of Argument pela Cambridge University, que não é utilizado neste trabalho.