Os estudos sintáticos de Mattoso Câmara Jr.

Humberto Peixoto Menezes (UFRJ)

 

Introdução

As descrições lingüísticas mais conhecidas de Mattoso Câmara versam sobre fonologia e morfologia (v. Câmara Jr., 1953 e 1970). Neste trabalho, procuraremos mostrar que sua capacidade analítica e seu grande conhecimento teórico também alcançam o âmbito da sintaxe. Para tanto, faremos alguns comentários sobre três de seus textos: A teoria sintagmática de Mikus (v. Câmara Jr., 1972), A frase portuguesa (v. Câmara Jr., 1975) e Nomenclatura gramatical (cf. Câmara Jr., 1972).

Começaremos apreciando, à luz dos conceitos da gramática gerativa (v. Chomsky, 1995), especialmente o de sintagma como unidade construída em torno de um núcleo, a Crônica de Mattoso sobre a obra teórica de Francis Mikus, um lingüista iugoslavo que elegeu o sintagma como a unidade lingüística fundamental para a apreensão do mundo extralingüístico.

Na segunda parte do trabalho, apresentaremos, ainda com base nos conceitos e pressupostos da gramática gerativa, uma breve análise das duas outras obras de Mattoso acima citadas

 

Mattoso e a teoria sintagmática de Mikus

Logo no início da Crônica, Mattoso descreve as intenções de Mikus, mostrando a influência que este sofreu das idéias de Saussure acerca do sintagma, as quais são assim resumidas:

Assim, a  teoria de Saussure, neste particular, pode resumir-se no seguinte postulado: diante da globalidade multidimensional do mundo extralingüístico, a linguagem apresenta uma expressão unidimensional, linear, cuja fórmula é o sintagma. (p. 16)

Em conformidade com o postulado de Saussure, Mikus formulou sua teoria sintagmática. Na próxima seção, será feita uma apreciação das principais idéias deste autor, com base na crônica de Mattoso.


 

Idéias centrais da teoria de Mikus

Sua atitude filosófica diante da linguagem

Mikus discute a relação entre realidade física e realidade lingüística, acentuando que a linguagem apreende o mundo multidimensional através do sintagma, o qual é uma unidade unidimensional, linear. Para Mattoso, no entanto, o fato de Mikus considerar apenas a cadeia da fala, isto é, as relações sintagmáticas, como única realidade lingüística, faz com que sejam obliteradas as relações paradigmáticas, pois estas não se organizam por contigüidade, como aquelas, mas sim por associações mentais: quando um elemento do paradigma está presente na cadeia da fala, os outros membros da classe não ocorrem na mesma posição, estando, portanto, presentes apenas na mente dos falantes, ou seja, no seu léxico mental.[1] Parece-me que Mattoso considera esta posição de Mikus uma falha  na sua teoria, como se pode constatar no comentário abaixo:

Oblitera-se desta sorte “a oposição entre o sistema e a cadeia da fala ou, em termos mais científicos, entre a paradigmática e a sintagmática”, que Martinet também lamenta não encontrar na lingüística norte-americana. “Nada talvez mais contribua para tornar penoso e infecundo o debate entre bloomfieldianos e lingüistas de formação européia – insiste Martinet a propósito – “do que o hábito dos primeiros de tudo interpretar pela referência à cadeia da fala e a repugnância que sentem em encarar as relações paradigmáticas como dotadas de certa realidade”. (p. 19)

Para Mattoso, portanto, Mikus, ao considerar a cadeia da fala a única realidade lingüística, está mais próximo do mecanicismo de Bloomfield e seguidores do que da escola européia, representada por Saussure, Martinet e outros.

 

Sua proposta para a evolução da linguagem

Mikus abre espaço na sua teoria para comentários sobre a evolução da linguagem. Como o tema atualmente está sendo estudado por muitos lingüistas, inclusive Chomsky (v. Hauser, Chomsky e Fitch (2002)), convém observarmos os comentários de Mattoso a este respeito:

Fazendo intervir mais uma vez as considerações glotogônicas, ele procura depreender  como de uma proto-expressão global decorreu uma expressão binária, em que os dados extralingüísticos passam  a se dispor lingüisticamente numa formulação linear. A evolução dos monorremas primitivos para dirrema assinala o advento do sintagma discursivo, que é o esquema da frase atual: “Todos esses enunciados autônomos sendo interiormente perfeitamente equilibrados, exprimiam, tomados um a um, por si mesmos os acontecimentos físicos (expressos hoje pela união do sujeito e do predicado) em toda sua globalidade, com todas as dimensões e dados perceptíveis” (II-436), ou seja – espaço, tempo, qualidade, etc, amalgamados numa única manifestação fônica. O dirrema terá sido o resultado de uma especialização de funções num conjunto de dois monorremas meramente justapostos, por meio da qual um passa a concentrar, como substantivo e sujeito, a noção de “espaço” e o outro, como verbo e predicado, a noção de “tempo” (que suponho entendido por Mikus em seu sentido lato, tanto de duração, ou aspecto, quanto de ocasião, ou tempo gramatical). (p. 21)

Esta proposta de Mikus para explicar a evolução da linguagem, embora engenhosa, já não faz nenhum sentido nos dias atuais, pois, como argumentam Piatelli-Palmerini e Uriagereka (2005), a linguagem se originou de uma reorganização abrupta do cérebro humano, não havendo, portanto, nenhuma distinção entre estágio primitivo, com monorremas, e estágio final, com dirremas. Acreditamos que Mattoso não fazia objeção à teoria de Mikus, porque na época em que escreveu a crônica era comum considerar-se que a linguagem originou-se de um patamar primitivo, com signos globais, atingindo, posteriormente, um estágio como o atual. Além disto, só mais recentemente os lingüistas se associaram aos biólogos para fazer um estudo interdisciplinar da evolução da linguagem (cf. Hauser, Chomsky e Fitch, 2002).

 

A estrutura sintagmática como a base da linguagem humana

Para Mikus, as relações sintagmáticas são as únicas relevantes para a composição da linguagem humana. O sintagma é uma unidade binária, composta por um determinante e um determinados, sendo este o elemento identificador do sintagma e aquele, o elemento diferenciador. Nas palavras de Mattoso:

Ora (e aqui entra uma nova noção fundamental de Mikus), o resultado desse jogo opositivo, na sucessão linear dos dois termos, em que um (o determinado) estabelece uma identidade com o mundo objetivo e o outro (o determinante) cria nessa identidade uma diferenciação por meio de uma determinação específica, é para Mikus nada mais, nada menos do que a oposição dialética de Hegel: ao determinado, ou identificador, como “tese”, se opõe a “antítese”, que é o determinante, ou diferenciador, mas a sua oposição, ou  polaridade, é superada pela “síntese”, em que  tese e antítese são ao mesmo tempo abolidas e conservadas (I-35). A síntese realiza-se pelo sintagma, que, em face dos seus dois termos constituintes, é “sempre qualquer coisa de novo, uma unidade superior, que não pode ser reduzida nem à simples soma de seus constituintes, nem dividida “sem resto” por eles (II-442). (p. 23

Temos desta sorte um enquadramento cabal do sintagma na oposição dialética por meio da qual a linearidade lingüística chega, por via indireta, à globalidade extralingüística: contra todos (síntese da tese contra, termo determinado, com a antítese todos, termo determinante).......Na frase, ou “expressão lingüística de um acontecimento físico”, essa dicotomia resulta na oposição de um sujeito, termo determinado, como tese, e um predicado, termo determinante, como antítese, resolvendo-se na síntese da expressão frasal. (p. 23)

Por este comentário de Mattoso, percebe-se a constante preocupação de Mikus com uma fundamentação filosófica para sua teoria sintagmática. Na próxima seção, trataremos da teoria sintática sob um prisma estritamente lingüístico, com a intenção de mostrar, mais uma vez, a grande acuidade analítica de Mattoso.

 

Encaixamento, linearidade e hierarquia

Mattoso exemplifica a teoria sintagmática de Mikus, analisando a seguinte frase do português:

(1)    Amanhã, nossa escola festejará seu centenário.

Eis sua análise (T = determinado; T’= determinante):

1º sintagma: amanhã (T): nossa escola festejará seu centenário (T’)

2º sintagma: nossa escola (T): festejará seu centenário (T’)

3º sintagma: festejará (T): seu centenário (T’)

4º sintagma: nossa (T’): escola (T); seu (T’): centenário (T)

A frase, como esta acima, em que um sujeito determinado se conjuga com um predicado determinante, é o que Mikus denomina “o sintagma predicativo”. Ele se situa entre o sintagma inferior, ou “micro-sintagma” (festejará seu centenário; nossa escola; seu centenário e o sintagma superior, ou macro-sintagma, em que sintagmas predicativos por sua vez se encaixam como termos determinantes de outro sintagma. (p. 26)

A idéia, destacada por Mattoso, de que há encaixamentos sintagmáticos é muito esclarecedora de outro aspecto da sintaxe, o da hierarquia, o qual, somado à linearidade, leva à formulação da estrutura sintática total. A interação entre estes dois aspectos tem sido tema constante da lingüística gerativa contemporânea e merece um pouco de atenção de nossa parte.

Cremos que, até agora, o texto de Mattoso sobre Mikus tem revelado sua grande acuidade analítica para os aspectos sintáticos da linguagem. Entretanto, a observação sobre os encaixamentos sintagmáticos é de grande relevância, por estar diretamente ligada a temas sintáticos contemporâneos, conforme já frisamos. Para entendermos a importância de tal observação, vejamos o que nos diz a esse respeito Fukui (2001):

O fato de que sentenças e sintagmas nas línguas humanas têm estrutura hierárquica abstrata, não apenas seqüências de palavras e formativos, é uma das descobertas fundamentais da lingüística moderna. Assim, toda teoria da linguagem humana tem de ter um componente/dispositivo que trate da sua “estrutura sintagmática”, a despeito das análises que ela ofereça para outras propriedades da linguagem (como transformações, p. ex.). Neste sentido, a teoria da estrutura sintagmática é um tipo de suporte fundamental para a teoria lingüística contemporânea.

Para Fukui, as árvores geradas pelas regras de estrutura sintagmática (que concebem o sintagma como uma unidade construída em torno de um núcleo) têm as seguintes propriedades:

a) Agrupamento hierárquico dos sintagmas da estrutura (Dominância);

b) O “tipo” de cada sintagma (Rótulo --, p. ex.: SN, SV, SP, etc);

c) A ordem da esquerda para a direita (ordem linear) dos sintagmas.

A propriedade (a), antevista por Mattoso ao comentar os encaixamentos sintagmáticos, foi estabelecida desde o advento da Teoria X-Barra (v. Chomsky, 1970), a qual definiu apropriadamente a estrutura interna do sintagma como contendo sempre um núcleo do mesmo tipo. Assim, o rótulo de cada sintagma depende da classe gramatical da palavra nuclear ( nome, núcleo do sintagma nominal; adjetivo, do sintagma adjetival; verbo, do sintagma verbal, etc.). O agrupamento dos sintagmas se dá da esquerda para a direita e de baixo para cima, como está especificado em (a) e (c) acima. Seguindo-se estes passos, tem-se, o que se pode chamar de “derivação de uma sentença”, processo sintático que é representado por meio de diagramas chamados “árvores”. Sendo assim, a sentença (1), aqui repetida, pode ser representada pela árvore (2) a seguir:

(1) Amanhã nossa escola festejará seu centenário

(2) STOP sintagma – unidade sintática organizada em torno de um núcleo

Conforme se vê, o sintagma nominal (SN) seu centenário é o mais profundamente encaixado, portanto, tendo o nível hierárquico mais baixo. Já o sintagma topicalizador (STOP) tem o nível hierárquico mais alto, dominando todos os outros sintagmas.[2]

Este exemplo parece-me suficiente para mostrar, não só a evolução dos estudos sintáticos, como também a argúcia analítica de Mattoso, que já se preocupava com os encaixamentos sintáticos, os quais só vieram a ser formalizados apropriadamente alguns anos depois de sua Crônica sobre a teoria sintagmática de Mikus, com o advento da gramática gerativa de Noam Chomsky.


 

Mattoso
e a sintaxe baseada em padrões frasais
e mecanismos sintáticos

No texto intitulado A frase portuguesa (cap. XI de Câmara Jr. (1975), Mattoso  analisa as sentenças do português a partir de seus padrões frasais e mecanismos sintáticos. Os principais padrões frasais e mecanismos sintáticos abordados pelo autor são, respectivamente: a frase nominal e a verbal, a frase negativa, as perguntas e as respostas, o padrão comparativo, os padrões de subordinação, a regência, a concordância e a colocação. Apesar de estes mesmos temas já terem sido abordados por gramáticos tradicionais, há contribuições interessantes de Mattoso, conforme o demonstram os textos que se seguem:

Texto A Ora, tanto nada como ninguém, podem anteceder o verbo, ou porque são os sujeitos,  ou como objetos, em virtude da liberdade de colocação em português. Nessa posição do verbo assim posposto ao pronome negativo, a língua literária suprime a partícula não, como sucedia sempre em latim com o uso do pronome negativo (Nada sei – Ninguém chegou – etc.) (p. 240)

Texto B A língua portuguesa, como a espanhola e a italiana, possui uma partícula afirmativa de resposta, tirada do advérbio latino sic “assim”, com a perda da consoante final e em português moderno com um travamento nasal do monossílabo (sim). O esquema normal da resposta afirmativa em português é, entretanto, outro: repete-se o verbo  que é o eixo da interrogação (Pedro saiu hoje? Saiu. É teu irmão? É.

Já a resposta negativa assenta na partícula não: Pedro saiu hoje? Não. É teu irmão? Não. (p. 242)

Texto C A concordância verbal é assim, em português, o mecanismo sintático fundamental para a indicação de um substantivo sujeito.

Por isso, a invariabilidade em número de um verbo na 3ª pessoa assinala a chamada impessoalidade, isto é, um padrão frasal em que desaparece a dicotomia sujeito-predicado pela eliminação do sujeito. (p. 250)

Texto D Há um princípio básico, que consiste em atribuir ao último termo do enunciado o máximo valor informativo. Notem-se, por exemplo, as diferenças de informação entre as três seguintes colocações diferentes para uma mesma frase: a) eu saio às três horas (a que horas?); b) às três horas eu saio (que faço?); c) às três horas saio eu (quem sai?) (p. 252)

Texto E A posposição é, entretanto, a pauta fundamental, porque a função usual do adjetivo é acrescentar um dado de informação nova a respeito do substantivo; é essencialmente um elemento descritivo suplementar para a significação contida no substantivo.

Daí resulta um mecanismo sintático muito nítido, quando de dois nomes em seqüência, como determinado e determinante, nenhum tem marca formal de adjetivo: a identificação do nome que funciona como adjetivo se faz pela sua colocação em segundo lugar. Assim, um amigo urso é um amigo que se pode classificar como urso, porque falso e ingrato. Nunca será entendido como referente a um urso que é nosso amigo. Para esta outra interpretação impõe-se a anteposição de urso: um urso amigo. (p. 253)

Embora faça uso de alguma terminologia de cunho tradicional para analisar os padrões frasais do português, Mattoso revela, nos textos acima, sua excelente formação estruturalista, ao mostrar, por exemplo, preocupação com a variante lingüística que está sendo analisada (menciona uma particularidade da língua literária, no texto A). A própria classificação dos padrões frasais já revela a boa doutrina estruturalista seguida pelo autor.

A adoção do estruturalismo dotou suas análises de uma consistência admirável. No texto C, por exemplo, assinala que a concordância verbal é crucial para a identificação do sujeito. Este é um achado importante, constituindo-se num avanço em relação às análises tradicionais, as quais se valiam de noções semânticas ( o sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração) para a identificação do sujeito. Mattoso, neste aspecto, faz uma análise eminentemente sintática, valendo-se da concordância, que é um mecanismo relacional, portanto, sintático.

No texto D, em que aborda uma mesma frase com três ordens sintáticas diferentes, pode-se apreciar sua apurada técnica de análise, tanto pela escolha do exemplo, quanto pela indicação de cada termo deslocado através de uma pergunta que o focaliza. Aliás, é a noção de foco, tão em voga na lingüística contemporânea, que está presente neste texto.

Finalmente, no texto E, apresenta-se uma análise acurada e, cremos, pioneira, da ocorrência de dois nomes seguidos. Um deles apenas pode ter função adjetiva. Neste caso (ex. de Mattoso: um amigo urso), somente o segundo pode ser interpretado como adjetivo, já que este ocorre canonicamente posposto ao substantivo (v. rapaz esperto, moça linda, em que os adjetivos estão na posição canônica).

 

Comentários de Mattoso
sobre a Nomenclatura Gramatical Brasileira

Nesta última seção, apreciaremos o texto de Mattoso intitulado Nomenclatura gramatical (v. Dispersos, p. 55-69), no qual há observações muito interessantes sobre a sintaxe do português e seu ensino. Serão comentadas apenas três passagens do texto que consideramos relevantes. Aqui estão:

Texto F Da minha parte tenho a dizer de início que considero a nova Nomenclatura Gramatical um excelente passo para combater o arbítrio e a fantasia individual em matéria de nomenclatura. No séc. XIX, dizia-se que todo professor de Filosofia alemão se achava obrigado a criar um sistema filosófico seu. A Alemanha é a terra da Filosofia; no Brasil, que é a terra da Gramática, todo professor de português se acha obrigado a criar uma nomenclatura gramatical sua.

Daí uma multiplicidade quase estonteante, que dá vertigem aos jovens estudantes e aos adultos leigos interessados em questões de linguagem. Essa multiplicidade decorre de duas causas: 1. certo pedantismo exibicionista, muito encontradiço nos estudos lingüísticos urbe et orbe, onde já se disse que há a epidemia dos termos novos (própria da puerícia tanto nos seres humanos como nas ciências do homem, segundo os comentários que ouvi de Roman Jakobson a propósito da escola lingüística norte-americana); 2. divergências doutrinárias profundas, que tinham de se refletir na Nomenclatura, pois, como comenta Otto Jespersen, não há doutrina segura sem nomenclatura precisa. (p. 56)

Texto G Na aula passada, procurei focalizar, de maneira geral, o espírito da nova Nomenclatura, insistindo em alguns pontos que me parecem de alta significação, por representarem uma tomada de posição muito oportuna em matéria de doutrinação gramatical. Hoje vou me limitar a um aspecto apenas, que é referente à análise da frase, ou análise sintática. Talvez seja um assunto que empolgue mais o auditório em vista da importância quase absorvente que tem no nosso ensino gramatical essa desmontagem da estrutura da frase. Em parte, se justifica tal atitude, porque, de um lado a frase é a unidade essencial da comunicação lingüística e todos os elementos de uma língua convergem, por assim dizer, para a eficiente elaboração das frases, e, de outro lado, o conhecimento de tudo que se refere à língua tem de ser adquirido por meio de análise. (p. 62-63)

Texto H Em matéria de análise sintática é preciso uma reformulação integral do problema; é o que se está fazendo nos meios universitários europeus e norte-americanos. Nestes, pode-se citar a doutrina dos constituintes imediatos, onde professores de inglês (Charles Fries, por exemplo) têm  ido buscar a reelaboração didática da análise da frase; na Europa, é bastante citar as elucubrações de Bally em Linguistique générale et linguistique française, as de Hans Glinz em Die Innere Form des Deutschen e a “teoria sintagmática” de Francis Mikus, a que dediquei uma Crônica lingüística na Revista Brasileira de Filologia. (p. 64)

Com sólida formação estruturalista, Mattoso se preocupou com a proposta de unificação terminológica da NGB e comentou, de modo bastante acurado, os acertos da nova Nomenclatura. Simpatizava, no entanto, com um ensino de português que se baseasse, por exemplo, numa teoria lingüística consistente e mais atualizada do que a doutrina da gramática tradicional. Daí ter citado os trabalhos de Fries e Bally. Sabemos, inclusive, que o próprio Matoso fez descrições consistentes e valiosas da morfologia e da fonologia do português, as quais foram utilizadas por professores universitários. Esta utilização das descrições de Mattoso promoveu uma atualização do ensino de nossa língua, nessas duas modalidades, pelo menos no nível superior. Tal atualização repercutiu no ensino de primeiro e segundo graus, haja vista a renovação constante dos livros didáticos.

O mesmo não se deu com o ensino da sintaxe. Embora considerada por Mattoso um componente fundamental da língua, ele não nos legou uma análise sintática do português tão abrangente quanto a que fez, por exemplo, de nossa morfologia. O texto que comentamos, sobre a estrutura da frase, apesar de conter alguns achados fundamentais, limitou-se à descrição dos principais padrões frasais e mecanismos sintáticos do português, sem entrar numa descrição detalhada e baseada exclusivamente nos princípios estruturalistas, como ocorreu com a morfologia e a fonologia. Sendo assim, seus trabalhos sobre sintaxe tiveram muito menos repercussão no ensino.

Para atualizar o ensino da sintaxe, nos dias atuais, é necessário, sim, como o desejava Mattoso, utilizar uma teoria lingüística consistente. Não será esta teoria, porém, a estruturalista, pois hoje dispomos da gramática gerativa, mais abrangente e sintaticamente motivada do que o foi o estruturalismo europeu ou norte-americano.[3]


 

Conclusão

Neste artigo, procuramos revelar uma faceta menos conhecida da obra de Mattoso Câmara Jr.: a dos seus estudos sintáticos. Escolhemos três de seus trabalhos e procuramos mostrar, em cada um, o legado de Mattoso no âmbito da sintaxe.

Da Crônica sobre a teoria sintagmática de Francis Mikus, destacamos seu conhecimento teórico profundo e sua contribuição original a respeito dos encaixamentos dos sintagmas, tema que hoje, depois do advento da gramática gerativa, tem sido formalizado através dos diagramas em forma de árvore. È certo que, em Saussure, Mikus e Mattoso, o sintagma era definido como uma unidade sintática composta por um determinante e um determinado e, na teoria gerativa, tal unidade é definida como uma projeção do núcleo que a constitui. No entanto, os comentários de Mattoso sobre os encaixamentos são relevantes, pois se aproximam do que os gerativistas chamam hoje de hierarquia dos sintagmas.

Seu trabalho sobre os padrões frasais, como vimos, contém excelentes análises de aspectos da sintaxe do português, como a da colocação canônica dos adjetivos, pospostos aos substantivos, e a acurada observação de que, numa seqüência de dois nomes , apenas o segundo nome, como em amigo urso, recebe a interpretação de adjetivo por colocar-se na posição canônica deste.

Por último, ao abordarmos seus comentários à sintaxe da NGB, priorizamos sua preocupação com o acerto da nova Nomenclatura, ao proceder à unificação terminológica, e sua simpatia por um ensino baseado em doutrina mais atualizada do que a da gramática tradicional. Para a época em que escreveu seu trabalho, Mattoso se referiu a análises estruturalistas, que eram as mais atualizadas. Hoje, se quisermos empreender tal atualização sintática no ensino, será importante recorrermos à teoria da gramática gerativa, mais abrangente do que a do estruturalismo.

Enfim, logramos nosso intento de mostrar a enorme capacidade de Mattoso, que transitava igualmente pela teoria, pela descrição e pelo ensino, demonstrando a desenvoltura própria de um lingüista completo.


 

Referências bibliográficas

CÂMARA JR., J. Mattoso. Dispersos. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1972. Seleção e introdução por Carlos Eduardo Falcão Uchoa.

––––––. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.

––––––. História e estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.

––––––. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro: Simões, 1953.

CHOMSKY, Noam. Remarks on nominalization. In:JACOBS, Roderick A. e ROSENBAUM, Peter, S. Readings in English transformational grammar. Waltham, Xerox, 1970.

––––––. The minimalist program. Cambridge, MIT Press, 1995.

FUKUI, Naoki. Phrase structure. In: BALTIN, Mark e COLLINS, C (ed.) The handbook of contemporary syntactic theory. Malden, Blackwell, 2001.

HAUSER, Marc D., CHOMSKY, Noam e FITCH, T. The Faculty of language: what is it, who has it, and how did it evolve? Science, vol. 298, 2002.

MENEZES, Humberto Peixoto. Simplificando o ensino da sintaxe. Revista Letra. Rio de Janeiro: UFRJ, vol. 1, jan-jul/ 2005.

PIATTELLI-PALMARINI, Massimo e URIAGEREKA, Juan. The evolution of the narrow faculty of language: the skeptical view and a reasonable conjecture. Lingue e linguaggio, n. 1, 2005.


 

[1] A noção de léxico mental é uma contribuição da gramática gerativa e não estava presente no conceito de paradigma.

[2] O Sintagma Topicalizador (STOP) abriga elementos topicalizados (antecipados), como nas seguintes sentenças: Este livro, eu não li, Na segunda-feira trarei teus documentos, O Paulo, nós nunca mais encontramos, etc. Já o Sintagma Flexional (SF) contém o sujeito em seu especificador e os traços de tempo e concordância em seu núcleo.

[3] Para uma simplificação do ensino da sintaxe do português, calcada em pressupostos gerativistas, v. Meneses (2005).