Sinestesia em Rosa
um alumbramento da palavra

Rossana Sartori (FIMI)
Lilian Cristina Granziera (PUC-CAMPINAS, FIMI)
Maria Suzett Biembengut Santade (UERJ, FIMI e FMPFM)

 

Palavras iniciais

Este trabalho gira em torno de estudos e reflexões acerca da linguagem roseana  utilizada em suas obras literárias, específica, no conto O Recado do Morro. A área de abrangência de nossos estudos compreende a linguagem roseana e suas implicações sinestésicas.

Buscamos pensar em uma linguagem fundamentada na concepção roseana de que o indivíduo está preso a uma vida em comunidade, na qual a  comunicação é um sistema básico de expressão de suas necessidades físicas e espirituais, valorizando a “gramaticalidade” da qual ninguém poderá abstrair-se, por ser absolutamente inerente à materialização, construção e reconstrução dos discursos de cada um de nós.

 

A Literatura de Guimarães Rosa

Somos hoje contemporâneos de uma realidade econômica, social, política e cultural que se estruturou depois de 1930. A afirmação não quer subestimar o papel da Semana de Arte Moderna, mas há um estilo de escrever anterior e um outro posterior a Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. A conferência de Mário de Andrade, “O Movimento Modernista”, escrita em 1942, menciona a herança literária deixada pelos autores de 1922: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional.

As décadas de 30 e de 40 vieram ensinar muitas coisas úteis aos nossos intelectuais. Por exemplo, que o tenentismo liberal e a política getulina só em parte aboliram o velho mundo, pois se compuseram aos poucos com as oligarquias regionais, rebatizando antigas estruturas partidárias, embora acenassem com lemas patrióticos ou populares para o crescente operariado e as crescentes classes médias. Que a “aristocracias” do café patrocinadora da Semana, tão atingida em 29, iria conviver muito bem com a nova burguesia industrial dos centros urbanos, deixando para trás como casos psicológicos os desfrutadores literários da crise. Enfim, que o peso da tradição não se remove nem abala com fórmulas mais ou menos anárquicas nem com regressões literárias ao inconsciente, mas pela vivência sofrida e lúcida das tensões que compõem as estruturas materiais e morais do grupo em que se vive.   Fim da Segunda Guerra Mundial, início da Era Atômica com as explosões de Hiroxima e Nagasaki. Acredita-se numa paz duradoura, cria-se a ONU; mais tarde publica-se a Declaração dos Direitos do Homem; logo depois, inicia-se a Guerra Fria. Fim da ditadura de Getúlio Vargas, início da redemocratização brasileira. Convoca-se uma eleição geral, os candidatos apresentam-se, os partidos são legalizados, sem exceção; logo depois, abre-se um novo tempo de perseguições políticas, ilegalidades, exílios.

A literatura brasileira também passa por profundas alterações, com algumas manifestações representando muitos passos adiante: outras, um retrocesso. O tempo, excelente crítico literário, encarrega-se da seleção. A prosa, tanto nos romances como nos contos, aprofunda a tendência já trilhada por alguns autores da década de 30 em busca de uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva, com destaque todo especial para Clarice Lispector. Ao mesmo tempo, o regionalismo adquire uma nova dimensão com a produção fantástica de João Guimarães Rosa, o grande inovador do período, artista de primeiro plano no cenário das letras modernas: experimentador radical, não ignorou, porém, as fontes vivas das linguagens não-letradas: ao contrário, soube explorá-las e pô-las a serviço de uma prosa complexa em que o natural, o infantil e o místico assumem uma dimensão ontológica que transfigura os materiais de base, recriando os costumes e a fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil central.

Na poesia, por outro lado, ganha corpo a partir de 1945 uma geração de poetas que se opõe às conquistas e inovações dos modernistas de 1922. A nova proposta foi defendida, inicialmente, pela revista Orfeu, cujo primeiro número é lançado na “Primavera de 1947” e que afirma, entre outras coisas: Uma geração só começa a existir no dia em que não acredita nos que a precederam, e só existe realmente no dia em que deixam de acreditar nela.

Assim é que, negando a liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras “brincadeiras” modernistas, os poetas de 45 partem para uma poesia mais “equilibrada e séria”, distante do que eles chamavam de “primarismo desabonador” de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A preocupação primordial era quanto ao “restabelecimento da forma artística e bela”; os modelos voltam a ser os mestres do Parnasianismo e do Simbolismo. Esse grupo, chamado de Geração de 45, era formado, entre outros poetas, por Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir Campos e Darcy Damasceno.

Entre 1930 e 1945/50 o panorama literário apresentava, em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaísmo social e o aprofundamento da lírica moderna no seu ritmo oscilante entre o fechamento e a abertura do eu à sociedade e à natureza (Drummond, Murilo, Jorge de Lima, Vinicius, Schmidt, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Emílio Moura, entre outros). Afirmando-se lento, mas seguramente, vinha o romance introspectivo, raro em nossas letras desde Machado e Raul Pompéia. E já estão situados quando não analisados até pela crítica universitária. A sua “paisagem” nos é familiar: o Nordeste decadente, as agruras das classes médias no começo da fase urbanizadora, os conflitos internos da burguesia entre provinciana e cosmopolita (fontes da prosa de ficção). Para a poesia, à fase 30/50 foi universalizante, metafísica, hermética, ecoando as principais vozes da “poesia pura” européia de entre-guerras.

A partir de 1950/55, entram a dominar o nosso espaço mental o tema e a ideologia do desenvolvimento. O nacionalismo, que antes da Guerra e por motivos conjunturais conotara a militância de Direita, passa a bandeira esquerdizante; e do papel subsidiário a que deveria limitar-se (para não resvalar no mito da nação, borrando assim critérios mais objetivos), acaba virando fulcro de todo um pensamento social. Renova-se, simultaneamente, o gosto da arte regional e popular, fenômeno paralelo a certas idéias-força dos românticos e dos modernistas que, no afã de redescobrirem o Brasil, também se haviam dado à pesquisa e ao tratamento estético do folclore; agora, porém, graças ao novo contexto sócio-político, reserva-se toda atenção ao potencial revolucionário da cultura popular. Os resultados artísticos são desiguais, mas ficaram alguns excelentes poemas recolhidos nas séries de Violão de Rua (3 vols.), alguns textos dramáticos de Ariano Suassuna, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal e Dias Gomes, roteiros fílmicos e algumas letras épicas de música popular.

Em contrapartida, a “guerra fria” e a condição atômica que desde 1945 dividem o mundo em sistemas e, já agora, subsistemas hostis, forma introjetadas pelas classes conservadoras que empreenderam uma reação sistemática contra as áreas políticas e culturais as quais encarnavam a linha nacional-populista. Na hora da provação, o pensamento dialético procura desfazer-se dos equívocos que o confundiam na fase anterior e voltar à análise das suas fontes teóricas.

Em caminho paralelo, progride o surto da mais recente metodologia ocidental: o estruturalismo. Em conexão com esse método e, não raro, com os traços tecnicistas que dele receberam os seus divulgadores, aparecem, a partir de 55, a poesia concreta, o novo romance, pari passu com a aura mítica generalizada em torno dos meios de comunicação de massa e certo difuso fetichismo da máquina, aliás, compreensível se atentarmos para a explosão industrial dos anos sessenta nos Estados Unidos e na Europa, centros de decisão para as elites sul-americanas. O áspero diálogo entre os ideólogos do tempo e os analistas do espaço será, talvez, o fato cultural mais importante dos nossos dias.

Enfim, caráter próprio da melhor literatura de pós-guerra é a consciente penetração de planos na busca de uma “escritura” geral que possa espelhar o pluralismo da vida moderna; implícito na revolução modernista.

 

Resumo do Conto O Recado do Morro

Um grupo de cinco pessoas inicia viagem em direção ao Norte de Minas. Participam dessa comitiva três pessoas importantes e dois vulgares sertanejos. Entre os importantes estão: seo Alquiste, estrangeiro, que, pelas anotações e constantes perguntas, parece ser um pesquisador; seo Jujuca do Açude, fazendeiro, filho do fazendeiro Juca do Açude, homem estudado, fazendo o papel de cicerone do estrangeiro; e frei Sinfrão, tipo de frade folgado, boa paz e boa vida, que fuma e reza com a mesma simplicidade e naturalidade sadias. Os acompanhantes, espécie de criados contratados, são o enorme e namorador Pedro Orósio e o enciumado Ivo Crônico ou Ivo de Tal, que disfarça sua raiva de Pedro, para melhor alcançar seu desejo de vingança, uma vez que Pedro era namorador e roubara sua namorada. Passam por Cordisburgo e visitam a Gruta de Maquiné. Durante a viagem, tanto na ida quanto na volta, vários avisos premonitórios da ameaça de traição que paira sobre Pedro são transmitidos através de loucos variados: inicialmente pelo ermitão Gorgulho, que ouviu o recado do morro; depois seu irmão Catraz, que reconta o que ouvira do irmão; em seguida pela conversa de Joãozezim e Guégue a quem ninguém deu atenção; posteriormente pelo fanático Jubileu ou Nominedômine, que reinterpreta o que ouviu do papudo Guégue e, finalmente, pelo doido Coletor que inspira o poeta-cantador Laudelim, que compõe e canta uma cantiga de jeito medieval que alerta Pedro para o perigo. Pedro vence seus inimigos e foge para a sua terra. Enfim, o morro conseguiu emitir seu recado através das falas desajustadas ou não, de pessoas menos favorecidas socialmente, entretanto, respeitadas com carinho pelo enxadeiro Pedro Orósio.

 

Língua e linguagem regionalista em Rosa

O regionalismo, que deu algumas das formas menos tensas de escritura (a crônica, o conto folclórico, a reportagem), estava destinado a sofrer, nas mãos de Guimarães Rosa, a transformação que o traria, novamente, ao centro da ficção brasileira.

Após a leitura de O Recado do Morro começa-se a entender de novo uma antiga verdade: que os conteúdos sociais e psicológicos só entram a fazer parte da obra quando veiculados por um código de arte que lhes potencia a carga musical e semântica. Para Guimarães Rosa a palavra é sempre um feixe de significações: mas ela o é em um grau eminente de intensidade se comparada aos códigos convencionais de prosa. Além de referente semântico, o signo estético é portador de sons e de formas que desvendam as relações íntimas entre o significante e o significado.

Toda voltada para as forças virtuais da linguagem, a escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as fronteiras entre narrativa e lírica, assim, o conto O Recado do Morro inclui e revitaliza recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopéias, rimas internas, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico ou de todo neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos, e por fim a sinestesia.

Teoricamente, a língua é atividade, trabalho; gesto que é parte integrante de muitas outras atividades humanas; instrumento e produto do trabalho; sistema de comunicação intra/interpessoal e intra/intercultural; um tipo de competência que nós temos; um sistema e uma prática social; sistema formal e objeto de inscrição social e subjetiva; algo que a gente cria e molda à medida que se vai falando; produção da capacidade da linguagem, uma produção histórica socialmente demarcada que envolve herança histórica, herança biológica e história pessoal, não só como condição, mas como demarcação da expressão; um fenômeno social por excelência que envolve um aspecto estrutural e as condições político-sociais e econômicas da constituição de um fenômeno de comunicação como língua.

Entretanto, a lingüística é, essencialmente, pós-moderna, se por isso se entender que o campo se desenvolve num ambiente de indefinição e fluidez com relação ao seu próprio objeto. Ainda que alguns tenham defendido a lingüística como ciência de uma maneira que a aproxima da concepção clássica e mesmo positivista de ciência, outros como ciência num sentido não clássico e outros ainda como uma reflexão que não tem porque impor a si um estatuto de cientificidade do tipo que por muito tempo foi dominante na epistemologia tradicional, todos reconhecem ter ela hoje objetos delimitados, mesmo que não definidos no sentido formal tradicional; metodologias reconhecíveis e reproduzíveis e outras características que fazem dela uma espécie de estudo a um só tempo experimental e hermenêutico, descritivo e interpretativo, sem pretensões de explicar os fenômenos no sentido estrito de "explicar".

O tema dos desafios da lingüística envolve desde o aprofundamento do conhecimento do aspecto cognitivo da linguagem como a proposta de uma lingüística voltada para a promoção da paz, passando pelo desenvolvimento de propostas voltadas para as mais diversas áreas, teóricas e práticas. Um estudo mais aprofundado da "produção" da linguagem, sem desprezo do "produto" lingüístico, o apelo para que se levem em conta as descontinuidades ligadas à linguagem verbal.

A língua é linguagem, na forma mais plena de possibilidades de comunicação entre os homens. No que se refere à linguagem e à língua, ou linguagem verbal, muitas pesquisas têm sido feitas, desde tempos longínquos. Mas, ao mesmo tempo, ainda persiste a necessidade de reflexões, para melhor compreensão do conhecimento já estruturado, bem como para indagá-lo. No que diz respeito à língua, ainda são muitas as lacunas até que o desempenho, pelo falante, seja considerado, de fato, como exercício de uma gramática tão legítima quanto a do padrão oficial.

Vício na fala
Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha teia
Para telhado teiado
E vão fazendo telhados.

(Oswald de Andrade)

O texto de Oswald de Andrade atesta que os homens que falam “mio”, “mió”, “pió”, “teia”, “teiado” constroem os telhados, e os que usam o padrão oficial da língua provavelmente não conseguiram construí-los. Constroem-se os telhados aqueles que dizem “teiado”, qual o problema com esta forma? Se a língua utilizada pelo falante pode ser compreendida  enquanto mensagem, por que não se aceita com tranqüilidade esta forma de falar? É possível perceber que o problema não está na escolha de “teiado”, mas na diferença que existe entre os que enunciam as duas formas da mesma palavra. São diferentes, já a partir da língua utilizada por eles, e tem prestígio social o que enuncia a forma “telhado”, em detrimento dos que usam “teiado”.

Para Aristóteles, um atributo é prestigiado, dependendo da pessoa em quem ele vive. Tem prestígio social a língua utilizada pelos falantes pertencentes a determinado grupo social: aqueles que possuem nível superior de letramento. Se estes utilizam “telhados”, não se vê como forma padrão a forma “teiado”. Oswald de Andrade apropria-se da forma “teiado” para, enquanto poeta, sacralizá-la. Para ele, cabe o uso desta forma, uma vez que se sabe ser possível, para o escritor literário, apropriar-se das formas menos prestigiadas da língua, sem que sofra qualquer tipo de censura. Em seu poema, Oswald utiliza a escrita para, de certa forma, revelar o conflito social existente entre as variedades de uma mesma língua e, ao mesmo tempo, o conflito social que se estende à relação língua/ fala. Assim, é pertinente pensar o quão denunciador se faz o poema, no que diz respeito às relações de poder da escrita sobre a fala. É como se o poeta, por frágeis instantes, quisesse fixar a vivacidade das telhas que vão sendo sobrepostas a outras telhas, misturadas ao suor dos homens que trabalham sob o sol, para a construção dos “teiados”. A fala, língua viva do povo, desafia o estamento da língua escrita e se faz presente no texto: dessacraliza-se a escrita e sacraliza-se a fala, o elemento oral. Para desvelar o universo extraordinário criado por Guimarães Rosa, é preciso que adentremos o mistério ao qual ele se refere. Esse mistério que nos ronda, que todos nós sentimos e que Rosa traz à tona através da geografia do sertão e da bronca alma do sertanejo que, indiferente ao raciocínio lógico, é acessível a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices e que vive distante da nossa civilização urbana e niveladora. São almas receptivas ao extraordinário, ao milagre, e são elas que decifram O Recado do Morro. Tornando necessário o uso de uma linguagem que rompe qualquer barreira teórica ou literária criando um regionalismo universal capaz de tatuar na pele e no sentimento do leitor o mundo dos Campos Gerais.

Celso Pedro Luft (1994) afirma que “a língua é o que é, e não o que poderia ou deveria ser: ela é como a fizeram e fazem os que a falaram e falam”.  É a língua do operário, do doutor, do sertanejo, que faz a história de um tempo. É a língua viva que se faz compreender àqueles que a querem ouvir. Mas, é nessas misturas de língua/ fala, que o homem vai construindo seu modo próprio de ver e viver a linguagem humana.

A língua musicada e sinestésica de Pedro Orósio ou o “teiado” no poema de Oswald assume, aqui, a identidade do falante que não perde o seu valor por internalizar uma dessas formas. Ela “é o que é”, porque o espaço existe, e permite a sua performance, no padrão oficial ou coloquial.

“Sertão. Sabe o senhor: sertão é o onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso ...”

 

Sinestesia em Rosa

Em O Recado do Morro, Guimarães Rosa vai desenhando, lentamente, seu universo sertâmico e modelando a linguagem como um artista que sob pinceladas vai delineando locais e personagens como se fosse possível ao leitor não se encontrar somente com o mundo das palavras da língua portuguesa, mas um filme.

Literariamente sabemos que a publicação de Sagarana na década de 30 do século XX mudaria a realidade do Modernismo brasileiro, uma vez que abriu uma nova perspectiva para o regionalismo tão bem divulgado pela segunda geração modernista, como podemos citar em: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo e tantos outros.

Guimarães Rosa revaloriza a linguagem, universalizando o regional em uma linguagem rebuscada pelo neologismo, a recriação vocabular, a invenção das palavras, o sertão místico, o inenarrável e o responder e perguntar simultâneos na fala de simples, entretanto fortes sertanejos. As palavras criam significados altamente expressivos na tentativa de esclarecer os limites de uma vida que precisa mostrar a realidade e a fantasia de personagens enigmáticos presos a um sertão mineiro onde a metafísica indica-nos um caminho, não a solução, pois somos dotados de livre arbítrio e assim a escolha pelo bem é individual e solitária.

Para um escritor tão consciente de tudo o que produziu, bem como, de sua profissão, já que, seus amigos mais íntimos relataram sua necessidade em anotar todos os detalhes da natureza de sua terra natal Cordisburgo e toda extensão territorial do Morro das Garças, o conhecido sertão mineiro, os Campos Gerais. Trouxe, ainda, na bagagem seu imenso conhecimento em outras línguas e características literárias de séculos passados, como o Simbolismo, que valorizou as manifestações metafísicas e espirituais voltando o homem para uma realidade subjetiva, não superficial ou sentimentalista dos românticos, mas sim, a busca da essência do homem com aquilo que ele tem de mais profundo e comum em todos – a alma.

Alma esta que respeita seu mistério de explicação racional, tornando o homem mais profundo em seus sentimentos, sem tentar a sublimação simbolista que se apegou a uma musicalidade vocabular muitas vezes imposta por uma poesia hermética, pois no Simbolismo tudo é sugestão. Enquanto que, para Guimarães, a musicalidade é o que liberta a alma ‘simples’ de seus sertanistas carregando-a de símbolos que representarão sempre a ligação entre homem e natureza; ser e sentir; viver entre o bem e o mal.

O conto é narrado em terceira pessoa fortalecendo a própria descrição de uma história que ‘conseguiu-se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte’ , isto é, o mensageiro de uma traição só teria plenitude realística através de um narrador onisciente, intimamente, ligado ao nosso protagonista/metafísico – o morro, já que, tudo via e tudo sabia. A descrição do personagem principal comunga com a escolha que o autor faz de seu nome e alcunhas: Pedro Orósio, Pedrão Chãbergo ou ainda, Pê-Boi. Em latim, Pedro é ‘pedra’, em grego, Oros é ‘pedra’. Pedra que solidificada e depositada pela natureza em milhares de anos formou o imenso Morro das Garças, longo, austero, áspero e infinitamente belo que corta a região dos Campos Gerais onde vive o nosso homem de pés () enormes (Boi) pisando no chão (Chãbergo) que é seu domínio e sua vida e que também é de pedra (Pedrão).

Debaixo de ordem. De guiador – a pé, descalço – Pedro Orósio: moço, a nuca bem feita, graúda membradura; e marcadamente erguido: nem lhe faltavam cinco centímetros para ter um talhe de gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em cruz os ossos da cabeça de um marruás, com um soco em sua cabeloura, e de levantar do chão um jumento arreado, carregando-o nos braços por meio quilômetro, esquivando-se de seus coices e mordidas, e sem nem por isso afrouxar do fôlego de ar que Deus empresta a todos. (p. 5)

As alcunhas em uma linguagem sugestiva e instigante continuam através dos três importantes viajantes que são conduzidos por Pedro: o Sr. Alquiste, supostamente, um cientista, anotando tudo sobre a natureza diversificada dos Campos Gerais, onde o narrador esbanja musicalidade sinestésica, uma vez que, se faz necessário todos os sentidos para entender a exuberância daquelas terras.

Ao dito, seu Alquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem. Tomava nota, escrevia, na caderneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande está estrangulando com as raízes a paineira pequena! — ele apreciava, à exclama. Colhia com duas mãos a ramagem de qualquer folhinha campa sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo-d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e Zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu. Outramão, ele desenhava, desenhava: de tudo tirava traço e figura leal. (p. 8)

Alquiste lembra a força da antiga palavra alquimia e toda uma carga metafísica que a mesma assume; Frei Sinfrão nos remete a ... e o Sr. Jujuca do Açude, próspero fazendeiro, já que, o mesmo tem Açude até no nome e muito maior que o pai por ser Jujuca e seu progenitor Juca.

Eles caminham por fazendas com pessoas conhecidas por nosso protagonista sendo Jove (entre o Ribeirão de Maquine e o Rio das Pedras); dona Vininha (pé da Serra do Boiadeiro); Nhô Hermes (à beira do Córrego da Capivara); Nhá Selena (ponta de Serra de Santa Rita); Marciano (na fralda da Serra do Repartimento); Apolinário (vertente do Formoso). Durante toda a viagem acompanha o grupo o Ivo de Tal ou Ivo Crônico que tem a mesma profissão de Pedro e deseja matá-lo por ter roubado sua namorada tendo fama de conquistador. Temos então, o antagonista que medita planejando uma morte à traição.

Aos quais, sol a sol e val a val, mapeados por modos e caminhos tortuosos, nas principais tinham sido, rol: a do Jove, entre o Ribeirão Maquiné e o Rio das Pedras - fazenda com espaço de casarão e sobrefartura: a dona Vininha, aprazível, ao pé da Serra do Boiadeiro – aí Pedro Orósio principiou namoro com uma rapariga de muito quilate, por seus escolhidos olhos e sua fina alvura; o Nhô Hermes, à beira do córrego da capivara – onde acharam compra de cinqüenta novilhos curraleiros; a Nhá Selena, na ponta da Serra de Santa Rita – onde teve uma festinha e frei Sinfrão disse duas missas, confessou mais de dúzia de pessoas: o Marciano, na fralda da Serra do Repartimento, seu contraforte de mais cabo, mediando na cabeceira do Córrego da Onça para a do córrego do Medo – lá o Pedro Orósio quase teve de aceitar ajuizada briga com um campeiro morro-vermelhano; e,  assaz, passado o São Francisco, o Apolinário na vertente do Formoso – ali já eram os campos–gerais, dentro do Sol. (p. 26)

Nosso enxadeiro é um homem extremamente forte e um simples duelo não seria seguro para Ivo que tem em si uma maldade revestida de quietude e simpatia por Pedro, não deve-se esquecer que ele é crônico, isto é, não possui mais cura. E para ter certeza de seu precioso intento combina tal morte com mais seis amigos/inimigos dele, que são: Jovelino, Veneriano, Lualino, Martinho, Hélio Nemes, Zé Azougue.

E nesse caminhar o sertão amigo não poderia deixar de exibir elementos místicos e totalmente isolados socialmente por serem considerados loucos, bobos, enfim com sérios desajustes. Estas pessoas escolheram a natureza e sua inaudível voz como vida e pronunciamento de uma eterna bondade divina. Só as estrelas e os céus poderiam protegê-los de toda humanidade e seu respectivo mal.

O primeiro desses elementos a encontrar-se com a comitiva foi o Gorgulho que vive numa gruta no morro das Garças que já fora abrigo do Urubuquaquá.

– É o Gorgulho...” – o Pê-Boi disse. Quem? Um velhote grimo, esquisito, que morava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e grotas – um urubuquara – casa dos urubus, uns lugares com pedreiras. O nome dele, de verdade, era Malaquias. (p. 13)

E de forma confusa, meio que amedrontada, confessa que o Morro manda um recado que ele assim narra:

Del-rei, ô, demo! Má-hora, esse Morro, ásparo, só se é Satanás, ho! Pois-olhe-que, vir gritar recado assim, que ninguém não pediu: é de tremer as peles... Por mim, não encomendei aviso, nem quero ser favoroso... Del-rei, Del-rei, que eu cá é que não arrecebo dessas conversas, pelo similhante! Destino, quem marca é Deus, seus Apóstolos! E que toque de caixa? É festa? Só se for morte de alguém... Morte à traição, foi que ele Morro disse. Com a caveira, de noite, feito História Sagrada, Del-rei, Del-rei!... (p. 22)

Frei Sinfrão assustado fala da possibilidade de ser um terremoto e não um recado inaudível de um simples morro de pedra, mas Pedro conhece Gorgulho e mesmo sem o entendimento das palavras de seu amigo acredita nele e justifica dizendo:

– Não. Ele, no que é, é é pirrônico, dado a essas manias... Que parece foi querer morar independente em oco de pedreira, só p’ra ser orgulhoso, longe de todos. E não perdeu o bom-uso de qualquer sociedade... (p. 17)

Outros menos importantes aos olhos de muitos tentaram passar a Chãbergo o mesmo recado que Gorgulho transmitira. Recado este que parecia gritar enquanto que, para outros tantos ficava sendo somente uma alucinação, uma banalidade de pessoas consideradas anormais por não se ajustarem a uma sociedade que dita regras de comportamento.

Aqui a sinestesia começa a ter presença marcante para ser desvendada, somente, no clímax da narrativa. A Gramática Normativa da Língua Portuguesa indica que a sinestesia é o encontro dos sentidos, com o propósito de fortalecer a musicalidade de textos poéticos ou não. Neste momento, percebe-se pela escolha dos personagens e pelo recado de morte transmitido, que somente os excluídos poderiam entender tal mensagem, pois era preciso aqui uma presença sinestésica/metafísica, uma vez que, os homens preocupados com sociedade, economia, política, não entenderiam aquela forma de aviso. Será que entenderíamos a voz de um morro imponente? Eles entenderam porque seus cinco sentidos faziam parte da natureza, assim como, o morro era dono daquela mesma natureza. Os recadeiros foram: Joãozezim, Guégue, Catraz, Santos Óleos (Jubileu/ Nominedômine), Coletor e por último o cantador Laudelim Pulgapé.

Mas com sete homens, caminhando pelos altos, disse que a sorte quem marca é Deus, seus Doze Apóstolos, e a Morte batendo jongo de caixa, de noite, na festa, feito História Sagrada... Querendo matar– à traição... (p. 40)

E nessa jornada não se pode esquecer que os amigos/inimigos de Pedro, matariam-no pelo fato de ser o mesmo namorador e ter destruído alguns namoros. Combinado estava de irem juntando-se à comitiva sem despertar suspeitas e no final fariam uma festa, tirando a vida de Pê-Boi pelas costas.

Porque, desde dias, estavam outra vez companheiros, a amizade concertara. Ao que o Ivo era um rapaz correto, obsequioso. – “Mal-entendido que se deu, só... Má estória, que um bom gole bebido junto desmancha...” Nisso que o Ivo pelos outros respondia também: o Jovelino, o Veneriano, o Martinho, o Hélio Dias Nemes, o João Lualino, o Zé Azougue – (p. 27)

O destino tentava traçar o azar e morte de um homem formoso, grande, severo, simples e verdadeiro abrigo dos Campos Gerais. Temos então, o processo de recuperar o mal com toda a força do bem, uma vez que seis fazendas e fazendeiros abrigam o descansar de nosso herói e seis amigos místicos ou tolos, neste descanso tentam adverti-lo com avisos do morro, isto é, do seu interior.

Nessas coincidências de uma linguagem realmente expressiva Guimarães marca sua idéia mística acima de qualquer conflito, clímax ou narrativa, já que todo sertanejo pela sua vida árdua, sem a diversidade das grandes cidades vive seu universo preso a segredos que a ciência não desvenda e torna o seu “mundo” um paradoxo que preocupa o homem moderno e não o sertanejo.

É mais importante o ser ou o ter? Eles são. São o solo no qual nascem agradecidos por ali estarem e terem uma terra para cultivar e uma natureza que, sabiamente, nutre-os com o necessário, não com o enriquecedor. Assim, Pedrão Chãbergo tinha 6 (seis) inimigos que governados pela maldade crônica, aquela que não sossega em nosso pensamentos e vai corroendo a razão dos fatos e da vida, como em Ivo de Tal; também tinha 12 (doze) amigos que deram-lhe o recado de vida e continuidade em seus Gerais.

A fala de um povo cria o folclórico de uma nação e como não poderia ser aqui diferente, tudo o que foi dito vira música, cantiga nas cordas do violão de Laudelim Pulgapé.

Pedrão está fazendo uma viagem ao passado, pois vai para sua terra natal, encontrando-se com sua infância constantemente através de seus pensamentos. O que torna-o mais puro, mais criança, para em suas memórias re-ver e re-sentir os seus Gerais.

E voltou à mente o querer se deixar lá, em seus Gerais, não havia de faltar onde plantar à meia, uma terreola; era um bom pressentimento. Mas logo a idéia raleou e se dispersou - ele não tinha passado por estreitez de dissabor ou sofrimento nenhum, capaz de impor saudades. Assim, era como se minguasse terra, para dar sustento àquela sementezinha. (p. 25)

 

Considerações Finais

Guimarães Rosa alicerça o terceiro momento regionalista e impõe uma característica determinante ao mundo regional, tão bem difundido e escrito pelos poetas do segundo momento modernista em nosso país. Agora a linguagem regional e universal, pois cria um cenário mais do que real com uma expressividade que agrega todos os valores gramaticais e os não gramaticais de nossa língua portuguesa. Mas o que é linguagem?

Segundo o minidicionário “Aurélio”, que classifica linguagem como um substantivo feminino, significa o uso da palavra como meio de expressão e de comunicação entre pessoas. Forma de expressão pela linguagem própria dum indivíduo, grupo e classe social. Vocabulário, palavreado. No “Dicionário de Lingüística” ela é definida da seguinte forma: capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais ou língua, que coloca em jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função simbólica e de centro nervoso geneticamente especializado. Esse sistema de signos vocais referido, utilizado por um grupo social ou comunidade lingüística constitui uma língua particular. No “Dicionário de Comunicação”, define-se de outra maneira e dizem claramente que a linguagem está ligada à lingüística e pode ser qualquer sistema de signos - não só vocais ou escritos, como também visuais, fisionômicos, sonoros e gestuais - capaz de servir à comunicação entre indivíduos. A linguagem articulada é apenas um desses sistemas. Pode ser ainda o recurso usado pelo homem para se comunicar. Instrumento pelo qual os homens estabelecem vínculos no tempo e determinam os tipos de relações que mantêm entre si.

A língua é linguagem, na forma mais plena de possibilidades de comunicação entre os homens. No que se refere à linguagem e à língua, ou linguagem verbal, muitas pesquisas têm sido feitas, desde tempos passados. Mas, ao mesmo tempo em que essas pesquisas tentam refletir sobre o uso padrão de uma linguagem, os poetas buscam na maioria das vezes vestir com o belo Aristotélico a fala de seus personagens para que se crie um universo artístico carregado de sugestividade que com certeza amplia e confirma o dia-a-dia de todo e qualquer homem.

Assim, esquecendo as convenções formais de um idioma, Guimarães tenta uma linguagem poética carregada de musicalidade. Entretanto ao nos depararmos com o conto O Recado do Morro nossa observação é aguçada pelas incríveis coincidências feitas pelo autor através dos nomes dos personagens, criando um mundo metafísico e literário inigualável.

A fala de um personagem não pode ser vista ou analisada simplesmente pela teoria gramatical quando, esta mesma fala, assume um caráter inesperado, visto que, é um morro o mensageiro de toda trama presente no enredo. Assim, vivenciamos a maior sinestesia de todas, pois esta não abrange palavras como em “afundar naquele bafo sem tempo, sussurro sem som, onde a gente se lembra do que nunca soube, e acorda de novo num sonho, sem perigo sem mal; se sente.” (p.68) Mas está na pele do personagem que deixa de ser um para ser todos os sertanejos de sua terra assumindo que o morro é nosso personagem e Pedrão é o morro.

Portanto, este trabalho analisa a linguagem roseana e seus recursos utilizando conceitos literários, dizendo que a Literatura necessita dos aspectos lingüísticos na medida em que não podemos deixar explícito o universo da palavra, pois a palavra vai além dos recursos gramaticais de uma língua, no nosso caso a Língua Portuguesa.

 

Bibliografia Consultada

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