TRADIÇÃO GRAMATICAL BRASILEIRA DO SÉCULO XIX

Ânderson Rodrigues Marins (UFF)

 

INTRODUÇÃO

No cenário lingüístico-historiográfico brasileiro, o período denominado gramática científica inicia com a publicação da Grammatica Portugueza, de Julio Ribeiro, em 1881. (Cavaliere, 2000: 19). Nessa nova época, o método histórico-comparativo europeu passou a ser seguido nos estudos e obras acerca da língua portuguesa. Assim, nossa historiografia começava a dar seus passos iniciais no século XIX, surgindo eminentemente marcada pela influência de autores de origem inglesa e alemã. A história da língua nacional passou a ser escrita com um maior senso de objetividade graças à contribuição do espírito germânico. Esse espírito se expressa na maior preocupação com os dados objetivos, na leitura atenta das fontes documentais (objetividade dos documentos) e através da isenção de preconceitos e orientações tendenciosas.

Julio Ribeiro inaugurou o modo de encarar os fatos gramaticais como método de investigação científica, modernizando os estudos dessa área, partindo do exame objetivo e imparcial da realidade idiomática, afastando as orientações do ensino de nossa língua materna da gramática filosófica. Para isso buscou os novos procedimentos adotados pelos estudiosos alemães, ingleses e franceses, tendo deveras, como autor de uma gramática, um lugar de responsabilidade como intelectual e uma posição de autoridade em relação à singularidade da língua portuguesa no Brasil.

Alguns princípios historiográficos, como o caso da influência (Koerner, 1995: 19), orientam quanto à natureza e o objetivo da obra de J. Ribeiro, porquanto o filólogo brasileiro não oculta sua busca às bases teóricas européias para compor seu trabalho. Como Cavaliere assevera: “De Bain absorve o minucioso modelo de apresentação da teoria gramatical, mediante divisão binária em lexeologia e sintaxe” (Cavaliere, 2000: 53). Ante os conceitos das dicotomias continuidade (= permanência) x descontinuidade (= ruptura) (Koerner, 1995: 15), a Grammatica de Julio Ribeiro representa uma ruptura com as ordens teóricas metafísicas então vigentes no tradicionalismo gramatical do século XIX no Brasil.

Enquanto objeto histórico de que se pode dispor para a sociedade brasileira, a gramática constitui lugar de construção e representação de unidade e de identidade. Ao trazerem para si o ato da autoria, os primeiros gramáticos brasileiros como Julio Ribeiro, João Ribeiro, Maximino Maciel, Lameira de Andrade e Pacheco Silva, e outros, participaram da construção do Estado brasileiro. A partir da segunda metade do século XIX, os estudos da língua portuguesa no Brasil começaram a ganhar um caráter destacado e específico dentro do ambiente intelectual da época. Desde então, por um lado, muitos pensadores se dedicaram a demonstrar que o português falado no Brasil era diferente do português falado em Portugal e, por outro, desenvolveu-se um movimento de gramatização brasileira do português que produziu tecnologias e instrumentos lingüísticos tais como dicionários e gramáticas (Guimarães e Orlandi, 1996: 127). E dentro deste processo de gramatização, a Filologia desempenhou um papel importante, servindo de base teórica e científica para a preparação dos instrumentos lingüísticos que foram produzidos no final do século XIX e ao longo do século XX.

O contexto sociocultural do pensamento positivista também influenciou na análise dos fatos gramaticais, ao contribuir para que se tivesse como paradigma a ordem e a pesquisa empírica, e que a veracidade dos fatos fosse comprovada cientificamente. Consoante Sevcenko (2003: 286):

As décadas situadas em torno da transição dos séculos XIX e XX assinalaram mudanças drásticas em todos os setores da vida brasileira.(...) Os fenômenos históricos se reproduziram no campo das letras, insinuando modos originais de observar, sentir, compreender, nomear e exprimir.

Logo, nos anos entre 1880 e 1930, sobressaiu uma tendência gramatical de clara inspiração positivista, assinalando uma legítima inflexão na escrita gramatical que vinha se estendendo ao longo de todo o século XIX, cuja referência era, certamente, a Grammaire génerale et raisonnée de Port-Royal (1660).

É assim que a publicação da Grammatica Portugueza (1881), de Julio Ribeiro, que por ser de extração positivista, inaugurou no Brasil uma visão da linguagem como um conjunto de preceitos científicos positivos, que devem ser seguidos como normas prescritivas invariáveis.

Dos diversos nomes que compõem a tradição gramatical brasileira, aqueles que se incorporam nos limites dos cinqüenta anos aqui determinados formam um grupo distinto. Isso se deve não apenas por se situarem nesse período nomes que serviriam de modelo teórico para todos os estudos gramaticais brasileiros posteriores, mas especialmente por se tratar de uma época mediadora entre um modelo gramatical firmado numa tradição clássica de natureza filosófica – da qual a Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (1822), de Jerônimo Soares Barbosa, viria a ser uma das mais expressivas representantes – e uma nova perspectiva lingüística, vigente durante quase todo o século XX, de natureza científica.

Esse período da historiografia gramatical agrupa, portanto, figuras exponenciais de magnífica distinção no conjunto de autores de gramáticas produzidas no Brasil, a principiar por Julio Ribeiro, que de fato inaugurou no âmbito da construção gramatical, o método histórico-comparativo. Vindo após ele, gramáticos como João Ribeiro, Maximino Maciel, Manuel Pacheco da Silva Júnior, Lameira de Andrade, Eduardo Carlos Pereira, entre outros. Se do ponto de vista teórico se inspiraram nos pressupostos teóricos positivistas que avançaram século XX adentro, do ponto de vista prático, apoiaram-se nas modificações promovidas no ensino brasileiro, a partir de 1870, sobretudo com o desempenho de Fausto Barreto na direção do Colégio D. Pedro II.

O que se quer, enfim, aqui demonstrar do conjunto das contribuições trazidas por Julio Ribeiro aos estudos gramaticais brasileiros, é uma breve análise da visão sintática do filólogo brasileiro na Grammatica Portugueza (1911).

É-nos permitida a ocasião de enveredar pelo período de nossa historiografia gramatical denominado gramática científica. Fica, no entanto, evidente, que à natureza deste trabalho impõe-se inevitavelmente uma apreciação concisa de fatos que requerem maior atenção em local e momento oportunos.

 

MÉTODO HISTÓRICO-COMPARATIVO

O método histórico-comparativo, organizado a partir do século XIX, abasteceu as condições para os ensinamentos depreendidos da comparação científica, permitindo compreender, por exemplo, que o latim não é uma língua isolada, apresenta em sua gramática vários pontos em comum com o grego.

O tema da substituição progressiva do latim pelas línguas românicas na documentação medieval desperta o interesse não só dos historiadores de uma maneira igual, como aos filólogos e aos que fazem sociolingüística histórica, mais ainda aos historiadores das línguas, pois fornece, nesse último caso, dados empíricos para sustentar a demarcação da periodização dos estágios mais antigos das línguas românicas. Assim, a definição do momento em que a língua portuguesa aparece escrita indica o limite inicial do primeiro período histórico do português – na acepção de documentado pela escrita – o denominado período arcaico. Na última década do século XIII, o rei d. Dinis legitimou a língua portuguesa como oficial do reino de Portugal, seguindo também nisso o exemplo de Afonso X de Leão e Castela, que no seu reinado principiado em 1252, estabeleceu o vernáculo castelhano como língua oficial de seu reino. Não obstante o português só ter sido oficializado no tempo de D. Dinis, a partir de 1255, na chancelaria do rei Afonso III de Portugal, a par do latim já se usava o português nos diplomas oficiais.

É certo que o chamado período arcaico apresenta um conjunto de características lingüísticas, representadas na documentação escrita remanescente, que fundamenta a oposição entre o português arcaico e o moderno, para outros designado como clássico. Na História do mundo ocidental, são considerados tempos modernos aqueles que se iniciam na passagem do século XV para o XVI. No caso da Península Ibérica e, no caso português, 1498 e 1500 são inícios de novos tempos, só então se cumpria o antigo projeto de inícios do século XV, com o triunfo sobre a rota marítima para as Índias e o vitorioso domínio da navegação no Atlântico Sul e conseqüente chegada ao futuro Brasil.

A história das línguas não acompanha a história sócio-política das sociedades que usam essas línguas. Seus compassos são distintos. Se um evento histórico significativo pode ser tomado como um marco delimitador de um período histórico para a história de uma sociedade, a língua dessa sociedade continuará o seu ritmo constitutivo e pode disso sofrer o efeito com o passar do tempo. Retornando ao cenário da codificação da gramática no Ocidente, podemos apreender que nos diferentes períodos as obras gramaticais diferiram, respondendo aos imperativos sociais. Disso podemos ter certeza quando levamos em consideração a gramática alexandrina Téchne Grammatiké, de Dionísio o Trácio. Nela o compositor conceituava a gramática como o estudo empírico dos usos correntes nas obras dos poetas e prosadores. No momento em que se codificou (término do século II, princípio do século I a.C.) a obra naturalmente tinha que se centralizar na linguagem predominante dos escritores, já que esse era o seu objetivo: evitar a perda dos cânones do grego clássico, então sob ameaça iminente de abandono dos usos helênicos por influência das línguas estrangeiras (“bárbaras”) que surgiam. A gramática de Dionísio era de caráter meramente normativo, detendo-se a estabelecer um padrão a ser seguido na escrita, e constava de seis partes (leitura e pronúncia correta, explicação de textos, explicação de palavras e coisas, etimologia, paradigmas de flexão ou analogia e crítica). Destarte, um dos pilares da tradição gramatical ocidental, e ainda hoje vigente, é a adoção da língua literária como referência para a construção abstrata que se denomina idioma nacional e que, sob muitos aspectos, se identifica ao conceito hoje em dia amplamente difundido de língua padrão. O modelo de descrição gramatical criado pelos gregos, conquanto útil, é insuficiente para descrever toda a complexidade de uma língua ou para dar conta da admirável diversidade estrutural das línguas no mundo.

O retardamento em constituir uma ciência organizada em termos de conteúdo e metodologia, voltada ao estudo da linguagem humana, deveu-se em muito à complexidade que ela envolve. E a Gramática Comparada, via de regra, nas primeiras décadas do século XIX, firmou-se mediante uma investigação em grupos sociais lingüisticamente diferentes e penetrando no estudo das línguas clássicas à busca da confrontação entre as línguas de origem comum. À obra de Franz Bopp sobre o sânscrito, o latim, o grego e o germânico, e aos trabalhos dos irmãos Friedrich e August Wilhelm Schegel confere-se o deflagrar da Lingüística histórico-comparativa no século XIX (Cavaliere, 2000: 65). Franz Bopp procurou, em línguas mais antigas, nas suas fontes mais primitivas, as raízes e pontos de interseção que esclarecessem a origem dos falares. Foi assim que surgiu sua Gramática Comparada, demonstrando o vínculo do sistema lingüístico indo-europeu. Bopp e outros lingüistas que contribuíram nas pesquisas comparativas tinham objetivos distintos dos comparatistas modernos, pois induzidos pelas idéias do século XVIII, buscavam chegar ao início das coisas, dar conta, de acordo com dados mais arcaicos possíveis, fornecidos pelo conjunto de línguas consideradas, da origem das formas lingüísticas em seu grau mais antigo. Foram assim, levados a ter em vista as fases sucessivas do desenvolvimento das línguas e a estabelecer hipóteses sobre a origem da linguagem humana. Estas análises ocuparam lugar respeitável na produção lingüística do século XIX. Com o método histórico-comparativo desenvolvido por Frederico Diez em sua Gramática das Línguas Românicas e Dicionário Etimológico das Línguas Românicas, novos estudos surgiram em nossas doutrinas gramaticais para explicar os diversos aspectos das línguas. Julio Ribeiro, Maximino Maciel, M. Said Ali, entre outros, não hesitaram em recorrer às lições do eminente filólogo.

Ademais, o século XIX vislumbra uma perspectiva psicológica no estudo da gramática. Como nos informa Mattoso Câmara (2006: 12):

A nova atitude se apoiava na filosofia romântica, que salientava os aspectos psicológicos, ou mesmo antilógicos, que as línguas revelam, como se via aparecer em todo o procedimento humano. Insistia-se na carga de emoção e fantasia, que atua nesse procedimento e também na comunicação lingüística.

Destarte, o lingüista alemão Hermann Paul, que defendia a aplicação dos princípios da psicologia no estudo da história da língua, considerava que “os organismos psíquicos descritos são no fundo os autênticos portadores da evolução histórica. O que verdadeiramente se fala não sofre qualquer evolução” (Paul apud Cavaliere, 2000: 31).

A Grammatica Portugueza (1881) de Julio Ribeiro inaugura entre nós as novas tendências européias. Procurando romper com o modelo baseado na tradição grego-latina o interesse se voltou para o uso do método histórico-comparativo, fato que lhe conferiu merecido reconhecimento por parte de Maximino Maciel: “Até pontos havia em que o Sr. Julio Ribeiro se adscrevia a transcrever, quasi ipsis verbis, para o vernáculo, as novas doutrinas dos autores extrangeiros, de Guardia, de Mason, de Bergmann”, além de conferir a Ribeiro “o merito de haver sido o primeiro a trasladar para o compendio didactico a nova orientação” (Maciel apud Cavaliere, 2000: 52-3).

 

A VISÃO SINTÁTICA DE JULIO RIBEIRO

“Pour les langues, la méthode essentielle est dans la comparaison et la filiation. – Rien n’est explicable dans notre grammaire moderne, si nous ne connaissons notre grammaire ancienne” (Littré apud Ribeiro, 1911: folha de rosto).

Pelo princípio da contextualização (Koerner, 1995: 17), a epígrafe utilizada como amparo doutrinário por Julio Ribeiro em sua Grammatica Portugueza (1911) ratifica que a obra é de caráter histórico-comparativa.

Julio Ribeiro não oculta sua consideração às teorias lingüísticas de Willian Dwight Whitney: “Abandonei por abstractas e vagas as definições que eu tomára de Burgraff: preferi amoldar-me ás de Whitney, mais concretas e mais claras” (Ribeiro: 1911: 1). É de Whitney em Essentials of English Grammar (London, 1887), inclusive, a concepção de gramática assumida por Ribeiro: “Grammatica é a exposição methodica dos factos da linguagem” (Ribeiro, 1911: 7).

Do uso dos termos exposição e factos, podemos depreender que a postura adotada não é normativa, porém descritiva. O próprio Ribeiro elucida melhor o assunto:

A grammatica, não faz leis e regras para a linguagem; expõe os factos della, ordenados de modo que possam ser aprendidos com facilidade. O estudo da grammatica não tem por principal objecto a correcção da linguagem. Ouvindo bons oradores, conversando com pessôas instruidas, lendo artigos e livros bem escriptos, muita gente consegue fallar e escrever correctamente, sem ter feito estudo especial de um curso de grammatica (1911: 7).

Cabia ao gramático descrever o que se entendia como norma culta escrita, ao discriminar como impróprios para a descrição proposta os fatos não-descritos, trazia consigo uma normatização tácita (Cavaliere, 2000: 47).

Nas palavras de Margarida Petter (2004: 19):

A tarefa do gramático se desdobra em dizer o que é a língua, descrevê-la e, ao privilegiar alguns usos, dizer como deve ser a língua. Na verdade, a conjunção do descritivo e do normativo efetuada pela gramática tradicional opera uma redução do objeto de análise que, de intrinsecamente heterogêneo, assume uma só forma: a do uso considerado correto da língua.

O projeto de fazer da gramática um registro do estado do português escrito e falado pelas pessoas cultas da época, levou Julio Ribeiro a registrar numerosas observações, além de oferecer seu próprio testemunho como exemplo dos fatos lingüísticos. Em face dessa atitude, de extensa aplicação na lingüística descritiva, obteve injusta crítica de alguns que a ele se opunham, como Maximino Maciel: “...E, quanto à sintaxe, ao invés de exemplos hauridos aos monumentos literários, dava-lhos ele próprio, quase sempre” (Maciel apud Bechara, 2006: 15).

Maciel na sua Grammatica Descriptiva (1914), “baseada nas doutrinas modernas”, forneceu-nos seguro painel das influências estrangeiras na gramática brasileira, encontradas no rodapé de cada página, onde faz referência às fontes que consultou. Assegura que “assim procedemos, porque a probidade scientifica aconselha citar-se um autor, desde que lhe estejamos de accordo com as opiniões attinentes a um ponto, para mostrarmos as fontes a que recorremos”. E quanto à sintaxe sanciona:

Ainda nos esforçamos por estudar a lingua nos seus monumentos literarios, consolidando-lhe por isso os factos e a doutrina com exemplos selectos, hauridos aos principaes escriptores que se nos afigurou poderem servir de normas á syntaxe da lingua (Maciel, 1914: prólogo).

A descrição gramatical em Ribeiro constitui-se da bipartição lexeologia e syntaxe, aquela “considera as palavras isoladas, já em seus elementos materiaes ou sons, já em seus elementos morphicos ou fórmas”, esta “considera as palavras como relacionadas umas com as outras na construcção de sentenças, e considera as sentenças no que diz respeito á sua estructura, quer sejam simples, quer se componham de membros ou de clausulas” (Ribeiro, 1911: 3, 221). Assim, apreendemos que a palavra ocupa o núcleo das atenções, na lexeologia e na sintaxe. Não obstante esta última constitua a segunda parte do raciocínio gramatical, na prática não vai além de uma dilatação da primeira.

Da gramática inglesa Ribeiro importou a concepção de clausulas e elucida: “Chamam-se clausulas os membros da sentença, quando são tão connexos entre si que um depende do outro e até o modifica” (Ribeiro, 1911: 223). Maximino Maciel na Grammatica Descriptiva (1914: 326-7) adotaria, em detrimento de clausulas, phrases, setenças ou orações o termo proposições, “por ser este mais geral e estar mais de accordo com as theorizações da logica e simplificar mais a aprendizagem”, às quais se relacionavam três outros conceitos: coordenação, quando independentes entre si, subordinação, quando dependentes entre si e coordenação e subordinação, quando duas ou mais proposições, além de independentes ou coordenadas entre si se acham cada uma delas desenvolvidas por proposições subordinadas.

Plano sinótico da Grammatica Portugueza, de Julio Ribeiro (1911).

Outra questão notável que cumpre destacar reside nos casos abaixo analisados por Julio Ribeiro:

a) A idéia que se liga ao sujeito: chama-se predicado propriamente dito.

b) O laço que prende o predicado propriamente dito ao sujeito: chama-se copula.

Pedro ama, - ama decompõe-se em am thema, e a terminação: o thema am fica tido como predicado propriamente dito, e a terminação a, como copula (Ribeiro, 1911: 222-3).

A morfossintaxe, consolidada a partir da segunda metade do século XX, bem antes, porém, já se podia depreender na análise supracitada de Julio Ribeiro como conexão das categorias gramaticais às funções sintáticas na sentença. Fê-lo realizando um dos primeiros casos de análise morfossintática. Assim, Ribeiro considera um ponto de atrelagem entre a morfologia e a sintaxe: “a copula grammatical de todas as sentenças consiste na flexão do verbo” (Ribeiro, 1911: 223).

Em sua proposta descritiva Ribeiro (1911: 223) subdivide a sintaxe em léxica e lógica, aquela referente ao estudo das “palavras como relacionadas umas com as outras na construcção de sentenças”, esta ocupada do estudo das “sentenças no que diz respeito á sua estructura, quer sejam ellas simples quer sejam ellas compostas”, isto é, a primeira ocupa-se das palavras inter-relacionadas na oração, a segunda da estrutura das orações. Cumpre ressaltar que na proposta descritiva da sintaxe Ribeiro analisa a relação e não a função sintática. Na estrutura de Ribeiro interatuam vocábulos, não sintagmas. O que se apresenta é uma relação direta, termo a termo, em forma de:

1) Relação subjetiva: A do sujeito para com seu predicado.

2) Relação predicativa: Em que o predicado de uma sentença está para com seu sujeito.

3) Relação atributiva: A da palavra que representa alguma qualidade com a que representa a coisa.

4) Relação objetiva: Em que está para com um verbo de ação transitiva o objeto a que se dirige, ou sobre que exerce essa ação.

5) Relação adverbial: A que vincula uma dada palavra a um adjetivo, verbo ou a um advérbio.

Para Ribeiro, nas sentenças: Pedro é rico (p. 224), está em relação subjetiva; O menino corre (p. 225), o verbo corre está em relação predicativa com o sujeito menino; A casa de Pedro (p. 225), o substantivo precedido da preposição de está em relação atributiva com casa; em O cão levantou a cabeça (p.226), o substantivo cabeça está em relação objetiva para com o verbo levantou; na sentença Paulo deu-me um livro (p. 226), o pronome pessoal incluído como complemento verbal está em relação objetiva – adverbial.

Além disso, Julio Ribeiro (1911:257-8) delineia concisa anotação sobre a presença do emprego pleonástico dos pronomes substantivos em relação subjetiva, objetiva, adverbial e objetiva adverbial em várias línguas românicas, como se observa a seguir:

Estes processos pleonasticos, que contribuem muito para a clareza e elegancia da expressão, encontram-se em varias linguas romanicas, em Latim barbaro, em Latim classico, em Grego moderno, em velho Alto Allemão, em Inglez, em Dinamarquez, em Sueco (Ribeiro, 1911: 259).

E ainda sobre a questão do pronome substantivo sujeito de um verbo no infinito, dependente de um verbo no finito, posto em relação objectiva:

Esta syntaxe, commum a varias linguas romanicas, é tomada directamente do Latim, em o qual o sujeito do verbo no infinito vai para o accusativo. E’ erro vulgar no Brazil usar-se em casos taes da relação subjectiva: diz-se, por exemplo: Vi ELLE caminhar ás pressas. – Deixa ELLE ir (1911: 262).

Estes fragmentos constituem exemplos significativos do bom agasalho que se deu ao método histórico-comparativo no Brasil. Produtivo não somente em trabalhos de pesquisa, mas ainda em compêndios gramaticais, o referido método favoreceu o critério de preocupação com a evolução da língua, fato que se pode corroborar nas palavras do próprio Julio Ribeiro: “Nós temos mais de estudar as fórmas varias porque passou a nossa lingua, temos de comparar essas fórmas com a fórma actual, para que melhor entendamos o que esta é e como veiu a ser o que é” (Ribeiro, 1911:1, 2).

Por fim, a produção gramatical brasileira a partir de Julio Ribeiro, em meio às alterações de observação e reflexão sobre o estudo do vernáculo, reflete um diálogo tanto com a tradição grego-latina, quanto com a corrente científica. Assim, vivia-se um momento de transição e mudanças, não só de âmbito intelectual, mas ainda político e social, que de certa maneira, a língua não poderia deixar de registrar. Consideremos, ainda, o valor que se deve dar à gramática científica no cenário lingüístico-historiográfico brasileiro, pois:

O que se percebe de notável, (...) é que o elenco de obras filológicas produzidas a partir do trabalho inaugural de Julio Ribeiro cria os fundamentos da moderna gramática brasileira, nos moldes em que, mutatis mutandis, até hoje se organizam. (Cavaliere, 2000: 55)


 

BIBLIOGRAFIA

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