OTHON MOACYR GARCIA
Um singelo depoimento[1]

Maximiano de Carvalho e Silva (UFF e LLP)

 

A direção da revista Confluência dedica este número com toda a razão à figura do professor, filólogo e crítico literário Othon Moacyr Garcia, o festejado autor de livros e artigos de extraordinário valor, entre os quais sobressai pela sua singularidade a obra editada pela Fundação Getúlio Vargas com o título de Comunicação em Prosa Moderna, cuja primeira edição data do ano de 1967, e cuja edição mais recente – a 26ª – é de 2006, o que atesta o grande interesse com que o livro tem sido recebido pelos leitores de todo o país e mesmo do estrangeiro.

Othon Moacyr Garcia nasceu na cidade de Mendes, Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1912, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 2002. Bacharel em Direito e licenciado em Letras Clássicas em 1937 na primeira turma da Universidade do Distrito Federal (com sede no Rio de Janeiro ainda capital da República), tendo feito cursos de pós-graduação em Universidade norte-americana (Educação e Literatura), foi na vida profissional acima de tudo um professor e pesquisador de altos méritos, que lecionou no Rio de Janeiro, a cidade em que passou a maior parte de sua longa vida, em três dos mais prestigiosos estabelecimentos públicos e particulares de ensino: o Colégio Pedro II, mantido pelo governo federal, o Instituto de Educação, do Rio de Janeiro, e a Escola Brasileira de administração Pública, da Fundação Getúlio Vargas. Apesar da sua modéstia e simplicidade, sempre foi tido na mais alta conta pelos colegas de magistério, e se elegeu membro da Academia Brasileira de Filologia e da Sociedade Brasileira de Romanistas como reconhecimento do valor dos seus trabalhos de filólogo, lingüista, ensaísta e crítica literário. Na Academia, ocupou a cadeira de n° 21, de que é patrono o filólogo José Júlio da Silva Ramos e de que foi primeiro titular o seu antigo professor de Língua Portuguesa na UDF e grande Mestre Álvaro Ferdinando de Sousa da Silveira.

Destacou-se Othon Moacyr Garcia entre os seus contemporâneos com a publicação de uma série de artigos e livros em que revelou extraordinária capacidade e originalidade na interpretação de textos literários. Infelizmente, não tendo tido a merecida divulgação, esses trabalhos são quase desconhecidos entre os atuais estudiosos e professores de língua e de literatura, mesmo nos cursos superiores de Letras, pois ficaram dispersos em revistas especializadas ou figuram em publicações hoje inacessíveis ao comum dos leitores, como aliás acontece com tantas outras da nosso bibliografia filológica, lingüística e literária.

São de sua autoria os seguintes artigos e livros, relacionados na nota “A Respeito do Autor” da primeira edição de Comunicação em Prosa Moderna e no verbete sobre ele no segundo volume de Biblos – Enciclopédia Verbum das Literaturas de Língua Portuguesa (Lisboa, Editorial Verbo, 1997): Esfinge Clara (Rio de Janeiro, Livraria São José, 1955); Luz e Fogo no Lirismo de Gonçalves Dias (Rio de Janeiro, Livraria São José, 1956); A Janela e a Paisagem na Obra de Augusto Meyer (artigo na Revista Brasileira de Filologia, Rio de Janeiro, 1958); A Página Branca e o Deserto: Luta pela Expressão em João Cabral de Melo Neto (artigos nos números 7, 8, 9 e 10 da Revista do Livro, MEC-INL, 1958-1959); Cobra Norato: O Poema e o Mito (Rio de Janeiro, Livraria São José, 1962); Exercício de Numerologia Poética: Paridade Numérica e Geometria do Sonho em um Poema de Cecília Meireles (artigo na revista Vozes, Petrópolis, outubro de 1978).

Além de escrever esses trabalhos, dedicou-se Othon Moacyr Garcia à atividade de tradutor, tendo prestado relevantes serviços de revisor de traduções à editora Livraria do Globo, em Porto Alegre, e à atividade de lexicógrafo, na editoria do Pequeno Dicionário Enciclopédico Koogan-Larousse, ao lado de C. H. da Rocha Lima e sob a direção de Antônio Houaiss (1ª edição; Rio de Janeiro, Editora Larousse do Brasil, 1979).

Tive a honra de trabalhar com Othon Moacyr Garcia de 1956 a 1970, como integrante da equipe organizada pelo inesquecível Professor Rocha Lima, então catedrático de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II, para ministrar aulas de Português do curso secundário no antigo Internato do referido educandário, situado no Campo de São Cristóvão. Conheci-o de perto, acompanhei atentamente a sua atuação, e tornei-me admirador não apenas do profundo conhecedor dos mistérios da nossa língua que ele era, do professor exemplar no cumprimento das suas obrigações docentes, mas acima de tudo da retidão de caráter que o caracterizava, da maneira singela e firme com que se conduzia no exercício dos seus encargos. No trato comum, vi-o enfrentar com galhardia os problemas das suas deficiências físicas mais agudas – a deficiência auditiva e a deficiência visual – que aceitava com uma resignação de santo, procurando compensá-las para não se isolar da comunicação com a família e os amigos. Sou pois uma das testemunhas dos pesados sofrimentos por que passou, até o fim da vida, amparado pelo heroísmo de sua esposa Sílvia, e pelo devotamento de alguns amigos e colegas de velha data, como os seus amigos especiais Rocha Lima e Antônio de Pádua, também de tão saudosa memória,ligados e marcados principalmente pelo magistério de Sousa da Silveira e de Antenor Nascentes desde os tempos da Universidade do Distrito Federal, de que foram brilhantes alunos. Era comovente ver que Antônio de Pádua, inclusive, sempre encontrou tempo para visitá-lo com regular freqüência na residência da Rua Cosme Velho, no Bairro de Laranjeiras.

N antigo Internato do Colégio Pedro II, Rocha Lima mantinha junta e solidária na realização dos planos de trabalho da cadeira de Língua Portuguesa aquela equipe de que fazíamos parte Othon Moacyr Garcia, que ele elegeu coordenador, Augusto Rainha, José Dias, Carlos Eduardo Falcão Uchôa, Arlindo Drummond, Hilda Reis Capucci, Raimundo Barbadinho e eu próprio, todos imbuídos das suas responsabilidades. Era uma equipe que se distinguia entre várias outras por não admitir o catedrático qualquer interferência em seu trabalho por parte da alta direção da Casa, o que nos conferia segurança para o desempenho das nossas tarefas, executadas com a preocupação de preservar o bom nome da instituição secular. Entre os seus integrantes, no final do ano, eram escolhidos os que atuariam na penosa correção das provas do exame de admissão, em que se procurava selecionar os melhores candidatos sem a indébita intromissão de um tipo de protecionismo de caráter pessoal e discriminatório infelizmente existente no ensino de todos os níveis, como bem se sabe. Rocha Lima sempre assegurava a posição de relevo ao coordenador que escolhera, mas Othon Moacyr nunca se apresentou diante de nós senão como aquele companheiro e amigo mais velho e mais experimentado, que gostava de ouvir as nossas opiniões sobre o estudo e o ensino da língua, com toda a naturalidade.

Nessa equipe em que trabalhávamos sempre atentos às recomendações de Rocha Lima, modelo de bom professor, não era a mesma a visão de como deve ser conduzido o estudo e o ensino da língua portuguesa. Os que em nossa formação superior tivéramos o privilégio dos ensinamentos e da orientação de Sousa da Silveira víamos a língua como a expressão mais alta da cultura de um povo, e tínhamos por isso a preocupação de não reduzir o ensino da mesma ao ensino gramatical como era mais comum entre os nossos colegas. Esse grupo de orientação culturalista não dispensava nas aulas os exercícios de leitura, de redação e de expressão oral, e incentivava os alunos a ler em casa algumas obras-primas da literatura brasileira e até mesmo da literatura portuguesa, como era possível fazer naquela época em que a educação e os seus agentes, os professores, não estavam tão desprestigiados como nos dias atuais.

Othon Moacyr Garcia, aluno da primeira turma de Sousa da Silveira na Universidade do Distrito Federal, entre os anos de 1935 e 1937, desde então pôde perceber mais nitidamente, como o velho Mestre ensinara numa conferência de 1922 sobre a língua nacional e o seu estudo, que era preciso levar os discentes ao conhecimento dos múltiplos recursos que a língua oferece para a mais adequada expressão do pensamento. Tais noções teria eu ensejo de assimilar anos depois, ao me tornar aluno do mesmo Sousa da Silveira, já na Faculdade Nacional de Filosofia, entre os anos de 1944 e 1946, no Curso de Letras Neolatinas. Nossas posições em relação ao papel que deveria ser reservado ao ensino gramatical, sem dúvida importante, mas como meio de proporcionar visão mais nítida do sistema fonológico, morfológico e sintático da língua, e não um fim em si mesmo, se firmaram não só com os ensinamentos do autor das Lições de Português, mas também com as de outros filólogos e lingüistas de que nos tornamos leitores constantes, entre os quais no meu caso particular destaco as figuras de Silva Ramos, Said Ali, Serafim da Silva Neto, Gladstone Chaves de Melo e Joaquim Matoso Câmara Júnior. Com este último aprendera os fundamentos da teoria da linguagem e a aplicação dos mesmos ao estudo das línguas. Os conhecimentos básicos das outras ciências da linguagem – principalmente de Filologia Portuguesa, Crítica Textual, História e Teoria da Literatura – iluminavam as nossas aulas de língua portuguesa. Líamos autores marcados pela orientação culturalista, para os quais era fundamental no estudo da língua a visão histórica como base de tudo, como forma de entender a variedade dos usos lingüísticos e ter a percepção de que o fenômeno lingüístico está intimamente relacionado com as demais manifestações histórico-culturais e artísticas do espírito humano.

Foi curioso que na década de 60 do século XX, professores de ensino secundário do Colégio Pedro II, Othon Moacyr Garcia e eu tivéssemos tido, isoladamente um do outro, a mesma preocupação de dar ao estudo e ao ensino do português uma orientação diversa da que era habitual. Ambos nunca negamos o valor do ensino gramatical e da análise sintática de modo especial, mas nos insurgimos contra a ênfase exagerada e até a absoluta prioridade que a ele era dada, com o abandono da prática dos exercícios de redação, dos exercícios de expressão oral e da leitura dos bons autores, sem os quais se sonega aos alunos a oportunidade de aprender a pensar, a expressar com correção e arte o pensamento, a falar com mais clareza e fluência. Othon Moacyr Garcia reuniu os resultados de suas experiências em sala de aula no livro pioneiro a que ele deu o título de Comunicação em Prosa Moderna – Aprenda a Escrever, Aprendendo a Pensar, cuja primeira edição data de 1967. Quanto a mim, procurei dar idéia de como entendo o estudo e ensino da língua entrosado com o ensino da literatura, das outras artes, da história, da geografia, das ciências sociais e de outras ciências no livro que me foi encomendado e publicado no mesmo ano de 1967 pela Campanha Nacional de Material de Ensino, do Ministério da Educação e Cultura, com o título de Cadernos MEC – Português 3. Tive pois a honra de figurar modestamente ao lado de Othon Moacyr Garcia entre os que, seguidores das diretrizes traçadas pelos nossos grandes Mestres no Curso de Letras, se empenhavam em transmitir aos alunos uma mensagem renovadora no que diz respeito ao ensino da língua portuguesa como a mais alta expressão da cultura luso-brasileira.

Tenho em minha biblioteca particular duas edições de Comunicação em Prosa Moderna que me foram oferecidas pelo autor:a primeira,de 1967; e a sétima, de 1978, publicada pela editora da Fundação Getúlio Vargas. Nesta sétima edição lê-se a seguinte “Nota do editor”:

Ao lançar esta edição de Comunicação em Prosa Moderna, a Fundação Getúlio Vargas entrega ao publico leitor uma obra que se pode considerar revolucionária no campo da expressão da língua portuguesa. As edições anteriores esgotaram-se rapidamente, demonstrando com isso a lacuna existente no assunto e a importância que assume dia a dia o estudo do uso de nossa língua por abordagem diferente da habitual.

A comunicação que o autor consegue com o leitor talvez seja o ponto-chave de seu sucesso junto às camadas especializadas ou não. A desmitificação que faz de assuntos que se apresentam tradicionalmente intrincados em gramáticas dá-nos uma idéia do que é a obra: moderna, prática, necessária.

No que denominou “Explicação necessária” Othon Moacyr Garcia deixara bem claros os seus propósitos:

Este livro, devemo-lo aos nossos alunos, aqueles jovens a quem, no decorrer de longos anos, temos procurado ensinar não apenas a escrever mas principalmente a pensar – a pensar com eficácia e objetividade, e a escrever sem a obsessão do purismo gramatical mas com a clareza, a objetividade e a coerência indispensáveis a fazer da linguagem, oral ou escrita, um veículo de comunicação e não de escamoteação de idéias. Estamos convencidos – e conosco uma plêiade de nomes ilustres – de que a correção gramatical não é tudo – mesmo porque, no tempo e no espaço, seu conceito é muito relativo – e de que a elegância oca, a afetação retórica, a exuberância léxica, o fraseado bonito, em suma, todos os requintes estilísticos hedonistas e sibaríticos com mais freqüência falseia a expressão das idéias do que contribuem para a sua fidedignidade. É principalmente por isso que neste livro insistimos em considerar como virtudes primordiais da frase a clareza e a precisão das idéias (e não se pode ser claro sem se ser medianamente correto), a coerência (sem coerência não há legitimamente clareza) e a ênfase (uma das condições da clareza, que envolve ainda a elegância sem afetação, o vigor, a expressividade e outros atributos secundários do estilo).

A correção – não queremos dizer purismo gramatical – não constitui matéria de nenhuma das lições desta obra, por uma razão óbvia: Comunicação em Prosa Moderna não é uma gramática, como não é tampouco um manual de estilo em moldes clássicos ou retóricos. Pretende ser, isto sim, uma obra cujo principal propósito é ensinar a pensar, vale dizer, a encontrar idéias, a coordená-las, a concatená-las e a expressá-las de maneira eficaz, isto é, de maneira clara, coerente e enfática. Isto quanto à comunicação.

Não desejando que pairasse nenhuma dúvida sobre a importância que atribuía aos estudos gramaticais e neles à análise sintática, assim se exprimiu numa “Advertência” a que deu o devido destaque:

A análise sintática tem sido causa de crônicas e incômodas enxaquecas nos alunos do ensino médio. É que muitos professores, por tradição ou por comodismo, a têm transformado no próprio conteúdo do aprendizado da língua, como se aprender português fosse exclusivamente aprender análise sintática. O que deveria ser um instrumento de trabalho, um meio eficaz de aprendizagem, passou a ser um fim em si mesmo. Ora, ninguém estuda a língua só para saber o nome, quase sempre rebarbativo, de todos os componentes da frase.

Vários autores e mestres têm condenado até mesmo com veemência o abuso no ensino da análise sintática.

Para que os leitores deste artigo que porventura não conheçam o livro Comunicação em Prosa Moderna tenham noção da riqueza do seu conteúdo, quero aqui reproduzir resumidamente o sumário da 7ª edição, e dizer aos interessados que a Fundação Getúlio Vargas continua a lançar novas edições do mesmo:

Primeira Parte – A Frase. Advertência. // Cap. I – Estrutura sintática da frase. / Processos sintáticos. / Organização do período. / Como indicar as circunstâncias e outras relações entre as idéias. // Cap. II - Feição estilística da frase. // Cap. III – Discursos direto e indireto. // Cap. IV – Discurso indireto livre ou semi-indireto. □ Segunda Parte – O Vocabulário. Cap. I – Os sentidos das palavras. // Cap.II - Generalização e especificação – O concreto e o abstrato. // Cap. III – Famílias de palavras e tipos de vocabulário. // Cap. IV – Como enriquecer o vocabulário. // Cap. V – Dicionários. □ Terceira Parte – O Parágrafo. Cap. I – O parágrafo como unidade de composição. // Cap. II – Como desenvolver o parágrafo. // Cap.III – Parágrafo de descrição e parágrafo de narração. // Cap. IV – Qualidades do parágrafo e da frase em geral. □ Quarta parte – Eficácia e Falácias da Comunicação. Cap. I – Eficácia.//Cap. II – Falácias. □ Quinta parte – Pondo Ordem no Caos. Modus sciendi. □ Sexta Parte – Como Criar Idéias. A experiência e a pesquisa. // Pesquisa bibliográfica. // Como tomar notas. / Outros artifícios para criar idéias. Sétima Parte – Planejamento. Cap. I – Descrição. // Cap. II – Narração. // Cap. III – Dissertação. // Cap. IV - Argumentação. Oitava Parte – Redação Técnica. Cap. I – Descrição técnica. // Cap. II – Relatório administrativo. // Dissertações científicas: teses e monografias. Nona Parte – Preparação dos Originais. Normalização datilográfica e bibliográfica. Décima Parte – Exercícios. 1. A frase. // 2. O vocabulário. // 3. O parágrafo. // 4. Eficácia e falácias do raciocínio. // 5. Pondo ordem no caos. // 6. Exercícios de redação: temas e roteiros.

Pelos tópicos acima e pela leitura dos ensinamentos do autor, verifica-se que Othon Moacyr Garcia realmente se valeu do conhecimento da teoria da análise sintática como “um instrumento de trabalho, um meio eficaz de aprendizagem”, e também de muitos outros conhecimentos gramaticais e de teoria literária. O fato de estar o seu livro numa 26ª edição é na verdade a maior homenagem que recebeu pela sua primorosa atuação docente. Faço votos de que algum editor se lembre agora de reunir e publicar a matéria dos seus outros livros e de artigos dispersos em um volume ou mais, não sei bem, pois neles há preciosas lições da abordagem dos textos literários para mais valorizá-los, merecedoras de atenção especialmente por parte dos que organizam e redigem monografias, dissertações e teses na conclusão dos cursos superiores de Letras sem ter diante dos olhos bons modelos a serem levados na devida consideração.


 

[1] Extraído da Confluência – Revista do Instituto de Língua Portuguesa, n° 32 – 2° semestre de 2006. Rio de Janeiro: [Lucerna], 2007, p. 27-33.