Considerações estéticas
acerca da obra de Lima Barreto

Monique Lopes Inocencio

 

Um dos grandes “luminares” do período chamado, de forma problemática, de Pré-modernismo foi o escritor carioca Afonso Henriques de Lima Barreto (1881 – 1922). Uma das grandes contribuições que o autor nos legou, e é justamente do que pretendemos falar aqui, foi o conjunto de inovações lingüísticas que ele incorporou em seus escritos, sobretudo nos ficcionais.

Destas inovações talvez a que mais mereça a nossa atenção é a incorporação de variações diastráticas na fala de notáveis de seus personagens. O autor buscou na fala de pessoas simples, com as quais ele conviveu e pode observar com um olhar crítico, uma forma de democratizar a literatura, e dar voz a uma parcela da população a qual a belle èpoque carioca não era capaz de reconhecer.

Longe de querer abraçar uma linha scioculturalista, que amarra o texto limabarreteano a uma esfera unilateral de diálogo com a questão da marginalidade, queremos aqui trazer uma contribuição para o estudo deste autor, como um precursor de muitas das concepções estilísticas atribuídas pela crítica em geral aos escritores do movimento modernista.

Para exemplificar alguns modelos de construção ficcional que o autor inaugura, citamos a questão do diálogo com o conceito romântico de nacionalidade. Sabemos que foi através do uso complexo da linguagem que o Romantismo brasileiro forjou imagens quase pictóricas para construir um ideal de Nacionalidade e de Pátria. A grande tríade Palavra, País e Paisagem foi, portanto, o mecanismo de elaboração e enunciação de nossa brasilidade.

Da mesma forma, Lima Barreto utilizou a própria linguagem literária, a fim de dialogar com a tradição romântica, apontando, por vezes com ironia mordaz, o que havia de suspeito nesta suposta nação ideal romantizada. A expressão máxima deste diálogo é o célebre romance Triste fim de Policarpo Quaresma, que tem como abordagem fundamental a crítica lúcida e fundamentada à esta problemática idéia de país maravilhoso, belo, acolhedor e pitoresco, presente em romances como O Guarani, Iracema, entre outros, e na poesia romântica, sobretudo do período chamado “Indianista”.

A estruturação de Triste fim... é bastante peculiar, trazendo uma série de elementos que vão dialogar com a tradição. O próprio título do romance já é, por si só, bastante sugestivo, já que ele foi publicado, assim como a maioria das obras na época, inicialmente sob a forma de folhetins, e, contrariando uma das características inerentes deste gênero, que é o ocultamento do desfecho da história, a fim de prender o leitor, incentivando-o a continuar a leitura, Lima já anuncia o desfecho de seu personagem: que seria um “triste fim”, como o próprio título evidencia.

Na construção da narrativa, o autor se vale de inúmeros recursos para estabelecer contrapontos entre a proposta de análise do país, a partir de seus dilemas sociais, econômicos, culturais, a até literários. Vemos que a proposta de Lima nada tem a ver com a análise que se costumava fazer, no Romantismo, a partir de uma suposta exuberância que, abaixo de uma pintura de paisagem maravilhosa, ficavam ocultados o homem e seus problemas.

E a maneira com a qual Lima vai dialogar com esta tradição vai ser de uma forma que poderíamos considerar meta-lingüística, já que ele parte das próprias imagens tecidas pelo intelectual romântico, acerca da questão do nacional, para ironizar estas mesmas imagens. Dentre estas merecem destaque a construção utópica da paisagem, a valorização exacerbada dos elementos constituintes da cor-local, que, em última instância, vão tecer o ufanismo, característica marco do personagem central do romance.

Uma das grandes preocupações do escritor foi ainda a acessibilidade de seus textos, como ele mesmo declara em seu livro Impressões de leituras:

Seria melhor que me dirigisse ao maior número possível, com o auxílio de livros singelos, ao alcance das inteligências médias, com uma instrução geral, de que gastar tempo com obras só capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados na sua inteligência, pelas tradições de escolas e academias e por preconceitos livrescos e de autoridade. (Barreto, 1956: 223.)

Sabemos que o que Lima está chamando de “textos singelos” não são singelos no sentido ingênuo e / ou despreocupado do termo, mas aponta para uma proposta de construção literária que estivesse ao alcance de pessoas comuns, e não restrito aos letrados e pertencentes à elite cultural.

Voltando a uma questão levantada no início deste texto, que é a da inserção que o autor fez, em seus textos de ficção, sobretudo nos romances, de formas de expressão absolutamente coloquiais e variações diatópicas e diastráticas da língua. Poderíamos exemplificar com inúmeras passagens, das quais exemplifico com o diálogo entre a afilhada do protagonista, Olga, do romance e seu empregado no sítio “Sossego”:

—Bons dias, "sá dona".

—Então trabalha-se muito, Felizardo?

—O que se pode.

—Estive ontem no Carico, bonito lugar... Onde é que você mora, Felizardo?

—É doutra banda, na estrada da vila.

—É grande o sítio de você?

—Tem alguma terra, sim senhora, "sá dona".

—Você por que não planta para você?

—"Quá sá dona!" O que é que a gente come?

—O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.

—"Sá dona tá" pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto planta cresce, e então? "Quá, sá dona", não é assim.

Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no pica- dor e, antes de desferir o machado, ainda disse:

—Terra não é nossa... E "frumiga"?... Nós não "tem" ferramenta... isso é bom para italiano ou "alamão", que governo dá tudo... Governo não gosta de nós... (Barreto, 1999: 121)

O diálogo insere claramente a fala de um habitante do que até então seria roça, interior, mas que, apesar de fugir aos rígidos preceitos da gramática normativa, transmite com clareza a idéia que pretende passar. O autor está seguindo o princípio que ele tão bravamente defendeu: o da primazia pela clareza do texto, em detrimento da correlação com as normas lingüísticas dos puristas. Mais uma vez recorro às palavras do próprio Lima, em Impressões de Leitura, para apontar este ponto de vista do autor:

Já houve, entre nós, o pedantismo dos gramáticos que andou esterilizando a inteligência nacional com as transcendentes questões de saber se era 'necrotério' ou 'necroteca', 'telefone' ou 'teléfono' (...) Não me preocupo com essas cousas transcendentes de gramática e deixo a minha atividade mental vagabundear pelas ninharias do destino da Arte e das categorias do pensamento. (Barreto, 1953: 116)

A questão do trabalho novo com a linguagem não parte só de uma proposta meramente estética do autor, mas de uma preocupação com a relação direta e tênue entre língua e sociedade. Enquanto intelectual que refletiu as questões de seu tempo, ele interrogou e examinou o problema da linguagem e da gramática, tomadas como instrumento de repressão e opressão, destinadas a não permitir que os homens se expressassem plenamente e não convivessem harmoniosamente.

Com efeito, estas observações têm plena correspondência na realidade lingüística, que reconhece a manifestação de poder por meio do domínio de uma linguagem culta, mas principalmente nas idéias e opiniões de Lima Barreto, que não poucas vezes enxergou a linguagem apurada como índice de um poder constituído. Por isso, recusou-se a empregar uma linguagem purista. Como resultado preliminar do quadro aqui esboçado, poderíamos afirmar, sem perigo de incorrer em erro crasso, que Lima Barreto estava mais preocupado em estabelecer alguns parâmetros gramaticais que pudessem apontar para a conformação de uma língua mais próxima da realidade cotidiana do Brasil. Lima Barreto coloca-se, assim, como um defensor exaltado da absoluta liberdade gramatical.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: PubliFolha, 1997.

––––––. triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro:Record, 1999.

––––––. Diário Íntimo. São Paulo: Brasiliense, 1956.

––––––. Impressões de Leitura. São Paulo: Brasiliense, 1956.

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3ª ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.

FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. Trincheiras de sonhos: Ficção e cultura em Lima Barreto. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

––––––. Lima Barreto e o fim do sonho republicano. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

LEITE, Marli Quadros. Metalinguagem e discurso: a configuração do purismo brasileiro. São Paulo: Humanitas, 1999.

NEEDELL, Jeffrey. A Belle Époque Tropical. São Paulo: Brasiliense 1993.

ORLANDI, Eni Puncinelli. (org.). História das idéias Lingüísticas: Construção do Saber Metalingüístico e Constituição da Língua Nacional. Campinas: Pontes/Unemat, 2001.

PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto: o crítico e a crise. Rio de Janeiro: Cátedra, 1976.

SILVA, Maurício. Confrontos Lingüísticos no Pré-Modernismo Brasileiro: Lima Barreto versus Coelho Neto. Anais do III CNLF. Disponível na página               www.filologia.org.br/anais/anais%20III%20CNLF%2012.html