CAPÍTULO I
1.
DO MÉTODO
NO ESTUDO DO ESTILO
... a beleza
aparente que reflete a beleza interior ...
(Rui Barbosa, 1920)
1.1.
Língua e estilo
Os modernos métodos de pesquisa estilística têm por base
aquela distinção fundamental estabelecida por Ferdinand de Saussure,
entre langue (a cujo domínio pertence a gramática) e parole
(terreno onde se encontra o estilo).
A langue é um sistema: um conjunto organizado e
opositivo de relações. Fato social por excelência, é aquele acervo de
sons, estruturas vocabulares e processos sintáticos que a sociedade
impõe a todos os membros de uma comunidade linguística.
Em suas
grandes linhas, mora virtualmente em cada cérebro, “ou plus
exactement dans les cerveaux d’un ensemble d’individus; car la langue
n’est complète dans aucun, elle n’exist parfaitement que dans la masse.”
(SAUSSURE, 1922, p. 30) Do equilíbrio de duas tendências
resulta sua estabilidade pelos tempos fora: de um lado, a
diferenciação, força natural, espontânea, desagregadora; de outro, a
unificação, força coercitiva, disciplinante, conservadora “C’est
du jeu de ces deux tendences que résultent les diverses sortes de
langues, dialectes, langues spéciales, langues communes ...” (VENDRYES,
1921, p. 287)
À medida que se vai assenhoreando dos recursos da langue,
cada indivíduo, culto ou ignorante, a executa à sua maneira, de acordo
com o seu temperamento, com a sua sensibilidade: um é aparatoso,
verbalista, ama a riqueza das imagens, a veemência das antíteses, a
audácia dos adjetivos extravagantes; outro é sóbrio, cheio de pudor e
delicadeza, prefere o desataviado da expressão direta, a singeleza dos
vocábulos comuns. Eis a parole.
Enquanto a langue, aspecto social e coletivo da
linguagem, exterior, portanto, ao indivíduo, “n’existe qu’en vertu d’une
sorte de contract passé entre les membres de la communauté”
(SAUSSURE, 1922, p. 31), a parole se nos apresenta como um ato
individual de vontade e inteligência, segundo o qual o ser falante “utilise
le code de la langue em vue d’exprimer as pensée personelle ...” (Ib.)
A contribuição pessoal que se possa revelar na parole, ao lado
da contribuição tradicional da langue, é o estilo, que Sêneca já havia
definido como “o espelho da alma”.
Sem dúvida,
Le langage ne connaît pas de
création "ex nihilo"; un examen un peu attentif fait toujours trouver
dans la langue existante les modèles qui ont servi pour les formes
nouvelles. Mais c’est précisément cela qui est intéressant; ce sont ces
créations qui nous font comprendre le mécanisme du langage.
(BALLY, 1926, p. 45)
No equilíbrio de Machado de Assis e nos arroubos equatoriais
de Castro Alves, encontramos uma só e mesma língua portuguesa: o
mesmo material sonoro, o mesmo sistema de flexões nominais e verbais, os
mesmos princípios de concordância, regência e ordem das palavras na
frase, as mesmas preposições, conjunções e artigos. No entanto, dentro
da margem de liberdade que o determinismo da língua deixa ao indivíduo,
uma série de particularismos assinalam inconfundivelmente um e outro:
frases curtas, sutileza de tonalidades semânticas, horror ao truísmo,
busca de efeitos sarcásticos – tudo reflete aquele pessimismo cruelmente
compassivo, que retrata, de corpo inteiro, o triste burilador de Brás
Cubas. Da mesma forma, aqueles descortinos de clarividente, aqueles
desvarios de profeta em cólera, toda a generosa combatividade e
idealismo de Castro Alves – aflui ao largo estuário de suas páginas, e
vai denunciar-se na curva sonora dos períodos, no amor às comparações e
imagens, às hipérboles e inversões violentas, aos vocativos, e
exclamações, e apóstrofes! Para zurzir vingadoramente, com o azorrague
da sua maldição, a ignomínia que enodoava a sua época, ele extraiu à
língua portuguesa aquele “som alto e sublimado”, compatível com
excelsitude da sua revolta exemplar.
Aí está o estilo de um jovem ciclope, como ali estava o
estilo de um velho roído de desencanto.
“Tenemos, pues, en resumen: estabilización de lo psíquico en lo verbal;
ampliación de lo verbal por lo psíquico.”
(SPITZER, 1942, p. 92)
Sem embargo de se prestar à floração de mil estilos
individuais, a língua não se desfigura; seu sistema permanece uno
e íntegro. É a variedade na unidade, a preservação histórica do seu
gênio, da sua índole, à qual se hão de adaptar todas as
inovações.
1.2.
Estilo e estilística individual
Porém é forçoso reconhecer que há um abismo de diferença entre
o uso da língua por um indivíduo posto nas circunstâncias normais e
comuns a todo um grupo linguístico, e o emprego que dela faz o esteta,
em seus formosos momentos de entusiasmo criador. Enquanto aquele a
utiliza para a só expressão das suas necessidades de entendimento, a
este ela se oferece como instrumento de arte: “...un effort
d’expression qui se développe sans cesse.” (ALBALAT, 1948, p. 20) E’
artificialismo que passa a preponderar: visando a fins estéticos, o
artista enfeita, retoca, cinzela, trabalha a frase, movido pela
preocupação superior de beleza e originalidade. “La prose n’est
jamais finie” – dizia o insatisfeito Flaubert. Eça de Queirós
buscava alcançar os segredos de uma prosa idealmente ignota:
– Enfim, exclamei, uma prosa como não pode
haver!
– Não! – gritou Fradique, uma prosa como
ainda não há! (QUEIRÓS, 1945, p. 125).
E’ aquela fome de perfeição, que excrucia os grandes
torturados da forma.
Daí a distinção essencialíssima entre
estilo e estilística individual, distinção em que tanto
insiste Charles Bally (s./d.,
p. 19, § 21b),
em seu primoroso Traité de Stylistique Française:
On a dit que “le style c’est
l’homme”,
et cette vérité, que nous ne contestons pas, pourrait faire croire qu’en
étudiant le style de Balzac, par exemple, on étudie la
stylistique individuelle de Balzac: ce serait une grossière erreur.
Il y a um fossé infranchissable entre l’emploi du langage par um
individu dans le circonstances générales et communes imposées à tout un
groupe linguistique, et l’emploi qu’en fai un poète, un romancier, un
orateur. Quand le sujet parlant se trouve dans les mêmes conditions que
tous les autres membres du groupe, el existe de ce fait une norme à
laquelle on peut mesurer les écarts de l’expression individuelle; pour
le littérateur, les conditions sont toutes différentes; il fait de la
langue um emploi volontaire et conscient (on a beau parler
d’inspiration; dans la création artistique la plus spontanée en
apparence, il y toujours un acte volontaire); en second lieu et surtout,
il emploie la langue dans une intention esthétique; il veut faire
de la beauté avec les mots comme le peintre en fait avec les couleurs et
le musicien avec les sons. Or cette intention, qui est presque toujours
celle de l’artiste, n’est presque jamais celle du sujet qui parle
spontanémente as langue maternelle. Cela seul suffit pour séparer à tout
jamais le style et la stylistique.
1.3.
A estilística e seus objetivos
Deve-se a
Charles Bally, discípulo de Saussure, a investigação dos “faits
d’expression du langage organisé au point de vue de leur contenu
affectif” (BALLY, s./d., p. 16, § 19).
Na ciência alemã, os mestres dessa recente disciplina, que se chamou
estilística, são os doutrinadores da escola idealista de Karl
Vossler.
O objetivo de Bally tem sido, de modo exclusivo, o estudo da
afetividade na língua corrente; ao contrário, Vossler e seus discípulos,
ainda que também a esta se hajam aplicado, restringiram o campo de suas
pesquisas à língua literária, principalmente à língua criadora da
poesia, muito mais rica em elementos emocionais. Assim entendida, a
estilística é a ciência dos estilos dos escritores.
Essa nova orientação nada tem em comum com aquela pedagogia
da arte de escrever, tão do gosto dos manuais franceses de “explications
de textes” e de obras como, por exemplo, as de Antoine Albalat, nas
quais nada mais se procura que oferecer modelos e normas para imitação.
Em ambos estes casos, o estilo é concebido como forma literária
e, portanto, passível de ser transmitido didaticamente, segundo a
compreensão dos retóricos do Renascimento, que o imaginavam entidade
absoluta e isolada, factível e adquirível pela vontade.
La forma no es, en efecto,
un factor independiente, con existencia propia – escreve Robert Petsch –
que se incorpore al contenido ideal o pueda enlazarse arbitrariamente
con él, sino una irradiación de ese contenido mismo, sólo que parece
llevar una vida propia e independiente, aunque en realidad se halla
puesto constantemente y de modo cada vez más perfecto al servicio de la
voluntad de expresión de la vida interior del hombre.
(PETSCH, 1946, p. 276)
Em trabalho notável, Helmut Hatzfeld (1942, p. 153-216)
resenhou grande parte das obras de estilística no domínio das línguas
românicas. Suas informações, completadas por Amado Alonso e Raimundo
Lida (1942, p. 219-244), permitem-nos apreciar o interesse despertado
por tais estudos e os caminhos diferentes que a novel disciplina há
seguido nos últimos tempos. Os temas preferidos têm sido os seguintes:
1 – Teoria geral do estilo.
2 – Indagações estilísticas baseadas no cotejo de manuscritos
e variantes.
3 – Estudo de fontes
poéticas.
4 – Pesquisa de línguas
poéticas individuais.
5 – Temas e processos
estilísticos de certos escritores.
6 – Diversas formas
estilísticas sobre o mesmo assunto.
7 – Marcha de
determinado processo estilístico através de toda uma literatura.
8 – Estilística
histórica: evolução de recursos estilísticos.
9 – Estilística étnica:
o estilo como espelho de uma cultura nacional.
1.4.
Propósito do presente trabalho
Pôr mãos sacrílegas nos mármores da obra literária de Rui
Barbosa, com o fito de tentar surpreender, na sua beleza sem mescla,
aquela “beleza interior”
que lhe engrandeceu a vida – eis o escopo deste pequeno trabalho.
Longe de nós, contudo, a pretensão de ambicionarmos, ainda que
a respeitosa distância, acompanhar a Vossler, Leo Spitzer, Elise Richter
e mais teóricos da estilística, em pós daquela ânsia de encontrar, em
toda particularidade idiomática do autor estudado, o reflexo de um
estado de alma também particular.
É mister precaver-nos, antes de tudo, contra os perigos que
tal diretriz nos oferece, conduzindo-nos, muita vez, a um terreno onde
os excessos do subjetivismo podem acabar por dominar-nos. Aquela
estilística que “aspira a una re-creación estética, a subir por los
hilos capilares de las formas idiomáticas más características hasta las
vivencias estéticas originales que las determinaron” (ALONSO, 1942,
p. 12), nem sempre ministra ao pesquisador trilha segura por onde
caminhe. É o caso de Leo Spitzer, que, ao comentar a expressão “avant-guerre”,
usada por León Daudet, em 1913, com o sentido particular de “época à
espera da guerra”, nela vê “la expresión verbal de la angústia de un
patriota francés de 1913!” (SPITZER, 1942, p. 93)
Também Vossler, na análise estilística da fábula de La-Fontaine – “Le
Corbeau et le Renard”, a propósito, por exemplo, da inversão que
figura no primeiro verso (Maître corbeau, sur un arbre perché...)
– acha que “la posición del ciervo aparece aún más alta” e que
assim se acentua, desde o começo, “el caráter orgulloso del ciervo.”
(VOSSLER, 1929, p. 184)
Sem que nos mova a preocupação constante de penetrar nos
mistérios – muita vez insondáveis – do mundo psicológico do escritor,
buscaremos, na medida do objetivamente possível, reunir algumas
observações sobre o estilo de Rui Barbosa na Oração aos Moços,
desejosos de concorrer para a compreensão geral desse alto espírito, que
aprendemos a reverenciar desde os primeiros dias de adolescência.
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