Sumário  

1.              CAPITULO II

INTERPRETAÇÃO ESTILÍSTICA
DA ORAÇÃO AOS MOÇOS

 

 

 

 

 

Por motivos práticos, trabalharei no particular para poder aprofundar-me no geral; mas sempre o conceito primário será a unidade.

(Karl Vossler)


 

1.1.                       O manuscrito e a redação definitiva

Tivemos o raríssimo privilégio de poder consultar o manuscrito anterior ao que, depois de lido pelo Dr. Reinaldo Porchat aos doutorandos da Faculdade de Direito de São Paulo, serviu para a impressão de 1921. Dele tiramos cópia fotostática, por gentileza do Ilmo. Sr. Dr. Américo Jacobina Lacombe, ilustre diretor da “Casa de Rui Barbosa”, em cujo arquivo se guarda o precioso documento.

Causou-nos uma das maiores emoções de nossa vida a leitura das cento e onze páginas desse rascunho, cujas emendas nos revelam a sabedoria incomparável do escritor, e reforçaram muitas das conclusões a que chegáramos ao estudar-lhe os processos de trabalho.

O confronto entre os dois textos – o do autógrafo e o da 1ª edição –, paralelo que temos por conveniente, espancará muita dúvida respeitante às ideias e preferências de Rui no fim da vida, por isso que, traído, às vezes, pelo subconsciente, deixou ele documentadas no original manuscrito, aqui e ali, certas formas e maneiras de ver, que se deu pressa em modificar na redação definitiva.

Não nos deteremos, por óbvias razões, no exame de todas as variantes, senão no daquelas que, por sua natureza especial, possam, de qualquer modo, contribuir para o propósito que temos em vista; fá-lo-emos assistematicamente, em vários lugares desta tese, à proporção que se for oferecendo oportunidade. Não obstante isso, registrá-las-emos de forma completa (exceto as de grafia e as de pontuação), para que, assim, se venha a ter, ao mesmo tempo, o estabelecimento fidelíssimo do inédito, cuja publicação, segundo cremos, será de alto interesse para quantos amamos as letras pátrias.

Utilizou-se para o cotejo o exemplar nº 2 da 1ª edição especial de cinquenta exemplares, em papel Wathman, numerados e rubricados pelo autor –, edição promovida pelo mensário acadêmico Dionysos, publicada em outubro de 1921 pela Casa Editora "O Livro”, de São Paulo. E’ a edição autorizada por excelência. Além dela, existem, pelo menos, estas seis publicações:

I – a do jornal O Estado de São Paulo, nos dois dias subsequentes ao da colação de grau (30 e 31-3-1921);

II – a da revista Arcádia, da Faculdade de Direito de São Paulo, nº 3;

III – a da Revista de Língua Portuguesa, n. 11, Rio, 1921;

IV – a que figura no volume Elogios Acadêmicos e Orações de Paraninfo, Rio, 1924;

V – a de Flores & Mano, Rio, s/d.;

VI – a da Organização Simões, autorizada pelo Ministério da Educação e Saúde, Rio, 1947.

 

MANUSCRITO

PRIMEIRA EDIÇÃO

1 – admissão a esse sacerdócio (p. 1)

admissão ao nosso sacerdócio (p. 11).

2 – como a quem se sente alongado por centenas de quilômetro. (p. 2)

como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros. (p. 12).

3 – debaixo dos mesmos campanários. (p. 3)

sob os mesmos campanários. (p. 12)

4 – quando a sua visão (p. 7)

quando sua visão (p. 13)

5 – como a pêndula de um relógio (p. 7)

como pêndula de relógio (p. 13).

6 – se alimenta ele da comunhão nos sentimentos e índoles, nas ideias e aspirações? (p. 9)

se alimenta ele na comunhão dos sentimentos e índoles, das ideias e aspirações? (p. 14).

7 – Quantas vezes não vemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? (p. 11)

Quantas vezes não entrevemos nesse fundo obscuro e remotíssimo uma imagem cara? (p. 15).

8 – na esfera das comunicações imateriais (p. 14)

na esfera das comunicações morais (p. 15)

9 – não conseguiremos enxergar de um a outro cabo, numa linha tão curta? (p. 14)

não conseguiremos enxergar de um a outro cabo, em linha tão curta? (p. 16).

10 – porque o espírito encontrou logo o seu equilíbrio na convicção de que, afinal, me chegava conhecer a mim mesmo, reconhecendo a escassez da minha energia (p. 17)

porque o espírito encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que, afinal, me chegava eu a conhecer a mim mesmo, reconhecendo a escassez de minhas reservas de energia, (p. 16-17).

11 – Tenho o consolo de haver dado ao meu país (p. 18)

Tenho o consolo de haver dado a meu pais (p. 17).

12 – os excessos de atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi. (p. 18)

os excessos de atividade incansável, com que, desde os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje. (p. 17).

13 – entre uma nacionalidade esmorecida e indiferente (p. 19).

em uma nacionalidade esmorecida e indiferente (p. 17).

14 – sobranceria (p. 19)

sobrançaria (p. 17).

15 – Descrer da cegueira humana, sim; mas da Providência, fatal nas suas soluções, bem que tarda nos seus passos, isso nunca. (p. 20)

Descrer da cegueira humana, sim; mas da Providência, fatal nas suas soluções, bem que (ao parecer) tarda nos seus passos, isso nunca. (p. 18).

16 – Essas chispas da substância divina (p. 25)

Essas faúlhas da substância divina (p. 19).

17 – Então a palavra se eletriza, treme, lampeja, atroa, fulmina. (p. 26)

Então a palavra se eletriza, brame, lampeja, atroa, fulmina (p. 20).

18 – Eis aí a cólera santa! Eis a ira divina! (p. 26-27)

Ei-la aí a cólera santa! Eis a ira divina ! (p. 20).

19 – o renegado, o blasfemo, o profanador? (p. 27)

o renegado, o blasfemo, o profanador, o simoníaco? (p. 20).

20 – a prostituição pública (p. 27)

a prostituição política (p. 20).

21 – Quem, senão ela, a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? (p. 27-28).

Quem, senão ela, ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? (p. 20).

22 – crucifixo entre os ladrões? (p. 28)

crucifixo entre ladrões? (p. 20).

23 – no fundo são do vaso onde tumultuam essas procelas, e donde borbotam essas erupções, (p. 29).

no fundo são da urna onde tunultuavam essas procelas, e donde borbotam essas erupções, (p. 21).

24 – não assenta um ódio, uma inimizade, uma vingança (p. 29)

não assenta um rancor, uma inimizade, uma vingança. (p. 21).

25 – ou como conselho de pai a filhos, se não como o testamento de uma carreira. (p. 32)

ou como conselho de pai a filhos, quando não como o testemunho de uma carreira, (p. 22).

26 – mas sempre o evangelizou com entusiasmo. (p. 32).

mas sempre o evangelizou com entusiamo, o procurou com fervor, e o adorou com sinceridade. (p. 22).

27 – fui sentindo quanto ela necessita da contradição, (p. 32)

fui sentindo quanto esta necessita da contradição, (p. 22)

28 – senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte. (p. 35).

senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte madrasta. (p. 23).

29 – Uns querem mal, e fazem bem. Outros almejam o bem, e nos trazem o mal. (p. 36)

Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem e nos trazem o mal. (p. 23).

30 – não hajam contribuído senão para a nossa felicidade. (p. 37)

não nos hajam contribuído senão para a felicidade. (p. 23).

31 – versado nas lições do tempo. (p. 39)

versado nas longas lições do tempo, (p. 24).

32 – por saber se o levarão ao cabo. (p. 40)

por saber se a levarão ao cabo, (p. 24).

33 – na viagem de trânsito por este mundo, (p. 40)

na viagem de trânsito deste a outro mundo. (p. 24)

34 – desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares de orvalho na relva dos prados. (p. 42)

desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados. (p. 25).

35 – quinhoar desigualmente os desiguais, (p. 42)

quinhoar desigualmente aos desiguais (p. 25).

36 – De cinquenta aspirantes, que, em 1564, solicitaram, em Salamanca, ingresso à Companhia de Jesus, (p. 46-47)

De cinquenta aspirantes, que, em 1564, solicitavam, em Salamanca, ingresso à Companhia de Jesus (p. 27).

37 – se quereis honrar a vossa vocação, (p. 50)

se quereis honrar vossa vocação (p. 28).

38 – cavar nos veios da vossa natureza. (p. 50)

Cavar nos veios de vossa natureza (p. 28).

39 – Nem a cabeça exausta nos prazeres tem onde caiba o inquirir, (p. 52)

Nem a cabeça já exauta, ou esta fada nos prazeres, tem onde caiba o inquirir, (p. 29).

40 – A natureza nos está mostrando com o exemplo a verdade. (p. 52)

A natureza nos está mostrando com exemplos a verdade. (p. 29).

41– Mas, quando se avizinha o volver da luz, muito antes que ela arraie a natureza, e ainda antes que alvoreça no firmamento, já rompeu na terra em cânticos a alvorada, (p. 52-53).

Mas, quando se avizinha o volver da luz, muito antes que ela arraie a natureza, e ainda primeiro que alvoreça no firmamento, já rompeu na terra em cânticos a alvorada, (p. 29).

42 – mas a de vos anticipardes (sic) aos demais, ganhando mais para vós mesmos, (p. 55).

mas a de antecederdes aos demais, logrando mais para vós mesmos, (p. 30).

43 – Nem a colheita acode tão suave às mãos do lavrador, quando a terra já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia. (p. 56)

Nem a colheita acode tão suave às mãos do lavrador, quando o torrão já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia. (p. 31).

44 – Mas muitos somos os que ignoramos certas condições, talvez as mais elementares do trabalho, ou, pelo menos, os que as praticamos. (p. 56).

Mas muito somos os que ignoramos certas condições, talvez as mais elementares, do trabalho, ou, pelo menos, mui poucos os que as praticamos. (p. 31).

45 – Quantos são os que acreditam (p. 56)

Quantos serão os que acreditem (p. 31)

46 – na minha carreira de estudante. (p. 57)

na minha estirada carreira de estudante (p.31)

47 – Mas, do que tenho sabido, a maior parte devo às manhãs e madrugadas. (p. 58)

Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. (p. 31).

48 – excessos de minha vida laboriosa. (p. 58)

Excessos da minha vida laboriosa. (p. 31).

49 – Ao que devo, sim, o melhor dos frutos do meu trabalho, (p. 58-59)

– Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu trabalho, (p. 32).

50 – a relativa exabundância da sua fertilidade, (p. 59).

– a relativa exabundância de sua fertilidade, (p. 32).

51 – e daí avante o observei, sem cessar, toda a minha vida. (p. 59)

e daí avante o observei, sem acessar, toda a vida. (p. 32).

52 – a ponto de madrugar exatamente à hora, que comigo mesmo assentara ao dormir. (p. 59).

a ponto de espertar exatamente à hora, que comigo mesmo assentava, ao dormir. (p. 32).

53 – Sucedia, muito amiúde, encetar eu e minha banca de estudo à uma ou às duas da antemanhã. (p. 59)

Sucedia, muito a miúde, encetar eu e minha solitária banca de estudo a uma ou às duas da antemanhã. (p. 32)

54 – àquelas amadas lucubrações, as de que me lembro com mais doces saudades. (p. 60).

àquelas amadas lucubrações, as de que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável. (p. 32).

55 – Tenho ainda hoje, a convicção de que (p. 60).

Tenho ainda hoje, convicção de que (p. 32).

56 – bem que largamente cerceado nas suas imoderações. (p. 60).

bem que largamente cerceado nas antigas imoderações. (p. 32).

57 – um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser um grande madrugador, um madrugador impenitente. (p. 61).

um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente. (p. 32).

58 – quanto menos ciência se apura, mais sábios florescem. (p. 62-63)

quanto menos ciência se apurar, mais sábios florescem. (p. 33)

59 – é, a pedir de boca, o que se diz verdadeira mão de pronto desempenho, (p. 63)

é, a pedir de boca, o que se diz mão de pronto desempenho, (p. 33)

60 – “Paradiso”, XII, L 62. (p. 64 – nota)

“Paradiso”, XII, 85. (p. 33 – nota)

61 – se escancaram as cancelas da fama. (p. 62)

se escancelam os portões da fama. (p. 34)

62 – Vai-se até ao incrível de se inculcar “o medo aos preparados”, havê-los como cidadãos perigosos, e ter por dogma que um homem, cujos estudos excederem a craveira vulgar, não poderia ocupar um posto mais grado no governo em país de analfabetos (p. 65).

Vai-se, até, ao incrível de se inculcar “o medo aos preparados”, de havê-los como cidadãos perigosos, e ter-se por dogma que um homem, cujos estudos passarem da craveira vulgar, não poderia ocupar qualquer posto mais grado no governo, em país de analfabetos (p. 34).

63 – Se o povo é analfabeto, só um ignorante estará em termos de o governar. Nação de analfabetos, governo de analfabeto. (p. 65).

Se o povo é analfabeto, só ignorantes estarão em termos de o governar. Nação de analfabetos, governo de analfabetos. (p. 34).

64 – Sócrates, um dia, numa das suas conversações, (p. 66).

Sócrates, certo dia, numa das suas conversações, (p. 34).

65 – dava uma lição de modéstia ao seu interlocutor, dizendo-lhe, com a sua costumada lhaneza: (p. 66).

dava grande lição de modéstia ao interlocutor, dizendo-lhe, com a costumada lhaneza: (p. 34).

66 – E não és tu só o que se veja nessa condição: (p. 66).

E não és tu só o que te vejas nessa condição: (p. 34).

67 – porque tem frequentado os filósofos”. (p. 66).

porque tem cursado os filósofos”. (p. 34).

68 – Vede agora os que intentais exercitar-vos na ciência das leis, vir a ser os seus intérpretes, se de tal jeito é que conceberíeis sabê-las e executá-las. Deste jeito; isto é: (p. 66-67).

Vede agora os que intentais exercitar-vos na ciência das leis, e vir a ser seus intérpretes, se de tal jeito é que conceberíeis sabê-las, e executá-las. Desse jeito; isto é: (p. 34-35).

69 – Certa vez, que Alcibíades discutia com Péricles, numa palestra registrada por Xenofonte, acertou de se debater o que é lei, e quando existe, ou não existe. (p. 67).

Uma vez, que Alcibíades discutia com Péricles, em palestra registrada por Xenofonte, acertou de se debater o que seja “lei”, e quando exista, ou não exista. (p. 35).

70 “– Certamente que o bem, mancebo”. (p. 67).

“– Certo que o bem, mancebo”. (p. 35).

71 – “– Mas, quando exíguo número de cidadãos impõe os seus arbítrios à multidão, (p. 68).

“– Mas, quando um diminuto número de cidadãos impõe seus arbítrios à multidão, (p. 35).

72 – num país, onde verdadeiramente, não há lei, não o há, moral, política ou juridicamente falando. (p. 69).

num país, onde, verdadeiramente, “não há lei”, não há, moral, política ou juridicamente falando. (p. 36).

73 – os que professam a missão dos sustentáculos e auxiliares da lei. (p. 69)

os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares “da lei”, seus mestres e executores. (p. 36)

74 – não só pela bastardia da sua origem, mas pelos horrores de sua aplicação. (p. 69-70)

não só pela bastardia da origem, senão ainda pelos horrores da aplicação. (p. 36)

75 – “Bona este lex, si quis ea legitime utatur”. (p. 70)

“Bona este lex, si ea legitimè utatur”. (p. 36)

76 – Ou, mais sinceramente, pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei mal inexecutada, ou mal executada, para o bem, que a boa lei, sofismada e não observada, contra ele. (p. 70-71)

Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo, pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má, quando “inexecutada”, ou “mal executada” (para o bem), que a boa lei, sofismada e não observada (contra ele). (p. 37)

77 – que, por assim dizer, estupendo e sobre-humano não será, logo, em tais condições, o papel da justiça! (p. 71).

que, por assim dizer, estupendo e sobre-humano logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! (p. 37).

78 – em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, em sendo injustas, lhes poderão moderar, se não, até, em seu tanto, corrigir a injustiça. (p. 71).

em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça. (p. 37).

79 – “Aí temos a lei”, dizia o Florentino. “Mas quem as há de segurar? Ninguém”. (p. 71).

“Aí temos a lei”, dizia o Florentino. “Mas quem lhes há de ter mão? Ninguém”. (p. 37).

80 – Dante: Purgatório, XVII, 218-19. (p. 71)

Dante: Purgatório, XVI, 97-98. (p. 37)

81 – a mão sustentadora das leis, aí está, hoje, entre nós, criada, e tão grande, (p. 72).

a mão sustentadora das leis, aí a temos, hoje, criada, e tão grande, (p. 38).

82 – que, em falseando ele ao seu mister, (p. 73).

que, falseando ele ao seu mister, (p. 38).

83 – ainda que agredida, vacilante e mal segura. (p. 74).

ainda que agredida, oscilante e mal segura. (p. 38).

84 – em que mal se conservam grosseiros traços (p. 74).

em que mal se conservam ligeiros traços (p. 38).

85 – imensas nas suas dificuldades, responsabilidades e utilidades. (p. 75).

imensas nas dificuldades, responsabilidades e utilidades. (p. 39).

86 – Metei no seio essas três fés, (p. 76)

Metei no regaço essas três fés, (p. 39)

87 – Não hajais medo que a sorte vos ludibrie. (p. 76)

Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie. (p. 39)

88 – Tomai a que vos indicarem os vossos pressentimentos, (p. 76).

Tomai a que vos indicarem vossos pressentimentos, (p. 39).

89 – Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister, e ainda não tendes, (p. 77).

Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister, e que ainda não tendes, (p. 40).

90 – Pelo que me toca, escassamente avalio até onde, nisso, vos poderia ser útil, (p. 77).

Pelo que me toca, escassamente avalio até onde, nisso, vos poderia eu ser útil, (p. 40).

91 – Como dilatar-me, porém, numa ou noutra coisa, (p. 78).

Como me dilataria, porém, numa ou noutra coisa, (p. 40).

92 – Não contarei, pois, senhores, a minha experiência, (p. 78).

Não recontarei, pois, senhores, a minha experiência, (p. 40).

93 – se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos conselhos. (p. 79).

se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos. (p. 40).

94 – São, talvez, meras vulgaridades, (p. 79).

Serão, talvez, meras vulgaridades, (p. 41).

95 – Exemplo, senhores. (p. 81).

Ponho exemplo, senhores. (p. 41).

96 – chegando as causas a contar a idade por lustros, em vez de anos. (p. 81).

Chegando as causas a contar a idade por lustros, ou décadas, em vez de anos. (p. 41).

97 – Os juízes retardatários (p. 81).

Os juízes tardinheiros (p. 42).

98 – Mas a sua culpa tresdobra (p. 81-82).

Mas sua culpa tresdobra (p. 42).

99 – os autos penam como as almas do purgatório, ou as preguiças do mato. (p. 82).

os autos penam como as almas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato. (p. 42).

100 – a si mesmo põem suspeições requintadas, (p. 82).

a si mesmo põem suspeições rebuscadas, (p. 42).

101 – torturando o réu com severidades inoportunas; (p. 83).

torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; (p. 42-43).

102 – não tivesse por sagrado o homem, sobre quem recai uma acusação inverificada. (p. 83).

não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada. (p. 43).

103 – para se acreditar com o nome de austeros e incorruptíveis. (p. 83).

para se acreditar com o nome de austeros e ilibados. (p. 43).

104 – uma reputação malignamente obtida à custa da verdadeira inteligência dos textos legais. (p. 83).

uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais. (p. 43).

105 – valor das quantias reivindicadas, (p. 84).

valor das quantias litigadas, (p. 43).

106 – os menos ajudados da boa fortuna; (p. 84).

os menos ajudados da fortuna; (fig. 43).

107 – a reparação, que se impõe, aos lesados. (p. 34).

a reparação, que se demanda (p. 43).

108 – os togados, que contraíram a doença de acharem sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda, pelo que os condecora o povo com o título de “fazendeiros”. (p. 85).

os togados, que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda; por onde os condecora o povo com o título de “fazendeiros”. (p. 43).

109 – Antes, se admissível fosse qualquer presunção, (p. 85).

Antes, se admissível fosse qualquer presunção, (p. 43).

110 – Pois essas entidades são as mais poderosas, as mais irresponsáveis, (p. 85).

pois essas entidades são as mais irresponsáveis, (p. 43).

111 – (por não serem os perpetradores de tais atentados os que por eles pagam), (p. 86).

(por não serem os perpetradores de tais atentados os que os pagam), (p. 44).

112 – para assegurar ao Fisco uma situação monstruosa; (p. 87).

para assegurar ao Fisco esta situação monstruosa; (p. 44).

113 – e ainda hoje (p. 87).

e que ainda hoje (p. 44).

114 – e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição, com a desigualdade nos recursos, (p. 88).

e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos. (p. 44).

115 – preservai as vossas almas juvenis (p. 88).

preservai vossas almas juvenis (p. 44).

116 – e não conhecer a cobardia. (p. 88).

e não conhecer cobardia. (p. 44).

117 – que a nada se dobra, e de nada se teme, (p. 88).

que a nada se dobre, e de nada se tema, (p. 44-45).

118 – Nem receieis (sic) alguma soberania da terra: a do povo, ou a do poder. (p. 89).

Nem receieis (sic) alguma soberanias da terra: nem a do povo, nem a do poder. (p. 45).

119 – por uma ação magnânima, (p. 89).

pelas ações magnânimas, (p. 45).

120 – não têm (p. 89).

Não terão (p. 45).

121 – são, às vezes, mais intolerantes com os magistrados ... que os antigos monarcas absolutos. (p. 90).

São, às vezes, mais intolerantes com os magistrados ... do que os antigos monarcas absolutos. (p. 45).

122 – como se haveriam com ouvidores e desembargadores d’El-Rei (p. 91).

como se haveriam com os ouvidores e desembargadores d’El-Rei (p. 45).

123 – Bom será que os bárbaros tivessem deixado lições tão inesperadas às nossas democracias, a ver se, barbarizando-se com esses modelos, anteporiam elas a justiça ao parentesco, e nos livraram da peste das parentelas, em matéria de governo. (p. 92-93).

Bom é que os bárbaros tivessem deixado lições tão inesperadas às nossas democracias. Bem poderia ser que, barbarizando-se com esses modelos, antepusessem elas, enfim, a justiça ao parentesco, e nos livrassem da peste das parentelas, em matérias de governo. (p. 46).

124 – ando a catar a minha literatura de hoje (p. 93)

ando a catar minha literatura de hoje (p. 46)

125 – Com tão cruel mania ganharíeis, com razão, o crédito de mau, e não de reto, (p. 94).

Dados a tão cruel mania, ganharíeis, com razão, conceito de maus, e não de retos, (p. 47).

126 – por esse vício lucraríeis a néscia reputação de original, mas nunca a de sábio, douto, ou consciencioso. (p. 94).

Por esse meio lucraríeis a néscia reputação de originais; mas nunca a de sábios, doutos, ou conscienciosos. (p. 47).

127 – venderíeis vossas almas e famas ao demônio da ambição, da intriga e da servidão às paixões. (p. 94).

venderíeis as almas e famas ao demônio da ambição, da intriga e da servidão às paixões mais detestáveis. (p. 47).

128 – Fazendo aos vossos colegas toda a honra, (p. 95).

Fazendo aos colegas toda a honra, (p. 47).

129 – prestai-lhes todo o crédito, a que sua dignidade houver direito; (p. 95).

prestai-lhes o crédito, a que sua dignidade houver direito; (p. 47).

130 – mas não tanto que delibereis só de lhes ouvir, (p. 95).

mas não tanto que delibereis só de os ouvir, (p. 47).

131 – Não prescindais, em suma, do conhecimento pessoal, (p. 95).

Não prescindais, em suma, do conhecimento próprio, (p. 47).

132 – De quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange nestas CINCO palavras: Não há justiça sem Deus. (p. 96).

De quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange nestas CINCO palavras: Não há justiça, onde não haja Deus. (p. 47).

133 – Mas seria perder tempo, se não encontrardes a sua demonstração (p. 96).

Mas seria perder tempo, se já não encontrastes a demonstração (p. 47).

134 – A Justiça humana cabe nessa regeneração um papel essencial. (p. 97).

A Justiça humana cabe, nessa regeneração, papel essencial. (p. 48).

135 – com a influência dessa altíssima dignidade, (p. 97).

com a influência da altíssima dignidade, (p. 48).

136 – com a incompetência de quem não a exerceu. (p. 97).

com a incompetência de quem não a tem exercido. (p. 48).

137 – que me não será dado tratar. (p. 98).

que me não será dado agora tratar. (p. 48).

138 – Que perdereis, com essa omissão? Nada. (p. 98).

Mas que perdereis, com tal omissão? Nada. (p. 48).

139 – Lei e liberdade são as duas tábuas da vocação do advogado. (p. 98-99).

Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. (p. 48).

140 – Não se subtrair à defesa das causas impopulares, ou das perigosas, quando justas. (p. 99).

Não se subtrair à defesa das causas impopulares, ou à das perigosas, quando justas. (p. 49).

141 – Não fazer da banca balcão, e da ciência mercatura. (p. 100).

Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. (p. 49).

142 – a invasão germânica ocupava a terra de França, (p. 101).

a invasão germânica alagava terras de França, (p. 49).

143 – envolvia culpados e inocentes numa convulsão, que acreditaríeis haver despejado o inferno entre as nações da terra, dando a um inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de o equivocar, na sua espantosa imensidade, com um cataclismo cósmico. (p. 102).

envolvia culpados e inocentes numa série de convulsões, tal, que acreditaríeis haver-se despejado o inferno entre as nações da terra, dando ao inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de representar, na sua espantosa imensidade, um cataclismo cósmico. (p. 50).

144 – Parecia estar-se aniquilando o mundo. (p. 102).

Parecia estar-se desmanchando e aniquilando o mundo. (p. 50).

145 – a velha política, desalmada e mercantil, (p. 102).

a velha política, desalmada, mercantil e cínica, (p. 50).

146 – num ciclone de abominações inenarráveis, cujo turbilhão bem depressa viria abranger, como abrangeu, no círculo das suas tremendas comoções, e deixar revolvido o orbe inteiro (p. 103).

num ciclone de abominações inenarráveis, que bem depressa abrangeria, como abrangeu, na zona das suas tremendas comoções, os outros continentes e deixaria revolvido o orbe inteiro (p. 50).

147 – O bloco do inexorável mercantilismo (p. 103).

O Briaréu do inexorável mercantilismo (p. 50).

148 – o Brasil da hegemonia sul-americana, estabelecida com a guerra do Paraguai. (p. 104).

o Brasil “da hegemonia sul-americana”, entreluzida com a guerra do Paraguai. (p. 50).

149 – não cultivava essas veleidades. (p. 104)

não cultivava tais veleidades. (p. 50)

150 – Mas, de repente, agora, (p. 105).

mas, de súbito, agora, (p. 51)

151 – Porque a nossa política descurou dos nossos interesses, e, com isso, delirando num acesso de frívolo despeito, (p. 105).

Porque a nossa política nos descurou dos interesses, e, ante isso, delirando em acesso de frívolo despeito, (p. 51).

152 – ao escândalo de se dar à terra toda como a mais fútil das nações, uma nação que, (p. 107).

ao escândalo de se dar à terra toda como a mais fútil das nações, nação que, (p. 51).

153 – não vamos agora mostrar os punhos aos irmãos, com que comungávamos, inda há pouco, nessa verdadeira cruzada. (p. 107).

não vamos agora mostrar os punhos contraídos aos irmãos, com que comungávamos, há pouco, nessa verdadeira cruzada. (p. 52).

154 – o equilíbrio da nossa dignidade, por amor de uma disputa de estreito caráter comercial (p. 107-108).

o equilíbrio da dignidade, por amor de uma pendência de estreito caráter comercial (p. 52).

155 – antes de averiguar (p. 108).

antes de averiguarmos (p. 52).

156 – sem quebra da seriedade e decoro (p. 109).

sem quebra da seriedade e do decoro (p. 52).

157 – se neles quiséssemos brilhar melhor do que brilháramos nos atos da guerra. (p. 109).

se neles quiséssemos brilhar melhor do que brilháramos nos atos da guerra, e acabar sem contratempos ou dissabores. (p. 52).

158 – e, oferecida, incauta, ingênua, inerme, (p. 110).

e, oferecida, com está, incauta, ingênua, inerme, (p. 52).

159 – fartar a duas ou três (p. 110).

fartar duas ou três (p. 52).

160 – o que lhe importa, é que dê começo a se governar a si mesmo; (p. 110).

o que lhe importa, é que dê começo a governar-se a si mesmo; (p. 53).

161 – porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva a sério uma nacionalidade adormecida (p. 110).

porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva em conta uma nacionalidade adormecida (p. 53).

162 – não pode aspirar seriamente, (p. 110).

não pode almejar seriamente, (p. 53).

163 – manter a sua independência do estrangeiro. (p. 110).

manter a sua independência para com o estrangeiro. (p. 53).

164 – essa ressurreição almejada. (p. 111).

essa ressurreição ansiada. (p. 53).

165 – Assim Deus o queira, (p. 111).

Assim o queira Deus. (p. 53).

 


 

1.2.                       A língua de rui, gramática da Oração aos Moços

De modo geral, a leitura da Oração aos Moços demonstra o crescente gramaticismo de Rui, depois da Réplica. A par da ortodoxia gramatical mais extremada, é possível notar-se-lhe certo empenho de modernidade, desde que não venha esta implicar desaire do idioma.

Iremos a ver se as notas que seguem confirmam nossa impressão.

 

I

É, sem dúvida, incontestável a predileção de Rui à presença do artigo antes dos pronomes possessivos, segundo a lição dos escritores mais recentes:

...os meus cinquenta anos de consagração ao direito... (11)[1]

...no templo do seu ensino... (11)

...com a vossa admissão ao nosso sacerdócio (11)

...no sacrário do seu peito... (12)

...o aniquilamento da nossa miséria desamparada... (13)

...e aí o sentireis com a sua segunda vista... (14)

...com os nossos conviventes... (14)

...com os nossos descendentes e sobreviventes, com os nossos sucessores e pósteros... (14)

...a colação do vosso grau... (16)

...um como vínculo sagrado entre a vossa existência intelectual, que se enceta, e a do vosso padrinho em letras, que se acerca do seu termo. (16)

Aí está o resultado de rápida colheita, apenas em meia dúzia de páginas. Temos por escusado transcrever, para fundamentar a nossa observação, a totalidade dos exemplos reunidos, os quais andam por uma centena. Ao contrário, aduzimos todos os casos de omissão, como prova da sua relativa escassez:

...quando sua visão tem por limite a do nervo ótico... (13)

Vosso coração, pois, ainda estará incontaminado... (14)

Desta, sobre tudo, é que ele nutre sua vida agitada e criadora. (14)

...pela grandeza da pátria e suas liberdades, no parlamento. (16)

...o espírito encontrou logo seu equilíbrio... (16)

...reconhecendo a escassez de minhas reservas de energia... (17)

Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance... (17)

...se quereis honrar vossa vocação... (28)

...dispostos a cavar nos veios de vossa natureza... (28)

...a voz do Senhor, perguntando a seu servo... (30)

...a relativa exabundância de sua fertilidade... (32)

...impõe seus arbítrios à multidão... (35)

Tomai a que vos indicarem vossos pressentimentos, gostos e explorações, no campo dessas nobres disciplinas... (39)

Preservai, juízes de amanhã, preservai vossas almas... (44)

...um dos mais memoráveis atos de sua vida... (51)

Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida autonomia... (53)

E’ importante notar que, no manuscrito, a maioria dessas frases traziam o artigo, o que revela quanto lhe era espontânea a tendência para o seu emprego. (Cf. os n.ºs 4, 10, 11, 37, 38, 50, 71, 88, 98, 115, 124).

Said Ali, seguro como sempre, informa que

...só de Camões para cá se torna, de século para século, cada vez mais notória a frequência do possessivo reforçado. Fernão Lopes poucas vezes se socorria desta forma; e, seus escritos ela figura, ao lado dos exemplos de possessivo destituído de artigo, em proporção muito pequena: 5% aproximadamente. Já nos Lusíadas sobe a porcentagem a 30%, na linguagem de Vieira a 70% e finalmente na de Herculano a mais de 90%. (ALI, 1931, p. 99 da 1ª Parte).

Aliás, Rui, quase sempre, fugia o possessivo, quer omitindo-o simplesmente (cf., no manuscrito, os nos 51, 56, 65, 74, 85, 128, 154), quer substituindo-o pelo dativo do pronome pessoal, como nos mostra, ainda, o n.º 30 do manuscrito. Eis a redação habitual, na forma definitiva da Oração aos Moços:

...e dando-me a honra de vos ser eu paraninfo... (16)

Já o jurista começava a olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, que, há dez lustros, lhe vibra entre os dedos... (16)

...antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada. (17)

...com que habilitar o mísero advogado a sustentar-lhes com alma, com dignidade, com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. (17)

Assim que a benção do paraninfo não traz fel. Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. (18)

desde que o tempo começou, lento lento, a me decantar o espírito do sedimento das paixões... (22)

Os governos investem contra a justiça, provocam e desrespeitam os tribunais; mas, por mais que lhes espumem contra as sentenças... (45)

...sempre que a prova terminante vos esteja ao alcance da vista... (47)

Não é sonho, meus amigos: bem sinto eu, nas pulsações do sangue, essa ressurreição ansiada. Oxalá não se me fechem os olhos, antes de lhe ver os primeiros indícios no horizonte. (53)

Procedendo assim, Rui guarda fidelidade ao que sobre o assunto já ensinara no “Parecer” (BARBOSA, 1902, p. 13-14) e confirmara na Réplica (BARBOSA, 1904, nº 262).

 

II

Com respeito ao uso do artigo depois de todo, a indicar a totalidade numérica, sublinhe-se o mesmo desejo de não despojar a língua de qualquer das suas variações gramaticais consagradas pelos bons autores. Contudo, sua preferência, segundo parece, inclina, ainda uma vez, para o gosto moderno. (ALI, 1945, p. 53-62)

1) – sem artigo:

Nem toda ira, pois, é maldade... (19)

Todo pai é conselheiro natural. (40)

2) – com artigo:

Todo o bom magistrado tem muito de heroico em si mesmo. (44)

No soneto “Lamento”, de Antero de Quental (193, p. 137), cuja linguagem espelha muito ao vivo o estado da língua em sua época, lê-se o seguinte:

Deus é Pai! Pai de toda a criatura:
E a todo o ser o seu amor assiste:
De seus filhos o mal sempre é lembrado...

Antes de possessivo, também só encontramos a forma com artigo:

...ainda brilha em toda a sua rutilância o clarão da lâmpada sagrada, ainda arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se aquece a essência d’alma. (14)

Também na expressão “de toda a ordem”:

...consumando lesões de toda a ordem... (44)

E, ainda, em “todo o mundo”:

...e a lei processual, em todo o mundo civilizado...(43)

...bem outros era este país e todo o mundo ocidental... (49)

Todo o mundo vo-lo dará por líquido e certo. (33)

No “Discurso do Colégio Anchieta” (BARBOSA, 1924), escrito pouco tempo depois da Réplica:

E é com essas alturas que se apostou o clero católico, é com elas que se mede, alargando todo o dia a sua base, elevando todo o dia os seus topos... (p. 323).

E na formosa “Visita à Terra Natal” (BARBOSA, 1948), que é anterior à polêmica:

...me estendia os braços de toda a parte, no longo amplexo do horizonte. (p. 6)

...esse leve perfume de gosto, propriedade e elegância discreta, que, em toda a parte, é um sinal de educação... (p. 43).

 

III

Outrossim, até + a + artigo definido ocorre mais frequentemente que até + artigo definido. Outro indício de modernidade gramatical?

Exemplos:

...alteia o voo soberbo, além das regiões siderais até aos páramos indevassáveis do infinito. (23)

...o segredo feliz, não só das minhas primeiras vitórias no trabalho, mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus concorrentes, em todo o andar dos anos, até à velhice. (32)

Nesta frase, aproveitam-se ambas as possibilidades que a língua oferece:

Tudo assim, desde os astros, no céu, até os micróbios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljôfares do rocio na relva dos prados. (25)

Acrescentem-se, a fim de se patentear quanto campeava de preferida a combinação das duas preposições, estes exemplos de outras épocas:

...desde as porfias da escola até às meditações do gabinete. (BARBOSA, 1924, p. 283).

...suas vaias sobem nas escolas até à cátedra dos professores. (BARBOSA, 1924, p. 284).

...na região onde a consciência estende os seus pensamentos até às plagas da outra vida... (BARBOSA, 1948, p. 33).

 

IV

No manuscrito (cf. nº 106), escrevera Rui:

Porque quanto mais armados estão de tais armas os poderosos, mais inclinados é de recear que sejam à extorsão contra os menos ajudados da boa fortuna.

Ao rever o trabalho, cortou o adjetivo boa. Essa emenda, tê-la-ia ditado o sentimento do valor atual da palavra fortuna?

O certo é que

...era uso comum dos clássicos ajuntar os epítetos correspondentes às palavras que podiam tê-los, conforme os casos; diziam, pois: a boa fortuna, a má fortuna, boa ou triste ventura, o bom ou mau ou triste sucesso, o bom gosto ou mau, etc. Hoje, suprimindo-se o epíteto, sempre se estende o bom ou o mais favorável: a fortuna (isto é, a boa fortuna), o gosto, o sucesso, a ventura. (RIBEIRO, 1905, nota 63)

Ao comentar essa nota da “Seleta Clássica”, assim a enriquece Mário Barreto:

O sentido primitivo da palavra fortuna é o sentido neutro e indiferente de “sorte” ou de “acaso”. Por isso é que os clássicos lhe ajuntavam um qualificativo que indicasse os sorrisos ou a carranca da sorte: a boa fortuna, a má fortuna, próspera e adversa fortuna. Dos dois sentidos opostos um desaparece. Vinga de ordinário o sentido otimista, o que só raramente sucede com o sentido depreciativo. Assim é que a palavra fortuna, na língua moderna, se emprega absolutamente, e sempre em acepção benéfica: no sentido contrário, foi substituída por desfortuna, e infortúnio. (BARRETO, 1924, 128-129)

Antônio Ferreira, o doutíssimo defensor da língua no século XVI, explica, em “A Castro” (vs. 111-118, da edição de Sousa da Silveira), esse sentido neutro da palavra fortuna:

Mas o espírito inquieto cos clamores
Do povo, e rogos graves, que trabalham
Apartar est’amor, quebrar sua força,
Me traziam medrosa, receando
A volta da fortuna, que ora amiga,
Ora imiga cruel, alça, e derriba...

De desfortuna também usou Rui na Oração aos Moços:

Então vim a perceber vivamente que imensa dúvida cada criatura da nossa espécie deve aos seus inimigos e desfortunas. (22)

O que ele, com escrúpulo, evitou, foi empregar a palavra no sentido de haveres, riquezas, bens patrimoniais, sentido recriminado (aliás, sem razão) pelos puristas mais exigentes.


 

V

Esteia na melhor tradição a regência dos nomes e a dos verbos. Nem uma só vez, transigiu Rui com sintaxes menos puras, ainda que perpetradas esporadicamente por escritores de nota. Abraçou sempre as construções, por assim dizer, universais nos mestres da língua.

No regime dos substantivos que “significam disposições do ânimo, ou manifestações de disposições do ânimo em relação a um objeto" (DIAS, 1933, § 206, p. 157)[2] vai encontrar-se absoluta regularidade e obediência aos modelos castiços:

Porque o ódio ao mal é o amor ao bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. (18)

Agora, alguns verbos:

Aspirar a:

...não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. (11)

Assistir a:

...assistira impassível à entronização dos cálculos dos governos sobre os direitos dos povos... (50)

Assistir (+ complemento adverbial):

...isto de me achar assistindo, assim, entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta... (12)

Associar-se com:

...associando-se hoje com a vossa admissão ao nosso sacerdócio... (11)

Comparar-se a:

Suas vitórias [as do trabalho] na reconstituição da criatura mal dotada só se comparam às da oração. (26)

Parece exata a distinção, posto que sutil entre comparar a (=igualar, assemelhar) e comparar com (=confrontar, pôr em cortejo as semelhanças, ou diferenças).

Deparar (bitransitivo) = apresentar, proporcionar:

...esta purificação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da existência... (22)

Entrar a:

Menino ainda, assim que entrei no colégio... (32)

Em 1907 entrou, pela porta de Haia, ao concerto das nações. (51)

Juntar-se a e com:

Mas, quando o trabalho, se junta à oração, e a oração com o trabalho... (26-27)

Aqui, como sucede tantas vezes, deixa Rui a lição completa. Cf., por exemplo, com respeito ao verbo parecer (-se), que, nesta mesma Oração aos Moços (p. 25), aparece com a preposição a:

Não há, no universo, duas coisas iguais. Muitas se parecem umas às outras. Mas todas entre si diversificam. –,

a duplicidade de regimes com que ele o usou nas “Orações do Apóstolo” (BARBOSA, 1923, p. 229-230):

Todavia, pode-se dizer que não teve modelos, e que as raras sugestões que acolheu de outros autores se parecem tanto às composições de Swift como o linho bruto com a cordoalha que dele se tece.

Também, lado a lado se põem os dois valores semânticos de querer, neste passo da conferência sobre Osvaldo Cruz (BARBOSA, 1924, p. 161):

Chefe de ideias – como por irrisão me chamaram, convencido estou, já hoje, de que acabarei sem que as minhas tenham o seu dia, porque a minha pátria ainda não as quis, nem lhes quer.

A propósito deste verbo, lembre-se que, apesar de haver tentado defender, aliás, com pouca felicidade, o seu emprego como transitivo direto na acepção de querer bem, (cf. Réplica, nº 124) Rui não adotava a sintaxe repreensível. E, quando escreveu:

Querendo com amor o idioma que falamos... (Parecer, p. 3).

frase que deu pretexto a Carneiro Ribeiro para a censura que lhe fez, em “A Redação do Projeto do Código Civil Brasileiro”, cap. XVI, p. 127-141 –, logo se apressou ele em desculpar-se com “a incorreta reprodução no trabalho da oficina” tipográfica.

Sem embargo de ter justificado a forma vitanda, não a acolheu jamais, mesmo depois da Réplica. No discurso do Colégio Anchieta (op. cit., p. 277), redigido em 1903, lá está:

Toda a planta quer o húmus, de que se nutre, ao envoltório aéreo, onde respira, ao pedaço de azul celeste, que lhe sorri e a orvalha.

Prosperar (transitivo direto) = fazer prosperar:

...as leis do bom governo, que prosperam os Estados, moralizam as sociedades, e honram as nações. (17)

Reagir sobre (= influir em sentido contrário, ter ação sobre):

...cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre as desigualdades nativas... (26)

Rivalizar (transitivo direto):

...estimulando os outros a que vos rivalizem no ganho bendito. (30)

...nada lhe iguala a majestade, nada lhe rivaliza o poder. (38)

Semelhar a:

...a criação do homem pelo homem semelha às vezes, em maravilhas, à criação do homem pelo divino Criador. (27)

Soçobrar (transitivo direto):

...e, na América do Norte, poucos anos antes, a guerra civil limpara da grande república o cativeiro negro, cuja agonia esteve a pique de a soçobrar despedaçada. (49)


 

VI

No emprego do gerúndio não há também a menor eiva de antivernaculidade. Quando não figura ele em sua função historicamente legítima, isto é, a função adverbial, aparece com nítido valor progressivo: preso a um substantivo ou pronome da oração principal (e não a um verbo), indica “um fato em desenvolvimento”, e não uma “qualidade permanente” do ser.

Assim, numa frase como:

Vi dois homens brigando na rua,

aquele gerúndio “brigando” só aparentemente está preso ao substantivo “homens”.

Na realidade, o que aí existe é uma oração adjetiva (que estavam brigando na rua), na qual se omitiram o pronome relativo e o verbo auxiliar.[3] E o gerúndio corresponde a uma expressão de infinitivo precedido de a.

Depois dos estudos de Otoniel Mota, Said Ali e Cláudio Brandão, ficou comprovada, pelo menos, a frequência com que em autores portugueses ocorre o gerúndio como forma equivalente do particípio presente latino.

Em lúcido resumo da questão, reconhece Clóvis Monteiro (1943, p. 18-21) que “autores nossos têm abusado do emprego do gerúndio com função adjetiva, como se fosse ele sempre indispensável ou insubstituível.” Aí (parece-nos) é que bate o ponto: – “...como se fosse ele sempre indispensável ou insubstituível.” Temos que, exceto como forma progressiva, ou em algumas construções que se cristalizaram na gíria administrativa (...assinou decreto, nomeando fulano de tal...) – repugna à índole do idioma o gerúndio que não modifique diretamente um verbo anterior.

Mais uma vez, revela-se Rui extremado purista; exemplos:

1) – de gerúndio progressivo:

Vede Jesus despejando os vendilhões do templo, ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota. (18)

Ouvi, no poema de Jó, a voz do Senhor, perguntando a seu servo onde estava, quando o louvavam as estrelas da manhã... (30)

2) – de gerúndio com função adverbial:

...e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. (11)

Entrelaçando a colação do vosso grau com a comemoração jubilar da minha, e dando-me a honra de vos ser eu paraninfo, urdis, desta maneira, no ingresso à carreira que adotastes, um como vínculo sagrado... (16)

...discernimos a quota de lucro, com que eles, não levando em tal o sentido, quase sempre nos favorecem. (22-23)

Bem, poderia ser que, barbarizando-se com esses modelos, antepusessem elas, enfim, a justiça ao parentesco... (46)

...e, em vos sentindo incapazes de uns [postos], buscar outros... (39)

Eram dois prenúncios de uma alvorada, que doirava os cimos do mundo cristão, anunciando futuras vitórias da liberdade. (49)

 

VII

Em matéria de colocação de pronomes átonos, escrupuliza Rui em não delirar do rigorismo gramatical mais severo. De maneira geral, faz anteceder o pronome ao verbo, nos casos facultativos.

Não querendo alongar esta página, dispensamo-nos de copiar os numerosos passos da Oração aos Moços (que todos foram devidamente catalogados), onde se vê, sem exceção, o pronome átono antes do verbo nas orações negativas e nas subordinadas desenvolvidas de quaisquer espécies. Exagera-se tanto a observância desse princípio – a anteposição nas orações subordinadas – que mesmo as orações de porque explicativo,[4] nas quais se faculta a posposição, trazem sistematicamente o pronome antes do verbo. Eis os lugares:

Não é trabalho digno de tal nome o do mau; porque a malícia do trabalhador o contamina. (26)

Não é oração aceitável a do ocioso; porque a ociosidade o dessagra. (26)

...e proponde-vos caprichar nelas com dobrado rigor; porque, para sermos fiéis no mundo, o devemos ser no pouco. (41)

Decisivo é o trecho seguinte, em virtude do afastamento ente a conjunção e o pronome:

Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação. Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis, – em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça. (37)

Igual cuidado se patenteia nos casos de verbo antecedido de advérbio:

...ainda me consentiu o encanto de vos falar... (11)

Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço... (13)

Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis. (19)

Então a palavra se eletriza... (20)

Na coordenação – diz Epifânio Dias – os pronomes átonos, quando pospostos ao verbo, repetem-se junto de cada verbo: depois de saudar-me e abraçar-me; quando antepostos, podem subentender-se do primeiro verbo para o segundo e seguintes: depois de me saudar e abraçar. (DIAS, 1933, § 245, p. 178)

A ênfase é que (assim completa Daltro Santos a lição do mestre português) “leva, às vezes, a repetir-se o pronome átono anteposto”. (Barreto & Laet, p. 28, nota 6)

Rui, como sempre, explora todos os recursos da língua:

a) – exemplos de pronome somente junto do primeiro verbo:

...a lei se deslegitima, anula e torna inexistente... (36)

Destarte se incrementa e desmanda ele... (41)

Mas a geral habitualidade e a conveniência geral o entretêm, inocentam e universalizam. (41)

A intrepidez do juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam e fascinam. (45)

b) – exemplos de repetição do pronome, junto de todos os verbos:

...sempre o evangelizou com entusiasmo, o procurou com fervor e o adorou com sinceridade. (22)

...a que ponto o acerbo das paixões a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. (22)

Ao infinito impessoal precedido de preposição se antepõe, em regra, o pronome; (cf. o nº 160 do manuscrito):

...o encanto de vos falar... (11)

...só os ignorantes estarão em termos de o governar. (34)

Os códigos se cansam debalde em o punir. (41)

...em lugar de os ouvir a todos... (42)

...ao escândalo de se dar em espetáculo à terra toda... (51)

Nas expressões dos verbos poder, saber, ir e outros, acompanhados de infinitivo (Cf. ALI, 1930, p. 83 e BARRETO, 1916, p. 78), predominam, também, os casos de anteposição:

Ninguém, cabendo-lhe a vez, se poderá furtar à entrada. (25)

...de uma qualidade, ao menos, me posso abonar a mim mesmo... (40)

Ninguém vos saberá informar por quê, (33)

...pesai bem que vos ides consagrar à lei... (36)

...nas dificuldades em que se vão enlear os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares da lei... (36)

Ninguém... se conseguirá evadir à saída. (25)

...e muito menos tentarei explaná-la. (40)

...os que intentais exercita-vos... (34)

É promíscuo o emprego nas expressões de auxiliar + gerúndio:

Estou-vos abrindo o livro da minha vida. (21)

...frequentemente acaba o tempo convencendo-me... (23)

A natureza nos está mostrando com exemplos a verdade. (29)

Apontem-se, por termo, os seguintes lusismos:

Quantas [vezes] nos não vem conversar, afável e tranquila, ou pressurosa e sobressaltada...? (15)

Já me não era pouco a graça... (17)

Mas, se o não soube imitar nas artes medrançosas de político... (17)

Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta versão... (21-22)

...que nos não façam ainda maior bem. (22)

se o veto dos meus adversários, sistemático e pertinaz, me não houvesse poupado aos tremendos riscos dessas alturas... (23)

...quando o torrão já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia. (31)

Mas, se cair em erro, o pior é que se não corrija. (46)

...não sei se a emoção me não atalhará o juízo... (41)

 

VIII

Em vez do esquema mandou-o despir as armas, ou mandou-lhe despir as armas, ou mandou que ele despisse as armas, encontramos em Rui o tipo menos comum, mas por igual excelente: mandou-lhe que despisse as armas.

Exemplo:

Já o jurista começava a olhar com os primeiros toques de saudade para o instrumento, que, há dez lustros, lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta... (16)

Sintaxe idêntica, com outro dos verbos que entram nessas construções, é a destes versos de Cristóvão Falcão (SILVEIRA, 1945, p. 83-84):

Quisera-o eu consolar,
mas em cujo poder ia
não me deu a mais lugar
que ouvir-lhe que dezia:
“O’ Guiomar, Guiomar,
em vós pus minha esperança...”

Tem-se afirmado que, nas construções dos verbos fazer, deixar, mandar, ouvir e ver ligados a infinitivo, só tem cabimento junto a eles o pronome lhe(s), no caso de ser o infinitivo acompanhado de objeto direto: “Vi-lhe fazer um gesto.” (ASSIS, s/d., p. 1]

Entretanto, Castilho, em bela passagem do Tratado de metrificação portuguesa” (Lisboa, Tipografia Nacional, 1889, p. 48), abona o emprego da forma lhes, pertencente para mandar, não obstante ser destituído de complemento o infinitivo seguinte.

Exemplo:

Primeiro aprendeu a dar com um pobre lápis algumas retas e curvas sem significação; boquejou parte por parte, mas desconexas e mortas as feições humanas, depois compôs a cabeça, nela veio alvorecendo a vida; juntou o corpo e a atitude, compôs os grupos, mandou-lhes sentir, e falar; às plantas, que vegetassem; ao céu, que resplandecesse; às correntes, que fugissem; à natureza inteira, que saísse do nada!

 

IX

Na frase

“Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não.” (12), surpresa, à primeira vista, (como surpreendera, já o “tolerem-me o arrojo...”, pouco antes empregado) o pronome lhes, pois que, em toda a Oração aos Moços, o tratamento usado é o da 2ª pessoa do plural.

Todos sabemos que a mudança de tratamento corresponde, em regra, a variações afetivas do escritor, que ora se quer mostrar íntimo e compreensivo; ora afeta cerimônia, ou sisudez; ora, agressivo, investe; ora suplica; ora castiga; ora perdoa.

Soberbo exemplo de mudança de tratamento, ditada pelo império tempestuoso da paixão, oferece-no-lo o príncipe do Romantismo português, no drama “O Alfageme de Santarém”. Quem fala é o padre Froilão, dirigindo-se a D. Nuno Álvares Pereira, Condestável do Reino. Froilão, que fora preceptor de D. Nuno, estava na suposição de que, com a aquiescência deste, ou pelo menos, com o seu conhecimento, é que fora preso, por traidor, o velho Alfageme de Santarém. E, revoltado, exprobra-lhe publicamente o proceder.

Na violência da sua acusação, trata D. Nuno ora por vós (quando se dirige à personalidade do poderoso Condestável), ora por tu (quando, com a autoridade de antigo preceptor, se dirige amargamente ao amado pupilo de outros tempos):

– “Ouvis bem, Nuno Álvares Pereira? Por traidor o Alfageme de Santarém, o marido de tua irmã!... E por ordem desse rei, que vós fizestes rei para nos libertar, para nos catar nossos foros, para nos guardar justiça! Ouves isto, Nuno Álvares Pereira? Ouvis, senhor Condestável do Reino, senhor conde de Ourém? – Quantos mais títulos e honras e senhorios e mercês e grandezas tendes, para vou eu chamar por eles todos, e vos dizer... para te envergonhar com eles todos, Nuno, e te dizer: “És tudo isso, Nuno, D. Nuno; olha agora o Alfageme, o homem do povo, e vê o que lhe fizeste!” (GARRET, p. 146)

Mas o presente caso de Rui, ao nosso parecer, tem outra explicação; porque o lhes não se refere aos bacharelandos a quem o orador falava, mas a um sujeito indeterminado, exatamente como Alexandre Herculano, logo no começo de “A Dama-Pé-de-Cabra’:

Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem nas tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia.

E não me digam no fim: – “não pode ser” –. Pois eu sei cá inventar coisas destas? Se a conto, é porque a li num livro muito velho, quase tão velho como o nosso Portugal. (HERCULANO, 1877, II, p. 7)

1.3.                       A construção da frase. Tom explicativo

Na estrutura da frase de Rui, merecem comentados, em especial, os seguintes aspectos:

I – variedade de processos sintáticos;

II – sábio doseamento do período longo com o curto;

III – predomínio da ordem inversa;

IV – tom acentuadamente explicativo.

 

I – A própria evidência escusa o fastio de carrear exemplos que documentem a variedade dos processos sintáticos. Consigne-se tão somente a preferência da subordinação, modalidade mais adequada ao vigor da prosa oratória, por isso que concorre para a maior amplidão e majestade do período. Dentre as coordenadas, elegem-se por prediletas as adversativas (mormente com senão) e as alternativas. A atenuar a reiteração dos conetivos, aparece, com relativa insistência, a justaposição.[5] Baste um exemplo:

E quando lhe digo, na oração dominical: “Perdoai-nos, Senhor, as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, julgo não lhe estar mentindo... (21)

 

II – Muito característica é a presença, em série, de duas, três e, às vezes, quatro orações curtas, no meio de períodos mais ou menos extensos; assim, avultam elas de valor expressivo, não só pelo imprevisto da mudança, senão também pela pausa maior com que se proferem.

Exemplos:

Era presunção, era temeridade, era inconsciência insistir na insana pretensão da minha fraqueza. Só um predestinado poderia arrostar empresa tamanha. Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ventos. Não os venci. Venceram-me eles a mim. Era natural. Deus nos dá sempre mais do que merecemos. Já me não era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao céu) de abrir os olhos à realidade evidente da minha impotência, e poder recolher as velas, navegante desenganado, antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada. (17)

Estudante sou. Nada mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas.

Muitas lendas se têm inventado, por aí, sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados na água fria. Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorro a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do sono. (31)

 

III – No ímprobo labor de preservar a boa tradição literária, arrostou Rui o estigma de escritor rebuscado e artificial. A verdade é que, não obstante haver cultivado com desvelo a ordem inversa, sua frase jamais deixou de ser inteligível à primeira leitura.

Escolhamos um, dentre os copiosíssimos exemplos de inversão:

Quanto é pela minha parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor do que me acontece, frequentemente acaba o tempo convencendo-me de que não me vem das doçuras da fortuna propícia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo, principalmente, às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte madrasta. (23)

 

IV – O tom explicativo atravessa, de ponta a ponta, a Oração aos Moços.

Dir-se-ia que o orador, afeiçoado aos rigores da dialética, se esmerava em apresentar os pensamentos de forma tal, que não se lhes pudesse oferecer contestação. Com esclarecê-los e avigorá-los, tornava-os convincentes e indiscutíveis, o que lhe dava autoridade à pregação, e a íntima certeza de que ela não deixaria de frutificar.

Exemplos: (com a palavra porque, depois de ponto e vírgula, ou de ponto):

Mas a comoção foi salutar; porque o espírito encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que, afinal, me chegava eu a conhecer a mim mesmo... (16-17)

Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais das vezes, rebenta agressiva e daninha, muitas outras, oportuna e necessária, constitui o específico da cura. (19)

Não é trabalho digno de tal nome o do mau; porque a malícia do trabalhador o contamina. (26)

Não é oração aceitável a do ocioso; porque a ociosidade o dessagra. (26)

Um homem (nessas terras de promissão) que nunca se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma, tido e havido é por corrente moente no que quer que seja; porque assim o aclamam as trombetas da política, do elogio mútuo, ou dos corrilhos pessoais, e o povo subscreve a néscia atoarda. (33)

Moços, se vos ides medir com o direito e o crime na cadeira de juízes, começai, esquadrinhando as exigências aparentemente menos altas dos vossos cargos, e proponde-vos caprichar nelas com dobrado vigor; porque, para sermos fiéis no muito, o devemos ser no pouco. (41)

Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais mal defendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos. (44)

Melhor será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro, o pior é que se não corrija. E, se o próprio autor do erro o remediar, tanto melhor; porque tanto mais cresce, com a confissão, em crédito de justo, o magistrado, e tanto mais se soleniza a reparação dada ao ofendido. (46)

Os “maus” só lhe inspiram tristeza e piedade. Só “o mal” é o que o inflama em ódio. Porque o ódio ao mal é amor do bem, e a ira contra o mal, entusiasmo divino. (18)

Que extraordinário, que imenso, que, por assim dizer, estupendo e sobre-humano, logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação. s, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das leis, – em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injusta, lhes poderão moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça. (37)

Veja-se, agora, a que ponto lhe ia o cuidado de ser explícito; aprecie-se a exegese que faz (e com que preocupação de ser bem compreendido o faz) deste lugar de São Paulo: “Bona est lex si ea legitime utatur” – :

Quereria dizer: Boa é a lei, quando executada com retidão. Isto é: boa será, em havendo no executor a virtude, que no legislador não havia. Porque só a moderação, a inteireza e a equidade, no aplicar das más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que encerraram. Ou, mais lisa e claramente, se bem o entendo, pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má, quando “inexecutada”, ou “mal executada” (para o bem), que a boa lei, sofismada e não observada (contra ele). (37)

Ainda com partículas explicativas (isto é, a saber):

Vede agora os que intentais exercitar-vos na ciência das leis, e vir a ser seus intérpretes, se de tal jeito é que conceberíeis sabê-las e executá-las. Desse jeito; isto é: como as entendiam os políticos da Grécia, pintada pelo mestre de Platão. (34-35)

– Mas, sendo uma oligarquia quem mande, isto é, um diminuto número de homens, serão, ainda assim, respeitáveis “as leis”? (35)

Ora, senhores bacharelandos, pesai bem que vos ides consagrar à “lei”, num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento “da maioria”, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e desmandam em tudo; a saber: num país, onde, verdadeiramente, “não há lei”, não há, moral, política ou juridicamente falando. (36)

1.4.                       Ecos de um passado literário

Arcaização e classicismo, o preciosismo

A Rui, têm-no tachado, muitas vezes, de escritor precioso pela ancianidade da linguagem, condenando-o, assim àquela “fossilização em vida”, contra a qual, ferido da injustiça, ele protestou tão amargamente da Réplica (nº 483). Se por escritor arcaizante entendermos aquele que se acastela numa forma anacrônica quase obsoleta, estranho ao gosto e ao sentimento da sua época – uma voz solitária e distante –, logo sentiremos o leviano, talvez o malévolo, da acusação. A sua gramática (já o tentamos demonstrar) propende antes ao contemporâneo; é límpida a inteligência de sua frase; o vocabulário – abundante e culto –, literariamente vivo.

Grande pena do seu tempo, mas profundo conhecedor dos autores portugueses de todos os tempos, logrou realizar o que somente a poucos teria sido possível: explorou conscientemente o passado literário, como elemento ornamental de estilo. Viu na vetustez uma garantia estética e – artista – não na quis desprezar:

Guardadas as leis, talvez indefiníveis, mas sentidas e instintivas, do bom gosto, as da propriedade e conveniência no escolhê-los, as da moderação no ousá-los, as da oportunidade no tentá-los, as do tato no expô-los, de modo que a frase, onde se insinuam, ou encravem, lhes alumie e patenteie o sentido, insigne serviço fazem os bons escritores à sua língua, reempossando-a no gozo de vocábulos e torneios antigos deixados esquecidos por injustos desprezos do tempo. (Réplica, nº 491)

A essas “leis, talvez indefiníveis, mas sentidas e instintivas, do bom gosto, as da propriedade e conveniência no escolhê-los...” – às do bom gosto, sobretudo – obedeceu com singular fervor, pouco lhe importando o rigorismo artificial das fronteiras cronológicas.

Eclético, cultivou formas anteclássicas a par de formas clássicas, gramática do século XIX ao lado de giros medievais. Para criar beleza, não perguntava à língua quantos anos tinha:

Usado a buscar nas fontes antigas os veios preciosos do ouro fino, que elas escondem ao modernismo pretensioso e ignaro, amo e uso também a linguagem de meu tempo, esforçando-me, entretanto, por lhe evitar os defeitos. (Réplica, nº 31)

Para ele, essas “fontes antigas” eram, quase sempre, os seus queridos clássicos, especialmente os prosadores exemplares do século XVII.

Vejamos alguns[6] dos seus preciosismos sem idade:

ACERTAR + DE + INFINITIVO (= acontecer, suceder):

Uma vez que Alcibíades discutia com Péricles, em palestra registada por Xenofonte, acertou de se debater o que seja “lei”, e quando exista, ou não exista. (35)

É sintaxe que vem do período anteclássico, frequente na fase clássica e conservada como preciosismo até os nossos dias:

Acertei passar hum hora,
Hum serrado de centeo;
E vi dentro gado alheo;
Entrei polo lançar fora. (LOBO, 1928, p. 45)

Machado de Assis, que não era escritor rebuscado, não lhe conseguiu fugir o império:

Menino escravo que [ela = índia] tinha
Acerta de ali passar;
Niâni atentando nele
Chama-o para o seu lugar. (ASSIS, 1901, p. 212)

...cada um dos presentes acertou de contar uma anedota. (ASSIS, s/d., p. 150)

ASSIM QUE (= de sorte que):

Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros, mas de ao pé, de em meio a vós... (12)

Assim que a benção do paraninfo não traz fel. (18)

Enxameiam nos clássicos exemplos dessa conjunção consecutiva, que depois de ponto, entra também adverbialmente em orações principais, com valor conclusivo. (DIAS, 1933, p. 284, § 392).

CONSIDERAR EM:

...entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana... (22)

Considerai, pois, nas dificuldades, em que se vão enlear os que professam a missão de sustentáculos e auxiliares da “lei”, seus mestres e executores. (36)

CONVERSAR + OBJETO DIRETO:

Quantas [vezes] nos não vem conversar [uma imagem cara], afável e tranquila, ou pressurosa e sobressaltada...? (15)

Acreditamos que aí venha empregado com a significação de “tratar com familiaridade, frequentar a intimidade, conviver”, segundo uso comum na fase clássica, persistente entre românticos.

DENTRO EM:

...então (e por isso mesmo) é que mais à vista do coração estamos; não só bem à sua vista, senão bem dentro nele. (12)

Lá está, nos números 367 e 368 da Réplica: “Assim se escreveu e tem escrito, desde que existe o nosso idioma” – a que se segue abundante exemplificação.

“É dentro em locução prepositiva corrente no português antigo”, confirma o insigne Mário Barreto (1911, p. 281, nota).

DIZER DE NÃO:

Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. (12)

Fórmula de negar, que corresponde a dizer que não. Prende-se possivelmente a uma equivalência românica geral entre que e de. (Cf., em português, a dualidade mais de... mais que, e ter de... ter que.)

A construção vem do período dos trovadores:

Se lh’al disser’, non me dirá de non. (VASCONCELOS, 1904, 1619)

e non diredes vos por én de non? (VASCONCELOS, 1904, 5329)

Tal companhon foi Deus filhar
no bom rei, a que Deus perdon,
que jamais non disse de non
a nulh’omen por lh’algo dar... (VASCONCELOS, 1904, 10245)

Aprendeu-a Rui provavelmente com Vieira, que lhe deu a ela gasalhoso acolhimento:

Pois esta é a razão porque Deus, que nos trata como filhos, nos diz muitas vezes de não, e nos nega o que pedimos. (VIEIRA, 1944, I, p. 338)

...eu, diz o Anjo, não lhe posso conceder o partido, e é força responder-lhe de não... (VIEIRA, 1944, II, p. 91)

Esse torneio, o dir de nò dos italianos, foi corrente nos castelhano arcaico e chegou, nessa língua, até o século XVI. Eis sobre o assunto a informação do ilustre Hayard Keniston (1933, p. 67): "The use of de for que is extremely rare in the sixteen century". (Cf. tb. PIDAL, 1945, p. 124):

Loz, 182:

quien diria de no a tales convidadas? (possibly due to Italian influence). Flo, 15: El Rey... siempre dezia de no. (the anecdote is toldo of Fernando V and may reflect archaic expression).[7]

Desacerta, portanto, Morais, repetido por Mário Barreto (1922, tomo II, p. 89), ao dizer que “este é talvez um dos mui raros italianismos de Vieira...”

HAVER (vários casos):

1)     – ...até dardes com os tesoiros, que aí vos haja reservado, com ânimo benigno, a dadivosa Providência. (28)

Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister... (39-40)

...onde vos venha ao encontro o dever, que a Providência vos haja reservado. (39)

Mas, a par disso, e na mesma página:

Experimentai-o como eu o tenho experimentado. (39)

...como eu as tenho resignado. (39)

O auxiliar haver, que na língua antiga alternava com ter na formação dos tempos compostos, passou, no português contemporâneo, a pertencer quase exclusivamente “à linguagem seleta” (DIAS, 1933, p. 107, p. 139), como sinal de aristocratização do estilo. Sobre o que de “solene e arcaizante” existe nesse uso, escreveu M. Paiva Boléo (1937, p. 26) interessantes observações, a propósito da preferência que lhe votava Alexandre Herculano.

2)     – Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie. (39)

...prestai-lhes o crédito, a que a sua dignidade houver direito. (47)

...e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem... (43)

Sousa da Silveira (1937, p. 330, § 526, 2.a) anota: “usadíssimo no português de outrora, raro no atual.”

Sem dúvida, são excelentes as abonações clássicas:

Tende sempre mão em mim,
porque hei medo de empeçar
e de cair. (VICENTE, in SILVEIRA, 1945, p. 279)

Hei medo de deixar nome de injusto. (FERREIRA, in SILVEIRA, 1945, p. 199)

E, em Os lusíadas (CAMÕES, 1931):

Hão medo de perder autoridade. (X, 112)

......................................................
Que, havendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente se temia. (I, 97)

E, ainda, nos seguintes lugares: II, 29; VII, 78.

3)   – ...até o extremo de se haverem, quando lhes pica o orgulho, com os juízes vitalícios e inamovíveis de hoje, como se haveriam com os ouvidores e desembargadores d’El-Rei Nosso Senhor... (45)

Na forma reflexa, com o valor de proceder, portar-se, é antiquíssimo o verbo haver. Na Réplica (nº 281), Rui, que o aponta como um dos substitutos de que dispõe o idioma para evitar o peregrino agir, apresenta exemplos numerosos, firmados por escritores de todos os séculos (de D. Duarte a Machado de Assis). Contudo, o certo é que o fato tem progressivamente escasseado em nossos dias.

NADO:

Não vos fieis muito de quem esperta já sol nascente, ou sol nado. (29)

Arcaísmo muito usado por Castilho, e encontradiço, com relativa raridade, em literatos brasileiros. Gonçalves Dias (In: BANDEIRA, 1937, p. 76) chega a pô-lo na boca de um índio velho, em conhecida passagem do “I-Juca Pirama”:

– Tardaste muito!
Não era nado o sol, quanto partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!

A locução latina rem nata –, cousa nascida, deu origem, no português arcaico, a rem nada, simplificada em nada, alguma cousa, que, em orações negativas, tomou a acepção atual; esta, generalizando-se, passou a ser o sentido único da palavra. Compare-se, no Cancioneiro da Ajuda, 7249, homem nado, alguém; 299, 3746: nulh’home nado, ninguém. (MAGNE, 1944, III, p. 270)

O A QUE, O A QUEM etc...

Eis torneios meramente literários, nos quais, com se evitar o fraseado comum (é sistemático não aparecer o antecedente “aquele”, ou “aquilo”), se dá ao período certa riqueza de acabamento e nobre dignidade artística:

...e, negando-me a divina bondade um momento de tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia ter tido a inconsciência de aspirar. (11)

Mergulhou-se, então, cada vez mais no estudo; e daí com estupenda mudança, começa a deixar ver o a que era destinada aquela extraordinária cabeça... (27)

Todos os pais aconselham, se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos. Os meus serão os a que me julgo obrigado, na situação em que momentaneamente estou, pelo vosso arbítrio, de pai espiritual dos meus afilhados em letras, nesta solenidade. (40)

Assim me perdoem, também, os a quem tenho agravado, os com quem houver sido injusto, violento, intolerante, maligno, ou descaridoso. (21)

...antes de averiguarmos se os culpados não se achariam aqui mesmo, entre os a quem se depara, nestas cegas agitações de ódio a outros povos, a diversão mais oportuna dos nossos erros e misérias intestinas. (52)

PRÁTICA: (= conversação, fala):

Quantas outras não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo, e com eles renovar a prática interrompida... (15)

Afigura-se-nos, salvo melhor juízo, que a palavra esteja usada no legítimo sentido antigo, como neste passo de André de Resende:

Teve o prior prática com os religiosos antíguos e discretos, (= ponderados, assisados) se o mandaria lá ir, assi por nom estar em uso sair jamais frei Pedro fora do mõesteiro, como por nom parecer que folgavam de assoelhar (= divulgar) a santidade que das portas a dentro tinham. (RESENDE, 1947, p. 153)

PREDICATIVO:

Na construção do predicativo, prevalece o gosto clássico de antecede-lo de “por”, preferentemente a outras preposições:

...ter-se por dogma que um homem... (34)

...os liberais tinham por artigo do seu programa cercear os privilégios, já espantosos, da Fazenda Nacional. (44)

...e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada. (43)

Mas todo o mundo vo-lo dará por líquido e certo. (33)

...quando sua visão tem por limite a do nervo ótico... (13)

Tenham por averiguado que, onde quer que o colocarem, dará conta o sujeito das mais árduas empresas... (33)

Agora, com “em”:

E, assim, está o coração, cada ano, cada dia, cada hora, sempre alimentando em contemplar o que não vê, por ter em dote dos céus a preexcelência de ver... (14)

Repare-se neste elegantíssimo uso de “à conta de”:

Ouvistes o aldrabar da mão oculta, que vos chama ao estudo? Abri, abri, sem detença. Nem, por vir muito cedo, lho levais a mal, lho tenhais à conta de importuna. (29)

A par disso, o emprego de “como”, espontâneo e corrente:

...de havê-los como cidadãos perigosos... (34)

Também não deixa de figurar o predicativo sem preposição. Por coincidência, nos dois exemplos que ocorrem, o predicativo pertence para o verbo chamar, o que constitui um lusismo dos mais característicos:

Como vedes, senhores, para me não chamarem a mim revolucionário, ando a catar minha literatura de hoje nos livros religiosos. (46)

– Sim; Vejo agora que errei em chamar “leis” às ordens de um tirano... (35)

PRIMEIRO QUE:

Ninguém, senhores meus, que empreenda uma jornada extraordinária, primeiro que meta o pé na estrada, se esquecerá de entrar em conta com as suas forças por saber se a levarão ao cabo. (24)

Abraçai a (= estrada) que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos. Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister... (39-40)

Mas, quando se avizinha o volver da luz, muito antes que ela arraie a natureza, e ainda primeiro que alvoreça no firmamento, já rompeu na terra em cânticos a alvorada... (29)

Ordinariamente, soma essa conjunção à mera ideia de relação temporal algo da ideia de intenção, de coisa premeditada. Tal matiz é visível nos dois primeiros trechos de Rui.

Um exemplo de primeiro que, no “Crisfal”: (In SILVEIRA, 1945, p. 120)

Muito vos quis bem primeiro
que de riquezas soubesse;
pois meu amor verdadeiro,
de quem só sois interesse,
quem me faz interesseiro.

SER + O + QUE etc.:

E não és tu só o que te vejas nessa condição... (34)

Quantas outras não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo...? (15)

Só o mal é o que o inflama em ódio. (18)

– Mas que é o que determina esse povo? O bem, ou o mal?... (35)

...onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mas impopulares e menos respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e desmandam em tudo... (36)

O falar hodierno – diz Said Ali (1931, p. 75 da Parte II) –, continuando embora a dar ao verbo da segunda oração terminações de 1ª, 2ª e 3ª pessoa de acordo com o sujeito do verbo ser, difere todavia da praxe antiga em enunciar o relativo que prescindindo do antecedente o, a, os, as.

Rui manteve a sintaxe clássica, usada até os fins do século XVIII.

1.5.                       Valores semânticos do vocabulário

Indignação, resistência e combate. Amor ao grandioso e do sublime. Misticismo.

O vocabulário de Rui sugere, principalmente, essas quatro atmosferas estilísticas que se apontam por subtítulo.

A reunião íntima desse tom de indignação e de resistência e combate ao misticismo e ao amor da grandiosidade e do sublime comunicam à sua prosa aquele profetismo bíblico, que revoa pelas páginas da Oração aos Moços, num misto de perdão e intolerância, de suavidade e maldição.

1 – palavras ligadas, de qualquer modo, à ideia de “indignação”:

corrupção política (18)

o inflama em ódio (18)

o Jesus iroso (18)

o Jesus do látego inexorável (18)

açoita os maus (18)

a hora da conta e do castigo (20)

expulsar do templo (20)

o renegado, o blasfemo, o profanador, o simoníaco (20)

exterminar da ciência (20)

o apedeuta, o plagiário, o charlatão (20)

banir da sociedade (20)

o imoral, o corruptor, o libertino (20)

varrer dos serviços do Estado (20)

o prevaricador, o concussionário e o ladrão público (20)

prostituição política (20)

rebenta...a indignação(21)

[a ira...rebenta agressiva e daninha][8]

golfa a cólera em borbotões (21)

baixos e abomináveis sofismas (44)

a peste das parentelas, em matérias de governo (46)

inexorável mercantilismo (50)

a velha política, desalmada, mercantil e cínica (50)

reinado ímpio da ambição e da força (50)

vil questão de interesses (51)

dos nossos erros e misérias (52)

nobre nação explorada! (53)

2 – palavras que, por uma forma ou por outra, sugerem as ideias de “resistência e combate”:

o arrojo de afrontar (12)

não hajais medo (39)

fugir do medo (44)

e não conhecer cobardia (44)

a nada se dobre (44)

e de nada se tema (45)

não tergiverseis (45)

não receeis (45)

a intrepidez do juiz (45)

que os enfrentam (45)

a sua autoridade não torça à exigências (45)

não transijais (47)

regeneração (48)

nem quebrar da verdade ante o poder (48-49)

Amigos meus, não! (51)

Ó, senhores, não, não e não! (51)

Daí não se retrocede facilmente (52)

sem quebra da seriedade e do decoro (52)

Não nos temamos (52)

3 – palavras que, direta ou indiretamente, encerram a ideia de “grandiosidade” e sublimidade”:

solenidade imponente (11)

assombro fisiológico (13)

prodígio moral (13)

incomensurável desconhecido (13)

pela grandeza da pátria e sua liberdades (16)

jornada extraordinária (24)

o que as ciências cresceram, é incomensurável (28)

a distância é infinita (28)

Que extraordinário, que imensurável, que,

por assim dizer, estupendo e sobre-humano (37)

Essa elevação me impressiona (41)

proporções incalculáveis (41)

espantosa imensidade (5)

cataclismo cósmico (50)

tormentas catastróficas (50)

desmoronamento pavoroso (50)

movimento desvairado (51)

4 – palavras que, com maior ou menor precisão, implicam a ideia de “misticismo”:

grande benção (11)

ao nosso sacerdócio (11)

divina bondade (11)

altares (12)

campanários (12)

orações (12)

credo (12)

verdadeiro milagre (12)

Milagre do maior dos taumaturgos (12)[9]

Milagre de quem respira entre milagres (12)

Milagre de um santo (12)

sacrário do seu peito (12)

Milagre do coração (12)

a centelha divina (13)

lâmpada sagrada (14)

vínculo sagrado (16)

erguia as mãos ao céu (17)

bandeira sagrada (17)

bênção do paraninfo (18)

Via Dolorosa (18)

a esponja no Gólgota (18)

vendilhões do templo (18)

inspiração religiosa (19)

amor santo (19)

cólera da mansuetude (19)

face também celeste do amor (19)

o púlpito (19)

essas faúlhas da substância divina (19)

consciência religiosa (20)

cólera santa (20)

ira divina (20)

santidade suprema (20)

pela mais sacrílega das opressões (20)

o evangelizou com entusiasmo (22)

o adorou com sinceridade (22)

purificação gradual (22)

divino legislador (22)

catecúmeno (24)

bispos e pontífices (24)

o apóstolo das gentes (37)

carreiras quase sagradas (39)

jurar pelo valor dos seus conselhos (40)

essas três fés, esses três signos santos (39)

verdadeira cruzada (52)

E as referências ao nome de Deus:

Não quis Deus (11)

elevando ao Criador as mesmas orações (12)

outorgou-lhe o Senhor que ainda veja (13)

até Deus mesmo (13)

e Deus assim o preserve (14)

Deus nos dá sempre mais do que merecemos (17)

do que o Deus vivo no de Pilatos (18)

mas da Providência, fatal nas suas soluções (18)

Vede Jesus... Jesus... Cristo... Jesus... Jesus... Jesus... Jesus... (18)

cólera que reflete a de Deus (19)

do celeste inimigo dos vendilhões... (20)[10]

Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado. (21)

Perdoai-nos, Senhor (21)

pelo contacto com Deus (26)

O Criador começa, e a criatura acaba a criação de si própria (26)

está em oração ao Senhor (26)

pelo divino Criador (27)

a dadivosa Providência (28)

a voz do Senhor (30)

levantardes mais cedo a Deus a oração do trabalho (30)

quando Deus quer (34)

Não há justiça, onde não haja Deus (47)

está clamando por Deus (48)

guardar fé em Deus (49)

Deus sabe (50)

Assim o queira Deus. (53)


 

1.6.                       O senso rítmico e a ênfase oratória. Sentimento de simetria

Por mais que, muitas vezes, apresentem efeitos coincidentes, não é lícito confundir ritmo e metro. Enquanto este se caracteriza pela regularidade do intervalo entre dois acentos (há um número fixo de sílabas entre eles, número previsto para cada espécie de verso), subordina-se aquele a condição mais sutil: depende da duração desse intervalo, pouco importando o número de sílabas entre um e outro. (Cf. GROOT, 1933, p. 326-332)

Muito mais complexa que a harmonia do verso, resultado de uma limitação aos esquemas do metro, é a harmonia da prosa, por sua própria liberdade maior. Nesta, o que lhe dá riqueza rítmica é a sucessão das várias unidades melódicas, isto é, pequenos grupos de forma musical determinada e com uma significação própria dentro do sentido total da oração.

En la división de un texto en unidades melódicas influyen circunstancias de orden lógico y emocional. El realzar y avalorar los elementos semánticos de la oración favorece el aumento de unidades melódicas. Influye, además, como elemento idiomático particular, el sentimiento de la medida o compás predominante en la estructura rítmica de cada lengua. (TOMÁS, 1939, p. 3)

Em português, a unidade melódica mais frequente é a de 5 a 10 sílabas, principalmente a de 7, tipo lusitânico por excelência, particularmente adequado aos bailados de roda, o qual se deve considerar de raiz nacional e popular. Há orações ritmicamente simples, com uma só unidade de entonação; e as há compostas, com um ramo ascendente (prótase) e outro descendente (apódose). Cada um desses ramos, por seu turno, pode abranger várias unidades melódicas, em uma infinidade de combinações.

A construção fonológica da prosa de Rui tende geralmente a criar efeitos de harmonia pela disposição simétrica das unidades melódicas. Cultivou ele com tanto amor essa qualidade rítmica da prosa, que acabou por endurentá-la em paralelismos e antíteses, entrelaçamentos e repetições de membros similicadentes, processos em que, como nenhum outro prosador de língua portuguesa, exceto Vieira, põe a harmonia a serviço da ênfase oratória.

Antes de apreciarmos esses tão característicos recursos rítmicos baseados na simetria, mostremos que ele por igual se preocupou com inserir em sua prosa magníficos exemplos de metros tradicionais; eis alguns:

Octossílabos:

...as grandes causas nacionais,
as grandes causas populares,
as grandes causas sociais... (20)

...o vago mistério do espaço. (13)

Eneassílabos:

– A expressão da vontade do povo... (35)

Nem toda ira, pois, é maldade. (19)

Decassílabos:

Milagre do maior dos taumaturgos. (12)

Não há justiça, onde não haja Deus. (47)

Não cortejeis a popularidade. (47)

Confiai, senhores. Ousai. Reagi. (39)

Hendecassílabos:

Tão pouco medeia do Rio a S. Paulo. (16)

Os maus só lhe inspiram tristeza e piedade. (18)

Dodecassílabos:

Dele se retirou a centelha divina. (13)

...presente ao céu e à terra, a todos nós presente. (13)

...as grandes causas da consciência religiosa. (20)

 


 

RITMO TERNÁRIO

A sequência de três unidades melódicas é uma das características mais salientes do estilo oratório de Rui,[11] Atente-se para esta abundante exemplificação[12]:

1 – nos substantivos:

Pois não sabemos que, com os antepassados, vive ele da memória, do luto e da saudade? (14)

...vive ele de , esperança e sonho? (14)

Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo presença. (14)

Pobres clientes estas, entre nós, sem armas, nem oiro, nem consideração... (17)

...com que habilitar o mísero advogado a sustentar-lhes com alma, com dignidade, com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. (17)

Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume, nem despeito. (18)

Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa... (19)

...cólera que reflete a de Deus, face também celeste do amor, da misericórdia e da santidade. (19)

...exterminar da ciência o apedeuta, o plagiário, o charlatão? (20)

...banir da sociedade o imoral, o corruptor, o libertino? (20)

...varrer dos serviços do Estado o prevaricador, o concussionário e o ladrão público? (20)

...precipitar do governo o negocismo, a prostituição política, ou a tirania? (20)

...arrancar a defesa da pátria à cobardia, à inconfidência, ou à traição? (20)

...não assenta um rancor, uma inimizade, uma vingança. (21)

Labutastes a semana toda, o vosso curso de cinco anos, com teorias, hipóteses e sistemas, / com princípios, teses e demonstrações, / com leis, códigos e jurisprudências, / com expositores, intérpretes e escolas. (24)

Chegou o momento de... praticardes familiarmente com os vossos afetos, esperanças e propósitos. (24)

Eis ao que vem o padrinho, o velho, o abendiçoador. (24)

...mestre de humildade, arrependimento e desconfiança... (24)

O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. (25)

...não são para contempladas num discurso acadêmico, nem para escutadas entre doutores, lentes e sábios. (31)

Porque só a moderação, a inteireza e a equidade, no aplicar as más leis, as poderiam, em certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que encerrarem. (37)

...e, tanto uma como a outra, imensas nas dificuldades, responsabilidades e utilidades. (39)

Deus, pátria, e trabalho. Metei no regaço essas três fés, esses três amores, esses três signos santos. (39)

Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie. Mais pode que os seus azares a constância, a coragem e a virtude. (39)

Tomais a que vos indicarem vossos pressentimentos, gostos e explorações... (39)

Observar com clareza, com desinteresse, com seleção. (40)

...e generalizando, com pausa, com critério, com desconfiança. (40)

Baste, porém, que se digam com isenção, com firmeza, com lealdade... (41)

Não cultiveis sistemas, extravagâncias e singularidades. (47)

Por esse meio lucraríeis a néscia reputação de originais; mas nunca a de sábios, doutos, ou conscienciosos. (47)

2 – nos adjetivos:

...torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes... (43)

Ora, senhores, esse poder eminencialmente necessário, vital e salvador... (38)

...o coração não é tão frívolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida. (13)

...as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as perseguições, administrativas, políticas e policiais, as que... (43)

O Brasil é a mais cobiçável das presas; e, oferecida, como está, incauta, ingênua, inerme, a todas as ambições... (52)

O mesmo se repete, com assiduidade impressionante, nos grupos nominais, quer nos de substantivo + adjetivo, ou adjetivo + substantivo, quer nos de substantivo + adjunto preposicionado; exemplos:

E, assim, está o coração, cada ano, cada dia, cada hora, sempre alimentado em contemplar o que não vê... (14)

Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a verdade constitucional, a verdade republicana. (17)

Metei no regaço essas três fés, esses três amores, esse três signos santos. (39)

Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. (31)

...o Jesus iroso, o Jesus armado, o Jesus do látego inexorável? (18)

3 – nos verbos:

... a preexcelência de ver, ouvir e palpar o que os olhos não divisam, os ouvidos não escutam, e o tato não sente. (14)

e a palavra sai, rechinando, esbraseando, chispando como o metal candente dos seios da fornalha. (21)

Gutierrez animou-o a orar, persistir, e esperar. (27)

Observar, deduzindo, induzindo, e generalizando... (40)

Observar, apurando, contrasteando, e guardando. (40)

Preguei, demonstrei, honrei... (17)

4 – na coordenação de orações:

Ora, [tudo é viver, / previvendo,] [é existir, / preexistindo,] [é ver, / prevendo.] (14)

...o [que os olhos não divisam,] [os ouvidos não escutam,] [e o tato não sente.] (14)

...neste regaço interior, [onde os mortos renascem,] [prenascem os vindoiros], [e os distanciados se ajuntam...] (14)

[Era presunção,] [era temeridade,] [era inconsciência] insistir... (17)

...as leis do bom governo, [que prosperam os Estados,] [moralizam as sociedades,] [e honram as nações.] (17)

Todos os [que nos dessedentamos nessa fonte,] os [que nos saciamos desse pão,] os [que adoramos esse ideal,] nela vamos buscar a chama incorruptível. (20)

...uma carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem, mas sempre [o evangelizou com entusiasmo,] [o procurou com fervor,] [e o adorou com sinceridade.] (22)

Chegou o momento [de vos assentardes, mão por mão, com os vossos sentimentos,] [de vos pordes à fala com a vossa consciência,] [de praticardes familiarmente com os vossos afetos, esperanças e propósitos]. (24)

...pois essas entidades são... as que, [demitindo funcionários indemissíveis], [rasgando contratos solenes], [consumando lesões de toda a ordem] ... acumulam, continuamente, sobre o tesoiro público terríveis responsabilidades. (44)

(Cf. os nºs 26, 101 e 145 do manuscrito.)

 

SÉRIES SIMÉTRICAS

Outro recurso esplêndido é o de oposições, recurso para que apelou Rui em numerosos passos. Distinguiremos, por amor da sistematização, três espécies de séries simétricas: as antitéticas, as invertidas e as entrelaçadas.

1 – séries antitéticas[13]:

...raro nos causam mal tamanho, que nos não faça, ainda maior bem. (22)

Uns nos querem mal, e fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal. (23)

...nulo entre os grandes da inteligência, grande entre os experimentados na fraqueza humana. (24)

Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos amigos, e agradecer a malevolência dos opositores. Estes nos salvam, quando aqueles nos extraviam. (23)

A vida não tem mais que duas portas: uma de entrar, pelo nascimento; outra de sair, pela morte. Ninguém, cabendo-lhe a vez, se poderá furtar à entrada. Ninguém, desde que entrou, se conseguirá evadir à saída. (24-25)

Não aprendeu nada, e sabe tudo. (33)

E vai por esse tom fora a energia do seu estilo, tecido de contrastes, quase a beirar o paradoxo, como neste genial trecho:

A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. (25)

2 – séries invertidas:

...a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo, à Fazenda;... nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo, ou o Estado. (43)

Nest’alma, tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes... (21)

...mas presente ao céu e à terra, a todos nós presente... (13)

Mas a geral habitualidade e a conveniência geral o entretêm, inocentam e universalizam. (41)

As mãos já se encontraram. Já num aperto se confundiram as mãos, que se procuravam. (16)

Mas, quando o trabalho se junta à oração, e a oração com o trabalho... (26-27)

...vê no invisível, e até no infinito vê. (13)

...não pode almejar seriamente, nem seriamente manter a sua independência para com o estrangeiro. (53)

Com o advogado, justiça militante, Justiça imperante, no magistrado. (48)

3 – Agora, uma série entrelaçada, com variação sinonímica:

Para o coração, pois, não há passado, nem futuro, nem ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é atualidade, tudo presença. (14)

 

A REPETIÇÃO PARALELA

Fundamento de magnificência literária, meio que é de dar ao período aquela amplidão majestosa dos oradores de estirpe ciceroniana, a repetição paralela sobreexcele como uma das notas típicas do estilo de Rui.

Como que no desejo de sentir-se a si outra vez, intensifica-se o pensamento, reforça-se de novo, e amplia-se, sob o império de uma necessidade íntima de repetir-se. A repetição paralela deve Rui o tom apocalíptico dos seus mais altos momentos de eloquência.

Exemplos:

Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida autonomia; mãos à obra da nossa reconstituição interior; mãos à obra de reconciliarmos a vida nacional com as instituições nacionais; mãos à obra de substituir pela verdade o simulacro político da nossa existência entre as nações. (53)

Até onde chegam as vibrações do sentimento, até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se somem os voos da crença: até Deus mesmo... (13)

A esses homens-panaceias, a esses empreiteiros de todas as empreitadas, a esses aviadores de todas as encomendas, se escancelam os portões da fama... (34)

Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e remotíssimo, uma imagem cara? Quantas vezes não a vemos assomar nos longes da saudade...? Quantas nos não vem conversar...? Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de além-mundo...? (15)

Como exemplo desse vigoroso tipo de construção, há de legar-se à posteridade (é uma das mais soberbas páginas do idioma!) o trecho magnífico em que o velho mestre, com grandílocos acentos de profeta bíblico, prega a santidade da própria ira, quando ela é a ira dos bons a fulminar os maus:

Quem, senão ela, há de expulsar do templo o renegado, o blasfemo, o profanador, o simoníaco? quem, senão ela, exterminar da ciência o apedeuta, o plagiário, o charlatão? quem, senão ela, banir da sociedade o imoral, o corruptor, o libertino? quem, senão ela, varrer dos serviços do Estado o prevaricador, o concussionário e o ladrão público? quem, senão ela, precipitar do governo o negocismo, a prostituição política, ou a tirania? quem, senão ela, arrancar a defesa da pátria à cobardia, à inconfidência, ou à traição? Quem, senão ela, ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas? a cólera do justo, crucifixo entre ladrões? a cólera do Verbo da verdade, negado pelo poder da mentira? a cólera da santidade suprema, justiçada pela mais sacrílega da opressões? (20)

Por derradeiro, não se deixe de mencionar esta curiosa modalidade de repetição de sons finais, muito bem achada, e de grande valor expressivo-fonético:

...e, tanto uma como a outra, imensas nas dificuldades, responsabilidade e utilidades. (39)

Nest’alma, tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes, nem de agressões, nem de infamações, nem de preterições, nem de ingratidões, nem de perseguições, nem de traições, nem de expatriações perdura o menor rasto, a menor ideia de revindita. (21)

Exatamente como Hermes Fontes (1908),[14] que assim terminou um de seus poemas:

– divagações... visões... impressões... sensações... (p. 9, poema "Estandarte")

E repetiu o processo, no soneto "Espera" (p. 104), de modo mais completo:

– Esperança... Esperança... Esperança... Esperança...

Também não deveria ficar sem reparo, num capítulo geral sobre repetições, a presença, em não poucos lugares, do aposto redundante, com o qual, mais que ao ritmo, se serve à ênfase:

Em verdade vos digo, jovens amigos meus, que o coincidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora, o seu coincidir num ponto de intercessão tão magnificamente celebrado, era mais do que eu merecia... (11)

...me não houvesse poupado aos tremendos riscos dessas alturas, “alturas de Satanás”, como as de que fala o Apocalipse... (23)

...um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impertinente... (32)

Pelo contrário, os que se tem por notório e incontestável excederem o nível da instrução ordinária, esses para nada servem. (34)


 

[1] Advertência importante: Indicam páginas da Oração aos Moços os números que não vierem acompanhados de notas respectivas no rodapé.

[2] Ver também, a respeito, Barreto (1911, p. 348 e 1916, p. 22-26).

[3] Esta maneira de ver coincide com a de José Oiticica, expressa na última edição do seu “Manual de Análise” (p. 218).

[4] A rigor, tais orações são coordenadas, daí, a possibilidade da ênclise. Cf. ALI (1930, p. 61) e OITICICA (1940, p. 62, nota). Como observação curiosa, consigne-se que o primeiro autor que tratou de colocação dos pronomes átonos já preconizava a proposição nas orações de que e porque coordenativos; esse autor foi um velho gramático do Funchal, ANDRADE JR. (1850).

[5] A respeito desse processo de construção do período, veja-se Oiticica (1940, p. 248-250)

[6] Sem outro propósito senão o de mais comodamente se dispor a matéria, apresentam-se os tópicos em ordem alfabética.

[7] Chaves das siglas: Loz – Francisco Delicado, “Retrato de la Lozana Andaluza”; Flo – Melchor Santa Cruz, “Floresta Española”.

[8] Acréscimo a lápis.

[9] Na edição de 1949, foi repetida a frase "Milagre de quem respira entre milagres" no lugar desta.

[10] Acréscimo a lápis, no exemplar utilizado, da edição de 1949.

[11] “La serie de unidades de cualquier texto presenta las medidas más diferentes sin la menor apariencia de orden y regularidad en sus combinaciones.” (TOMÁS, 1939, p. 6-7).

[12] O modelo, já o dissemos, era Vieira:       
“...e logo perdeu a figura, a ferocidade e a peçonha.” (VIEIRA, 1944, II, 90).
“...que não seja malsoante, áspero e duro.” (Ib.).         
Tão dura, tão áspera, tão injuriosa palavra é um Não”. (Ib.).        
“Como havia de estar entre as infelicidades da miséria um Santo tão dotado da Natureza, tão favorecido da Fortuna e tão mimoso da Graça? (Idem, p. 206).

[13] Em Vieira (1944, II, p. 337): “Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes: mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão”.

[14] Veja-se Vieira (1944, II, p. 95): “tantas petições, tantas remissões, tanta provisões...”